Pornográfica e pagodeira, Ebony quer ser ‘suja’ e ‘não tão profunda’
Rapper falou também de acesso precoce à pornografia e relação com pais adotivos
A rapper Ebony, de nome real Milena Martins, tornou-se hitmaker com “Espero que Entendam”, diss que sacudiu 2023 e trouxe um certo tremor ao ego de figuras masculinas do rap. Adotada por uma nova família —conservadora e religiosa—, migrou da Baixada Fluminense do Rio para Carangolas, cidade do interior mineiro, onde ouviu alguns piseiros e, logo, deu no pé.
Com letras que, quase sempre, invocam cenas sexuais desde “Terapia” (2023) e “Visão Periférica” (2021), Ebony conversou com a Billboard Brasil sobre sua relação com a pornografia, a forma natural como a sociedade encara o sexo caso a pessoa que esteja falando putaria seja um homem e sobre “24hrs” que, permeado por seu “rap sujo”, assusta figuras como Major RD. O nome artístico da rapper, inclusive, é usado comumente para categorizar conteúdos pornográficos protagonizados por negres em sites de conteúdo adulto.
Essa entrevista foi feita um dia antes de a rapper se retirar das redes sociais, logo após virar assunto no Twitter/X com uma fala na qual ela se declarava originária do estilo de verborragia pornográfica no rap.
Qual tem sido o seu ponto de início de conversa quando o assunto é música?
Uhmm… Eu tenho ficado muito feliz com o destaque que a feminilidade tem tomado no rap, sabe? Esse é o ponto de início.
Como, então, é o lance de ser protagonista no rap a partir desse tema?
Eu acho que é uma honra e faz sentido também. As pessoas se identificam comigo tanto quanto eu me identifico com elas. Eu sou exatamente igual a elas, só trabalhamos com coisas diferentes. Faz bem. Eu senti muita falta de, crescendo, não ter alguém com quem me identificar em relação às minhas estranhezas e imperfeições. Eu gosto muito de ver por esse lugar. Não só da motivação de ser o melhor possível, acho muito válido também, mas eu gosto do lugar de “ok, deu merda, mas está tudo bem”. Sabe? Identificação real com as imperfeições.
E quando essa ficha caiu?
Lembro que foi num show a que eu fui na Cidade das Artes, aqui no Rio de Janeiro. E é um lugar muito chique, assim. Hoje é mais normalizado na minha vivência mas, na época, era absurdo estar ali. E essa foi a primeira vez que uma menina preta chorou quando me viu.
Como é que você equilibra essas emoções e a necessidade de posicionamento sobre tanto assunto que circunda o gênero e sua obra?
Cara, honestamente? Eu decido muito quando vou ou não falar sobre… “Ah, você viu aquilo que fulano fez? Você se posicionou?” Não, eu não me posicionei. Entendeu? Ou em algumas entrevistas tem perguntas que eu prefiro não responder. Porque senão fica isso que você falou, muito repetitivo. E eu não vou permitir que minha existência se resuma à opressão. Que por acaso eu sofro! Mas que não sou, sabe? Acho que importante que as pretinhas, que estão se formando mulheres, amadurecendo, entendam que não têm a obrigação de salvar o mundo. Às vezes, você faz muito mais ao seu senso de comunidade salvando você mesma, estando bem, bebendo água, fazendo exames. Isso é salvar a mulher preta. Eu sou uma mulher preta. Me salvar também vale.
Amores vocês ouvem rapper agressor de mulher, pai ausente, caloteiro vc acha mesmo que vou cancelar Ebony porque ela foi soberba
— V (@viviteytey) August 19, 2024
Certa vez, a Deize Tigrona contou de uma forma muito interessante as fantasias dela, uma certa brisa cinematográfica com sexo. Você pensa muito em sexo e nas cenas de sexo que vão parar em suas letras?
Eu penso em sexo tanto quanto eu penso em qualquer outra coisa. Mas eu gosto, particularmente, de usar essa provocação mais sexual porque… Eu, enquanto Milena, fui uma criança que cresceu em um lar muito restritivo. E não só conservador. Era muito errado pensar em sexo e, por muito tempo, cresci achando que era pecado. Tinha muita vergonha envolvida. Com o tempo, comecei a achar bobo. Mas é só uma palavra, é só um termo. E, às vezes, eu gosto de ver qual é o limite. “Por que isso te afeta tanto?”. E escolho ir pelo caminho mais sujo possível só porque eu posso. Não é para ser tão profundo, às vezes.
Seus pais eram evangélicos?
Não diria que eram evangélicos. Eu acho que era uma forma muito específica de religião. Eu compararia a uma seita. Eles eram muito restritivos. Mas eu não dou título a essa religião, não.
Era uma casa, então, em que não se falava em sexo.
Não se falava. Nem com ninguém. Nem se pensava. Era muito segredo. E, ao mesmo tempo, tudo continuava acontecendo, porque nada pára de acontecer! E era muito esquisito ser uma pré-adolescente. Eu descobri o sexo bem cedo. E também tive muito acesso à pornografia, infelizmente. Então, as descobertas estavam acontecendo, e eu não podia conversar e entender isso melhor. Acho que acabou criando em mim uma certa fixação. Minhas músicas são uma forma de elaborar isso melhor, sabe?
Quando você fala o “infelizmente”, você está se referindo a qual aspecto da pornografia? Da indústria, da exploração?
Também. Mas eu falo desse acesso, que é muito fácil. E é complicado dizer isso, porque eu sou defensora da internet, uma garota que foi criada nos fóruns bem profundos da internet. E bem ali eu tive acesso a coisas absurdas, que uma criança não tem bagagem necessária para elaborar. Não estou dizendo que as coisas não deveriam estar ali, mas que eu não deveria estar ali. E não tem como sair imune disso. É um problema, eu acho. E moldou a minha relação com a forma como eu vejo as pessoas, a feminilidade. E o resultado disso tudo é o que a gente pode ver nos meus clipes, seja como sátira, seja porque significa algo mostrar meu corpo, significa ser dona de mim. O feminismo liberal que diz “Ah, vamos mostrar o peito porque a gente é livre”, para mim, vai um pouco além disso, devido a minha criação.
Quando você começou a pensar nisso, de quem é você a partir desse acesso à pornografia?
Ela [uma desconstrução] está acontecendo ainda, sabe? Eu, honestamente, ainda assisto pornografia. Mas, hoje em dia, eu sou uma mulher adulta. Tenho meus conceitos pré-estabelecidos do que me afeta ou não.
Você chegou a ter uma “DR” com seus pais sobre o personagem Ebony após o sucesso?
Não. Eu fui morar longe já aos 17 anos. Nossa relação sempre foi muito turbulenta por causa dessas diferenças de crença. Quando eu volto já estabelecida, financeiramente saudável, me bancando e vivendo, não tem muito o que ser dito. Mas a minha relação com eles sempre foi tranquila, sempre me respeitaram muito. Eles me amam! Eu fui na casa deles estes dias e tinha uma parede com quadro meu… Juro. Meu pai é meu maior fã do mundo, camiseta com meu nome atrás…
Então é um assunto que fica ali, pairando…
É porque meus pais são pessoas muito antigas, né? Eu sou adotada. Eles nasceram em 1952 [o pai, de 71 anos] e 1955 [a mãe, de 69 anos]. Alcancei um lugar da minha maturidade em que fui percebendo que não tem como lutar contra o tempo. E que isso não necessariamente os torna pessoas ruins. A partir disso a nossa relação ficou muito boa. Durante a adolescência fica complicado entender isso.
Como é a sua história da adoção?
Minha mãe teve uma filha com 13 anos e, depois, ficou grávida de mim, com 16 anos. E ela teve algumas questões, assim, meio criminosas… Em relação à vivência dela com o padrasto dela e com a mãe dela, etc. Isso tudo me contaram, né? Fui falar com ela bem depois. Mas, aparentemente, ela saiu para poder construir uma nova vida no Rio de Janeiro, já que ela era do interior de Minas Gerais. Teve uma vida muito conturbada desde nova. Meu pai [Celso, o adotivo] passava sempre em frente a um lugar em que ela ficava e tanto ele quanto a minha mãe [Derli, a adotiva] estavam tentando ter filhos há algum tempo. Eles disseram que não iam tirar o acesso dela a mim, mas que queriam ter um bebê para cuidar. Ela relutou, mas chegou um momento em que concordou, porque viu que era o melhor para mim. A vida dela foi babado, puta que pariu.
Depois que saiu, “Espero que Entendam” virou hit. Desde então, imagino, muitas perguntas começaram a se repetir a cerca do que tratava a canção.
Sim, e estou preparada para responder até que comece a se tornar um problema [risos]. Eu não vou pedir desculpas. Eu entendo um artista que não quer ficar associado a uma música. Ninguém gosta de ser resumido a uma coisa só. Mas faz bastante jus a quem eu sou ser a pessoa que fez outras pensarem sobre uma estrutura social. Então, nenhum problema em ser associada a isso.
A canção foi certificada com ouro. Antigamente, a galera ia no palco do Gugu para receber. Vai fazer o que? Botar na parede?
Eu já sabia que se ganhava um single de ouro quando se faz 10 milhões. Fiquei muito feliz. Vou botar na parede, óbvio, vai tudo para a parede. Eu queria que o rap desse medalhas para eu pendurar nas paredes também.
Você costuma ouvir suas rimas antigas?
Estou lançando “24hrs” agora, e eu odiava muito essa música. Depois de um tempo, passei a ouvi-la como se não fosse minha. E eu gostei disso. Tenho duas formas de escrita: uma é muito sofisticada, fico sendo artesã. Só que tem essa outra que é a Ebony que gosta do beat e já sai cantando —algo mais leve de se fazer, menos preocupado.
Mas, respondendo… Geralmente, não. Fico com muita vergonha quando a minha música toca em algum lugar. Eu sou naturalmente tímida, sou bicho do mato, sou da roça. As pessoas falam “low profile”, mas eu sou bicho do mato mesmo. Eu nasci em Queimados [Baixada Fluminense do Rio de Janeiro] que é bem rural e, depois, fui morar em Carangolas, interior de Minas Gerais.
O que você ouvia e dançava em Carangolas?
Piseiro, essas coisas. Sempre saía para dançar. Sempre gostei de tudo que tocasse.
E o que você não tem parado de ouvir agora?
Cara, agora passou, mas tava sendo Black Alien. Eu nunca tinha ouvido o último dele e fiquei meio obcecada. Mas passou [risos]. Eu sou do tipo que ouve várias vezes a mesma música. Quando eu sinto uma sensação diferente com alguma, eu fico ouvindo e estudando música. E faz muito parte do meu dia. Para cozinhar, banho, carro, trânsito, fone. Sempre que dá.
O que você tem pensado em fazer de diferente, agora?
Quero levar minha música para mais lugares, seja passeando pelo pop ou voltando… Vou lançar um EP agora com músicas antigas minhas e tem sido interessante ver como era minha forma de rimar. São músicas românticas. Ainda estou decidindo… Eu pensei em algo, mas acho que é muito dramático. Queria fazer alusão a “Sociedade dos Poetas Mortos” [filme de 1989], só que eu queria algo feminino. Vou chegar em algo melhor ainda, vou chegar.
Indica aí um pagode de que você gosta muito e só você conhece.
Aí, tu quer me foder. Eu sou das clássicas, cara! Eu sou time das clássicas, sempre. Eu gosto de Ferrugem! Papo reto. Aquela dele assim: “Eu já digitei, apaguei, digitei de novo” [Apaguei Para Todos, de 2024]. Essa é muito quente! Muito quente!
Ferrugem em um papo que começou com sexo me lembra “Eu Te Homenageava” [canção de 2017] que fala tranquilamente de um desejo que termina em masturbação.
Exatamente! Sabe? Isso toca domingo à tarde pela forma como ele fala. E eu acho isso incrível, não tenho nenhuma crítica! É muito natural. E o que me incomoda é quão natural é para as pessoas quando homens estão falando de sexo. Elas nem percebem! Teve uma vez que o Major RD me falou quando ouviu uma guia minha: “Ai, eu fico meio sem graça porque você é muito suja”. Mano! Você é o Major RD! É tipo o Snoop Dogg criticando a música WAP [de Cardi B]. Você é o OG da putaria. O que você está falando?