“Eu dou uma ‘robertada’ de vez em quando”, diz Silva
"Encantado", novo disco do astro capixaba, tem até influência de Roberto Carlos
O capixaba Lúcio Silva de Souza tinha 7 anos quando sua mãe, professora de música e evangélica, exibiu para ele “O Inferno em Chamas” (1993). O filme da indústria cristã norte-americana contava a história de um sujeito que entrava em coma e era convidado por uns demônios a fazer um passeio pelo inferno –com todos os horrores aos quais o mundo das trevas tinha direito. A produção tinha como meta manter os cordeiros de Deus no bom caminho, mas, em Silva, hoje com 36 anos, causou o efeito contrário: até agora ele ainda tem insônias provocadas por aquele festival de horrores (o autor deste texto, por sua vez, morre de medo do filme “O Evangelho Segundo São Mateus”, 1964, de Pasolini).
O que a insônia tem a ver com essa entrevista? Nada, claro. Mas era uma história muito boa para ficar de fora. Silva está lançando o álbum “Encarnado”, um candidato certeiro à lista de melhores trabalhos de 2024. É um álbum no qual ele retoma a profissão de autor, deixada de lado por conta de releituras da axé music no projeto Bloco do Silva.
O novo disco traz melodias ricas, inspiradas pela bossa nova moderna de Marcos Valle, os arranjos do maestro Erlon Chaves (1933-1974) e a classe do maestro e compositor Arthur Verocai. Em entrevista à Billboard Brasil, Silva fala da retomada da composição em “Encantado” e por que todo mundo nascido no Espírito Santo adora o conterrâneo Roberto Carlos.
Em 2018, você lançou “Brasileiro”, um disco no qual a bossa nova dava o tom. Em seguida, fez “5”, álbum mais dançante, e lançou o Bloco do Silva, no qual fez releituras do axé baiano. Você acha que “Encantado” é uma retomada dos tempos de “Brasileiro”? Faz sentido, porque tem um formato parecido com “Brasileiro” em termos de concepção: essa coisa minha de entrar aqui no meu quarto/estúdio e achar uma batida, ir para o piano e fazer uma melodia em cima disso. Vou montando esse quebra-cabeça, sabe? É um jeito que eu gosto muito de compor, porque o negócio fica na sua cara. Por mais que você convide depois um músico para fazer uma bateria ou um sopro, você dá a tua personalidade às canções.
“Abram Alas” me lembrou as bossas novas do Moraes Moreira nos Novos Baianos… Eu amo as melodias do Moraes. A minha família é de formação evangélica, mas sempre fomos abertos em relação à música. Minha mãe é professora de música, então, ouvia desde obras barrocas a tambores do Congo. E o meu tio, irmão dela, me apresentou aos Novos Baianos. Queria muito ter aquele suingue deles… O Moraes Moreira era uma coisa, né? Tive a sorte de tocar com ele no primeiro Bloco do Silva, em 2019. Ele gostou muito, porque tiramos os arranjos, tudo bonitinho… Ficou tão feliz que falou para mim: “Você tem que ir em casa para ver meu baú com um monte de música que não foram gravadas ainda”. Não rolou porque minha vida ficou absurdamente desorganizada, cheia de compromissos, e ele infelizmente acabou morrendo em 2020.
“Risquei Você” é uma das minhas prediletas, tem um quê de Marisa Monte. E você propõe um desafio para o ouvinte, que terá de saber quem foi Demóstenes (orador grego). A música também tem essa função, de fazer o ouvinte pesquisar quem foi esse ou aquele personagem das tuas letras? Bem, eu sou muito curioso. Então, quando estou ouvindo alguém falar alguma coisa que eu não sei o que é, vou no Google na hora. Se eu não tiver internet, vou ficar com isso na cabeça ou fazer uma anotação para pesquisar aquilo quando o 3G voltar. Acho que, como compositor, a gente tem de aguçar o ouvinte de todos os jeitos. Mas não dá para fazer isso toda hora, porque pode ficar uma coisa cansativa.
Muita gente vai querer namorar com você só para ser dispensado com uma citação a personagem histórico. Foi um fora muito bem dado, né? Mas estou numa fase bem flat na minha vida pessoal. Estou doido para alguma coisa acontecer e poder dedicar algo a alguém, cara.
“Copo d`Água” tem participação de Marcos Valle. Poderia falar um pouco mais sobre ela? Na música tem gente de quem não quero nem chegar perto, para não perder o encanto. Mas estou encantado com ele. É o cara mais legal do mundo, me respeita muito como músico a ponto de me chamar para participar de um tributo ao [jazzista francês] Henri Salvador. “Copo d’Água” é uma canção marcada pela simplicidade, mas muito difícil de fazer. Porque para chegar nessa simplicidade tem que ter pouca coisa. Mas a gente tende a querer botar muito elemento, né? Inicialmente, ela virou uma grande árvore de Natal. Até violino tinha. Foi aí que eu voltei para o básico. Fui brincando com violão, e o Marcos Valle fez um monte de coisa no piano Rhodes e criou umas linhas vocais. Depois, fomos simplificando tudo. Seguindo nesse caminho de menos é mais, música para você sentir, gostar…
“Encantado” tem ainda sample de Erlon Chaves e arranjos de Arthur Verocai. Você está estudando mais essa sonoridade? Para ser sincero, estou um pouco enjoado de tudo. Ouço muito música velha, não tem jeito. Pesquiso muita coisa antiga, seja no Spotify ou no YouTube. As pessoas, às vezes, me indicam um vinil, eu vou atrás desse vinil –ainda que minha coleção não seja grande coisa. Às vezes, fico vendo o que as pessoas estão produzindo. Por exemplo, no Instagram. Antigamente eu abria e só tinha gente sem camisa para mim. Mas aí coloquei uns “não interessa” e agora só chega música. Comecei a ver que tem muita gente talentosa e super boa de produção musical, pessoas fazendo hoje aquela coisa caseira, de quarto, que eu fazia nos tempos de “Claridão” [seu disco de estreia, de 2012]. Mas, musicalmente, é tudo muito parecido. Tenho a impressão de estar escutando os mesmos artistas, mas com variações diferentes. E aí você vê um sujeito como Arthur Verocai. Ele tem umas harmonias, uma assinatura que não se parece com nada no mundo.
Qual é a diferença? A gente tem uma escola brasileira, principalmente de harmonia… João Donato, por exemplo. Tem a música que ele fez comigo no disco “5” –chama-se “Quem Disse”–, que até hoje, se você pedir para eu tocá-la no meu show, eu não vou saber tocar no piano. Porque o que ele faz de harmonia é tão fino… Parece simples, mas tem sempre uma nota que ele bota ali que é diferente de tudo. Não é à toa que o Antonio Carlos Jobim dizia que o Donato era o melhor músico do Brasil.
E onde você se incluiria nesse movimento da música brasileira? A gente tem umas figuras musicais que são muito chaves, mundialmente falando. Então, eu, como brasileiro, não sou bobo. Existe uma escola da qual quero fazer parte e não quero que ela morra. É algo muito precioso na música brasileira. E falo isso sem o menor medo de parecer pretensioso. Porque, antes, eu tinha muito medo de as pessoas dizerem que eu estava me achando. Cara, eu já passei por tanto nesta vida, nesta carreira… Quem quiser achar isso ou aquilo de mim, dane-se. Estou a fim de música, estou a fim de trabalhar, ainda tem muita coisa para colocar no lugar na minha carreira… Quero trilhar um caminho em que eu seja musicalmente único. Fazer uma música que seja relevante e na qual acredito.
O termo “singer songwriter” é usado para compositores que cantam o que sentem. Você se enxerga dentro dessa categoria?
Sim, eu tenho uma coisa de gostar de cantar o que vem de dentro. Tanto que acho que é por isso que veio o incômodo de cantar uma música que não era minha, de falar de sentimentos que não eram meus. Gosto quando a musicalidade vem de mim. É importante que as letras tenham a ver com a minha vida, embora muita coisa seja escrita por meu irmão, o Lucas. Eu poderia fazer letras com qualquer outra pessoa –Arnaldo Antunes e Ronaldo Bastos, que são muito próximos–, mas Lucas é a pessoa que eu escolho. Ele conhece detalhes da minha vida. Tanto que, às vezes, ele fala: “Irmão, não sei se isso cabe na sua boca, não”. Escrever é muito fácil para ele: em 20 minutos, entrega uma música pronta em que você, no máximo, vai mudar uma palavra ou um artigo.
“Encantado” termina com a “A Vida É Triste, Mas Não Precisa Ser”, que soa como uma canção romântica dos anos 1970. Todo capixaba tem um pouco de Roberto Carlos? Eu dou uma “robertada” de vez em quando. Sabe o que é engraçado? Minha mãe tem pavor de Roberto Carlos. Reconhece que as composições são boas, mas prefere ouvi-las na voz de outros artistas. Mas sempre defendi o Roberto na minha casa.
Adoro essa coisa da duplicidade de sentimentos. “A Vida Não É Triste” tem essa coisa de chorar rindo, rir chorando… Não é sempre que eu consigo exercitar isso numa composição que eu e Lucas fizemos para o álbum. A gente foi jantar juntos, chegamos meio altos e nos sentamos no piano da sala. Mostrei uma melodia para ele que, na minha cabeça, lembrava Radiohead. Foi uma canção de bêbados que começou com a frase “a vida não é triste”. Depois, vimos que tinha muita coisa que não funcionava para a música. Mas ela deu o start em “Encantado”.