‘Precisava apostar mais no que acredito musicalmente’, diz Silva sobre fim do bloco
Compositor capixaba explica o porquê de largar o axé e retomar a obra autoral
O capixaba Lúcio Silva de Souza tinha 7 anos quando sua mãe, professora de música e evangélica, exibiu para ele “O Inferno em Chamas” (1993). O filme da indústria cristã norte-americana contava a história de um sujeito que entrava em coma e era convidado por uns demônios a fazer um passeio pelo inferno –com todos os horrores aos quais o mundo das trevas tinha direito.
A produção tinha como meta manter os cordeiros de Deus no bom caminho, mas, em Silva, hoje com 36 anos, causou o efeito contrário: até agora ele ainda tem insônias provocadas por aquele festival de horrores (o autor deste texto, por sua vez, morre de medo do filme “O Evangelho Segundo São Mateus”, 1964, de Pasolini).
O que a insônia tem a ver com essa entrevista? Nada, claro. Mas era uma história muito boa para ficar de fora. Silva está lançando o álbum “Encantado”, um candidato certeiro à lista de melhores trabalhos de 2024. É um álbum no qual ele retoma a profissão de autor, deixada de lado por conta de releituras da axé music no projeto Bloco do Silva.
No novo disco, o pula-pula, o “tira o pé do chão”, é trocado por melodias ricas, inspiradas pela bossa nova moderna de Marcos Valle, os arranjos do maestro Erlon Chaves (1933-1974) e a classe do maestro e compositor Arthur Verocai. Em entrevista à Billboard Brasil #9, Silva fala do bloco que o tornou popular.
O Bloco do Silva foi um grande desafio na sua carreira. Você, todo tímido, cantando axé, que é a música mais extrovertida do mundo…
Fui me desafiando aos pouquinhos. Porque, antes, eu sequer sabia o que fazer com as mãos. Chamei um professor de dança contemporânea, que me deu aulas para eu aprender pelo menos o básico do básico.
Depois, foi a vez de encarar a frente do palco sem instrumento na mão –nunca tinha feito isso, estou sempre com guitarra, violino, teclado…. Comecei a ter necessidade de andar mais pelo palco, porque as músicas eram mais animadas e pediam uma maior movimentação.
Outro ponto importante foi o fato de ter gravado com Anitta e Ludmilla, o que atraiu a atenção de outros tipos de festivais. E, nesses eventos, o público quer algo mais popular, mesmo. Não ia ficar parado para ouvir uma música, iria embora caso o show fosse mais calmo. Porque as atrações eram do nível de Wesley Safadão, sabe? Pois foi quando me virei para a minha banda e pedi para tocarmos uma música da Banda Eva.
O Bloco do Silva nasceu desse jeito?
Isso foi no final de 2018, início de 2019. Acabou virando um bloco de Carnaval. Eu só lamento que tenha ficado uma coisa muito voltada para a axé music, queria que tivesse sido mais abrangente. Tanto que a primeira edição tinha participação de Moraes Moreira e Elba Ramalho… Nomes da MPB.
Mas aí fiz um show do bloco no Cine Joia, em São Paulo. O público acabou com o estoque de bebidas numa noite, os contratantes enlouqueceram, e uma companhia de bebidas ficou sabendo disso. Aí virou uma operação mais comercial: todo mundo de bebida começou a procurar [o bloco] e sempre dava certo.
A coisa fugiu do meu controle. Aí veio a pandemia e, depois, também eu não tive nenhum trabalho de inéditas para competir com isso. Fiquei muito incomodado. Porque, embora seja um público incrível, ele não habita o meu lugar musical.
Você é um compositor que passou a reler música de terceiros. Não fica aquele sentimento chato de não estar interpretando a própria obra?
Exatamente. O último show do bloco em São Paulo, em janeiro de 2024, tinha 15 mil pessoas. O convidado foi o Jorge Aragão. Poxa, ele é um cara que compôs vários hinos da música brasileira. Foi então que eu pensei: “Preciso apostar mais no que eu acredito musicalmente sem ter medo, me arriscar mais”.
Como e quando virei essa pessoa que se recusa a fazer algo menos rentável? Claro que a gente tem que pensar em dinheiro, eu também não quero levar prejuízo, mas vi que tudo estava numa escala muito grande. Tudo tinha que render muito dinheiro para fechar a conta.
Então pensei assim: “Se eu tiver que deixar de fazer a música que eu amo, do jeito que eu quero, com as minhas regras, em prol de dinheiro, eu prefiro mudar tudo”. Sou filho de professora, sei o que é viver com coisas simples. Eu sei o que é ter só o meu pianinho em casa, comecei assim.
*Esta entrevista foi originalmente publicada na edição #9 da Billboard Brasil impressa, cuja capa é estampada por Gusttavo Lima. Compre ou assine a revista aqui.