Como não amar o Calcinha Preta?
Maior banda de forró eletrônico do país renovou estratégias nas redes sociais
A serpente encantada, imortal, que cresce nas galerias subterrâneas no centro de São Luís (MA), foi homenageada no palco do festival Bumba Meu São João, no mês passado. A lenda maranhense circula há anos no imaginário popular dos moradores da capital e foi representada no figurino de Silvânia Aquino, uma das vocalistas da banda forró Calcinha Preta –seguindo o legado deixado por Paulinha Abelha (1978-2022), que faria 46 anos nesta sexta-feira (16).
Assim como o mito de que as serpentes conseguem hipnotizar suas presas, a cantora de 51 anos toma conta do palco e extasia o público, pronta para dar o bote e conquistar de vez o coração dos forrozeiros. Silvânia é a diplomata do grupo: convidou a repórter da Billboard Brasil para acompanhar o show do palco, distribuiu abraços, ofereceu um copo de bebida e agradeceu, no microfone mesmo, a presença da revista na apresentação. Sem nenhuma cerimônia ou estrelismo.
Ao seu lado, igualmente simpáticos, estavam Daniel Diau, 52 anos, Bell Oliver, 44, e O’hara Ravick, 33. O quarteto do Calcinha Preta divide o comando de um dos maiores grupos de forró do país. São deles hits da vertente eletrônica do gênero, como “Liga Pra Mim”, “Ainda te Amo” e “Você Não Vale Nada” –esta última, sucesso nacional como trilha sonora de Abel e Norminha, personagens de Dira Paes e Anderson Müller, na novela “Caminho das Índias”, da Globo, em 2009.
Para não perder o posto de referência, a banda sergipana precisou se reinventar. Em 2021, o Calcinha Preta ganhou novos sócios: Felipe e Fernanda Marques, irmãos no comando da FazMídia. A empresa, que já trabalhava com o grupo desde 2018, virou dona da marca. “O Calcinha não estava incluído na era digital. Era nosso maior desafio. No começo, os artistas foram um pouco resistentes, são da época em que vendiam milhões de discos. Explicar que agora tudo está na palma da mão, no celular, foi um processo”, conta o empresário para a Billboard Brasil.
A virada do Calcinha Preta veio na pandemia. Em abril de 2020, ainda com Paulinha Abelha (1978-2022) na formação, o grupo fez a primeira live da carreira para arrecadar doações para vítimas da covid-19 e celebrar os 25 anos de sua trajetória. O show teve mais de 1 milhão de visualizações simultâneas e fez a banda crescer nas plataformas de streaming. “A partir disso, a nossa comunicação com o público na internet ficou bem mais fácil. Entendemos a linguagem que eles gostariam e esperavam da banda. Isso foi renovando os fãs e, hoje, o Calcinha Preta passa de geração para geração”, explica Fernanda, coordenadora de marketing.
Nas redes sociais, os perfis do Calcinha Preta reforçam a ideia de que o amor pela banda, prestes a completar 30 anos de estrada, passa de pai para filho. Publicações como “eu sou fã de Calcinha Preta porque minha mãe me mostrou essa música” ou “o hino que cresci escutando” são recorrentes. “Tudo ficou muito mais jovem. Felipe e Fernanda têm uma cabeça aberta. Eles pensam rápido e à frente. E nós temos que acompanhar, porque o mercado está aí e cada dia surge uma novidade”, diz Silvânia.
Legado de muitas mãos
A estratégia digital também acompanha os novos projetos do grupo. Em junho, o quarteto lançou o DVD “Atemporal”, gravado em Salvador, na Bahia, em dezembro de 2023. O projeto traz no setlist clássicos do Calcinha, além da parceria com a dupla sertaneja Maiara e Maraisa em “Relógio de Saudade”. Para o empresário da banda, o sucesso de um artista é medido por um conjunto de fatores que incluem muito mais do que apenas números e virais. “O que ele agrega na vida das pessoas? Qual é o público que ele leva? Não adianta ter a música mais tocada nas plataformas de streaming e, no show, não ter público, não vender ingresso. Você começa a questionar o medidor de sucesso. O Calcinha faz os projetos focados no público. Agradar os fãs é nossa maior alegria. Entrar no Top 50 é só um bônus”, avalia Felipe.
Segundo os vocalistas, é esse amor pelo público que faz a banda ter uma trajetória longeva, mesmo com tantas trocas de formação –como Marlus Viana, Raied Neto, Michelle Menezes, Ana Gouveia, Berg Rabelo, entre outros, que passaram e fizeram história como integrantes do grupo. “Os pais jamais iriam colocar músicas pejorativas em casa para os filhos ouvirem. O respeito é uma das nossas marcas. Procuramos canções que falem de amor. Somos uma banda que não segue as ondinhas do momento. Até gostamos e respeitamos, mas não é a vibe do Calcinha. O segredo é saber a responsabilidade e fazer o melhor para o público”, diz Bell. “Música de qualidade, feita com muito carinho, nunca sai de moda”, acrescenta Silvânia.
O grupo, que fez turnês pelos Estados Unidos e pela Europa, segue apostando no mercado internacional entre as prioridades de carreira. “A gente nunca se limitou ao forró. A ousadia de chamar um roqueiro para participar foi o grande diferencial do DVD. ‘Agora Estou Sofrendo’ já era um hit com o Gusttavo Lima. Valeria a pena regravar um sucesso? Reunimos o time e resolvemos apostar. O Edu Falaschi [cantor de metal, ex-integrante do Angra] topou de cara. Gravamos em português e inglês, buscando novos horizontes”, conta Felipe. Após um mês de lançamento, a faixa já tem 1 milhão de views no YouTube.
Saudade de Paulinha
Exaltar o legado do Calcinha Preta é também falar de Paulinha Abelha. A cantora morreu aos 43 anos em fevereiro de 2022, em decorrência de um quadro de comprometimento multissistêmico, iniciado por complicações renais. Apoiadora do movimento LGBTQIA+, ela se dizia a maior defensora do público dentro do forró. “Louca por Ti”, versão da música “Dust in the Wind”, da banda norte-americana Kansas, e “Baby Doll”, são dois dos sucessos marcados na voz da cantora.
“A gente sabia o quanto ela amava o Calcinha. Aliás, o projeto ‘Atemporal’ tem dedo dela, porque já estava sendo planejado. Nunca passou na cabeça de ninguém desistir [após a morte]. Sempre existe algo mais forte para levar o nome dela”, diz Fernanda. No DVD, a cantora aparece no telão por meio de inteligência artificial e conversa com o público.
“Hoje, vocês serão a minha voz”, diz a imagem recriada de Paulinha. O momento, disponível no YouTube do grupo, emocionou os cantores. “Paulinha continua viva no coração de cada um de nós. Ela queria que a gente continuasse com tudo isso aqui. Ela amava os fãs e não era apenas uma cantora. Ela gostava de amar e ensinar as pessoas a amarem umas às outras”, diz Daniel, no vídeo.
*Esta reportagem foi originalmente publicada na edição #9 da Billboard Brasil impressa, cuja capa é estampada por Gusttavo Lima. Compre ou assine a revista aqui.