Como as MTGs ‘nasceram’ nos bailes de BH e dominaram a música brasileira
Fenômeno ganhou presença cativa nos charts da Billboard Brasil
O cantor sertanejo Humberto, que faz dupla com Ronaldo, levava seu filho ao treino de futebol quando foi abordado pela mãe de um dos coleguinhas: “Meu filho só ouve sua música no carro. Mas não a original, ele pede só aquela outra”. Como boa parte do Brasil, a criança em questão está viciada em “MTG Quero te Encontrar”, que viralizou nas redes sociais e invadiu os charts.
A “MTG” do título é a abreviação de montagem, e é usada em diversas faixas como uma espécie de identificação do processo de produção. Como um jogo de Tetris ou um quebra-cabeça, as tais montagens misturam elementos, batidas e vozes de diferentes músicas, resultando num remix, sempre em ritmo de funk. Entre as cem músicas mais ouvidas do país até o fechamento desta reportagem, segundo o Billboard Brasil Hot 100, seis carregam no título a sigla MTG, com três delas no top 10.
Ou seja, estamos diante de um novo fenômeno. “As MTGs que estão bombando são músicas antigas que já fizeram sucesso ou novos hits. É a junção de algo que já deu certo com algo que está dando certo, que é esse tipo de batida que usamos”, explica Henrique Douglas, 26 anos, da produtora mineira Doug Hits. O produtor também é responsável pela “MTG Forró e Desmantelo”, ao lado do DJ Sv e de Manim Vaqueiro, em #3 no Hot 100.
Um dos maiores exemplos da força do movimento é “Quem Não Quer Sou Eu”, gravada por Seu Jorge em 2011, que ganhou uma nova versão pelas mãos do DJ Topo –nascido Thiago Toporcov, 24 anos. Lançado no dia 10 de maio deste ano, o single mistura os vocais de Seu Jorge com “Maldita de Ex”, do MC Leozin, mantendo-se no tema central da canção. Já são cerca de 60 milhões de plays no Spotify, e o áudio já foi usado em mais de 240 milhões
de vídeos no TikTok.
Renovação
O que chama a atenção nesse universo é o encontro geracional promovido pelas montagens. Clássicos da MPB são relembrados por uns e apresentados a outros. Sucessos de Alceu Valença, Tribalistas, Caetano Veloso e Mart’nália também ganharam atualização na roupagem do funk e voltaram a fazer sucesso até mesmo décadas depois
do lançamento –caso das releituras de “Tropicana (Morena Tropicana)”, de 1982, “Velha Infância”, de 2002, “Você Não me Ensinou a te Esquecer”, de 2010, e “Cabide”, de 2006.
“As MTG são uma maneira nova de fazer funk e incluir artistas que normalmente não gravariam músicas nesse estilo”, analisa o DJ Topo. Henrique Douglas completa: “A esperteza disso é que conseguimos pegar vários públicos. A do Seu Jorge é uma música que a geração dos nossos pais escutava. Agora, tem uma galera de 12 anos que nunca tinha ouvido falar do Seu Jorge escutando ‘Quem Não Quer Sou Eu’”.
O mercado fonográfico, que de bobo não tem nada, viu nesse movimento uma oportunidade de reformular catálogos musicais, dando sobrevida a canções cada vez mais efêmeras. A produtora de Henrique, por exemplo, já recebeu pedidos para produzir montagens com novas músicas, de nomes como Nattan e João Gomes, mas também para reviver sucessos antigos, como “Vagalumes”, de 2012, do grupo de rap Pollo com o cantor Ivo Mozart. Já Topo criou MTGs para MC Livinho e Michele Andrade, expoente do forró.
“Tenho uma lista de gravadoras e artistas me pedindo para remixar músicas deles. Entenderam que é uma onda que pode ser surfada, porque fortalece a música original”, diz Henrique.
Sucesso nas redes
Um fator determinante para o crescimento exponencial das MTGs são as redes sociais, especialmente o TikTok. Segundo dados da plataforma, a hashtag #MTG foi usada em mais de 850 milhões de publicações. O sucesso das montagens na rede social chinesa se dá pelo formato das músicas, que se encaixa perfeitamente na proposta das trends, tão populares por lá. Ou seja, com uma MTG você pode fazer desde sua dancinha com amigos até mostrar
sua rotina em casa.
Antonio Antmaper, o DJ Mulú, já produziu nomes como Pabllo Vittar, Gilsonse Duda Beat, e recentemente viu um pequeno experimento musical seu explodir. “CHIHIRO”, do álbum “HIT ME HARD AND SOFT”, de Billie Eilish,
lançado em maio deste ano, virou MTG. “Quando ouvi essa música, senti a energia meio melancólica e achei que combinaria muito com o estilo”, conta Mulú. Despretensiosamente, o DJ liberou a “MTG CHIHIRO” em algumas redes
sociais. Só no YouTube foram mais de 2 milhões de visualizações até a publicação desta reportagem. Por conta dos direitos autorais, ele não colocou sua versão em todas as plataformas digitais. No entanto, a demanda o surpreendeu.
“Eu não esperava que essa versão ficaria tão grande e que as pessoas quisessem meu TikTok, vai ver os milhares de comentários como ‘bota no Spotify pelo amor de Deus’, sendo que a pessoa pode ouvir em outra plataforma.”
E por que ele não disponibiliza no Spotify? “É um processo burocrático, e a burocracia não acompanha a velocidade das redes sociais”, reflete. Apesar da complicação, Mulú e sua editora entraram com o pedido de regularização da faixa. Um dos autores, Finneas O’Connell, irmão e produtor de Billie Eilish, chegou a ouvir a canção, mas não permitiu remixes oficiais do álbum.
Campo da legalidade
Questões de direitos autorais não se dão apenas com artistas internacionais, como Billie, claro. O uso de sucessos da MPB fez com que o tema ganhasse destaque por aqui também. O exemplo de maior relevância é o caso da canção de Seu Jorge. Segundo apurou a Billboard Brasil, o cantor ficou sabendo da música pela distribuidora MusicPro, responsável por fazer a ponte entre Seu Jorge e o DJ Topo –que antes havia apelado até para vizinhos que conhecem o cantor.
Nesse caso, tudo certo. O autor gostou da nova roupagem e autorizou que a música seguisse seu caminho de sucesso. Alceu Valença, por sua vez, autorizou o uso de “Morena Tropicana”, de 1982, na MTG do DJ Luan Gomes com Loirin Prod. Mas com uma condição: que não fossem utilizados palavrões ou conteúdo de cunho sexual. A preocupação de Alceu tem sentido. O funk de Belo Horizonte, de onde vieram todas as MTGs citadas aqui, é conhecido também por suas letras para lá de explícitas.
Ainda assim, a versão autorizada tem menos de 2 milhões de plays no Spotify, enquanto o remix clandestino e “proibidão” de Malla, cujas palavras do refrão certamente não se encontram na Bíblia, chega a 3,3 milhões de reproduções na plataforma. A equipe jurídica de Alceu explicou para a Billboard Brasil que analisa a falta de autorização para o lançamento de músicas que utilizam a obra do cantor.
Com as versões, digamos, mais lights também fazendo sucesso, os autores das MTGs estão mais propensos a maneirar nas letras. “Na versão original da música, o MC Mininin usava alguns palavrões”, explica Humberto, um dos compositores de “Romance”, lançada em 2011 e que recentemente virou a “MTG Quero te Encontrar”. “Explicamos que, numa versão mais light, a música poderia alcançar mais pessoas. Deu certo.” A faixa chegou a ocupar o
primeiro lugar do Billboard Brasil Hot 100.
E quem fica com o que na divisão dos direitos? Segundo Brenda Espasandin, CMO da MusicPro, a preferência percentual é do autor original da canção. Sendo assim, caso o dono da música usada no remix queira cobrar por 90% da obra, ele tem direito. “Os artistas costumam entender que essa renovação é importante. As redes sociais já criaram essa coisa de releituras, então é fundamental que haja não só um entendimento por parte dos autores originais, mas também desses novos criadores, para procurarem os donos, pedir essa autorização e regulariz suas
obras”, explica.
A magia mineira
A maioria das MTGs citadas nesta reportagem – com exceção do paulistano DJ Topo– vem do mesmo lugar: o estado de Minas Gerais, que faz divisa com o Rio de Janeiro, berço da cultura do baile funk em terras brasileiras. Foi no Rio, em meados dos anos 1980, que o miami bass se popularizou pelos morros e rapidamente ganhou o asfalto. Na década seguinte, o ritmo invadiu o estado vizinho e se tornou referência em festas da capital, Belo Horizonte, a 440 km dali.
O estilo marcou uma geração que, anos depois, se veria representada no álbum “BAILE”, do mineiro
FBC, lançado em 2021. A nova onda das MTG é uma evolução das clássicas montagens do funk carioca. Nos anos 1990, o volt mix, batida de funk nascida da música “8 Volt Mix”, do DJ Battery Brain, serviu de base para uma série de músicas com um ou dois versos, no máximo. Já o nascimento das montagens mineiras é impreciso.
Os produtores e MCs ouvidos pela Billboard Brasil apontam para um boom em meados de 2019, com as primeiras MTGs usando faixas do hip hop norte-americano dos anos 2000 como base, misturadas com os vocais do onipresente MC GW. Depois da pandemia, a coisa explodiu de vez.
Essa ebulição cultural tem como ponto-chave o Aglomerado da Serra (ou Serrão, para os íntimos), um conjunto de favelas na capital mineira que reúne cerca de 50 mil habitantes e figura entre os dez maiores complexos do Brasil, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010.
São nos diversos bailes realizados pela Serra que os produtores e MCs botam seus futuros sucessos à prova com o público, numa espécie de pitch em tempo real. E, se der certo no Baile do Serrão ou na Rua da Água, pode ter certeza que em poucos dias você vai abrir o seu TikTok e a canção estará por lá.
*Esta reportagem foi originalmente publicada na edição #9 da Billboard Brasil impressa, cuja capa é estampada por Gusttavo Lima. Compre ou assine a revista aqui.