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Como Festa do Peão de Barretos se transformou em um império sertanejo

Como Festa do Peão de Barretos se transformou em um império sertanejo

Cidade evoluiu de parada de gado para o maior evento do gênero no Brasil

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Todos os anos, no mês de agosto, milhares de pessoas pegam as estradas para chegar a Barretos, no interior de São Paulo. Da capital paulista ou de Goiânia, em Goiás, a viagem é de seis horas de carro até lá. De Belo Horizonte, lá se vão oito horas de trajeto. No mapa, a cidadezinha de 124 mil habitantes e pouco mais de 1.500 km² de extensão está ali no meio, entre Uberaba (MG), São José do Rio Preto, Ribeirão Preto e Franca (SP). Pode parecer pequena, quase esquecível, mas está marcada para sempre na história do país por ser palco de uma das maiores festas de todo o território nacional, batendo de frente com o Carnaval.

Não foi sempre assim. Em 1956, Barretos tinha apenas 48 mil moradores e servia de rota para os bois que vinham de estados como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás. Por causa de sua vegetação, formada por pastagens naturais, era ali que os animais paravam para recuperar o peso perdido durante o trajeto para, então, ser abatidos e abastecer frigoríficos do país. Foi lá que um grupo de 20 jovens solteiros –e por isso apelidados de Os Independentes– decidiu deixar a parada mais interessante. Reuniram as comitivas que viajavam por dias a fio para uma competição culinária, batizada de Queima do Alho, colocaram os peões para tentar domar os bois mais bravos e, para embrulhar tudo em festa, convocaram violeiros.

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Ana Castela

Festa do Peão começou em 1956, nas ruas de Barretos
Arquivo pessoal/Barretos

O começo de tudo

José Brandão Tupynambá estava lá quando tudo começou. O empresário fazia parte de um segundo grupo, formado por outros 12 homens, que ajudou a fundar a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos. Passaram a se reunir no centro da cidade, no Recinto Paulo de Lima, nos meses de agosto, para acompanhar a competição dos peões, comer as comidas típicas das estradas, como arroz carreteiro e feijão gordo (sem alho queimado, de preferência), e ouvir modas de viola.  “Em 1962, a gente pediu emprestados, na cara de pau, dois transformadores de energia para iluminar melhor a praça. Não sabíamos se ia ter gente suficiente, mas, no fim, estava tão entupido que não cabia mais uma alma”, diz Seu Tupy.

Naquele tempo, até o palco era improvisado. “Sérgio Carreira, presidente da festa na época, usava tambores de gasolina vazios com pedaços de madeira por cima.” Mesmo com 96 anos de estrada, Seu Tupy ainda se lembra de ver a dupla Tião Carreiro (1934-1993) e Pardinho (1931-2002) se apresentar no espaço improvisado. Mal sabia ele que, hoje em dia, os principais nomes da música sertaneja do Brasil sonhariam em estar ali. Um morador de Aparecida do Norte (SP) também acompanhou essa história desde os primórdios. Pedro Geraldo Arneiro Ribeiro, conhecido como Pedro da Santa, dedicou 45 dos seus 63 anos para ir até Barretos com uma missa feita a Nossa Senhora Aparecida pela saúde da mãe. Um dos acordos com a padroeira do Brasil era percorrer anualmente os 560 km que dividem as cidades. “Vou de carona ou, quando consigo doações, pego um ônibus. Levo a santa comigo e santinhos para distribuir para os competidores do rodeio. Pedi ajuda para a Nossa Senhora e, como ela me atendeu, continuo com o mesmo propósito.” A mãe de Pedro, cujo nome e doença ele preferiu não contar, já morreu, mas ele mantém o compromisso com a fé firme e forte.

Parque do Peão de Barretos

Com o sucesso do evento ano após ano, em 1985 a festa – com Seu Tupy, Pedro da Santa e muitos, muitos outros– se mudou para o Parque do Peão, projetado por Oscar Niemeyer com mais de 2 milhões de metros quadrados. Os Independentes, hoje uma associação formada por cem homens (sim, um Clube do Bolinha), dividiram-se entre funções administrativas, culturais e artísticas para continuar dando forma para a festa do peão.

“Antigamente, só podiam entrar homens solteiros, pois foi assim que o grupo começou. E eles tinham que continuar assim enquanto fizessem parte da associação. Com o tempo, percebemos que estávamos perdendo muitos potenciais talentos. Hoje, ainda é obrigatório entrar solteiro, mas pode se casar no dia seguinte, se quiser”, conta Hussein Gemha Junior, atual presidente do grupo.

Parque do Peão conta com mais de 2 milhões de metros quadrados
Alisson Demetrio/Divulgação

Segundo ele, há uma fila de espera “gigante” de homens que moram junto de suas mulheres, têm filhos e tudo, mas nada de ir para a igreja ou para o cartório oficializar as coisas. Tudo na esperança de fazer parte do tal conselho. Os Independentes são responsáveis por todas as decisões da festa, desde o line up até a decoração do Parque do Peão.

O espaço impressiona: foi necessário a reportagem pegar uma carona de carro para percorrer todo o local, que, a dois meses da edição de 2024, estava em obras.“Estamos colocando mais banheiros, construindo um novo elevador, melhorando as caixas-d’água e os pontos de tomada”, diz Hussein.

Neste ano, Os Independentes investiram cerca de R$ 10 milhões em melhorias no parque. Há, por lá, um camping que comporta 15 mil pessoas e também um espaço para o cuidado de animais, com veterinários contratados. Ao todo, 120 pessoas trabalham em posições fixas na festa durante todo o ano. “Na pandemia, não demitimos ninguém. Temos muito orgulho disso”, celebra Hussein. O próximo passo é cobrir toda a arena para dar mais conforto ao público, aos peões e aos artistas que enfrentam um calor de, em média, 29 ºC em pleno inverno brasileiro.

As tradições seguem vivas

Apesar da grandiosidade da festa, a organização se esforça para manter as tradições. Há uma parte reservada apenas para a Queima do Alho, que segue acontecendo sob a supervisão de João Paulo Martins, 79 anos, parte da festa há 45 anos.

“Eu nunca poderia abandonar este lugar. A competição começou com a Queima do Alho e com o peão de boiadeiro. Já recebemos tudo quanto é figura. Foi bem ali que eu mesmo cantei uma moda de viola com o Gusttavo Lima”, disse, apontando para um pequeno palco montado no meio do espaço que costuma receber artistas ainda desconhecidos e dançarinas de catira, típica de Goiás e Minas Gerais. Na galeria do celular, Martins ainda mostra, orgulhoso, uma foto: “Até o [ex-presidente Jair] Bolsonaro esteve aqui. Entrou por aquela porteira”.

João Paulo Martins faz parte da organização da festa há 45 anos
Bruna Calazans/Billboard Brasil

Ao redor do Parque do Peão há ranchos particulares, que ficam abertos ao público durante a festa e abrigam comemorações paralelas no período. Caso do Ponto de Pouso, de propriedade de Ivo Duarte, 68 anos. Lá, o dono exibe uma coleção de latas de cerveja personalizadas de todas as edições da festa. Além disso, tem mais de cem quadros com as artes oficiais do evento.

“Acompanho a festa desde moleque, quando ainda era no Recinto. Tinha uns 8, 10 anos, mal tinha noção de localização para chegar lá. Precisava decorar a rua que eu subia para depois conseguir voltar para casa”, diz, bem-humorado.

Desde os violeiros que cantavam na praça de Barretos sob a luz de transformadores emprestados até os grandes espetáculos que reúnem 1 milhão de pessoas por ano, o objetivo dos organizadores sempre foi ter algo diferente para mostrar ao público. “Nosso investimento é de R$ 10 milhões para montar a grade de shows. O maior desafio é que Barretos acontece depois dos principais rodeios do país. A gente tem a missão de mostrar para o público algo que ele não viu ainda durante todo o ano”, conta Pedro Muzetti, diretor artístico de Barretos. Pelos palcos do festival já passaram grandes nomes do sertanejo, desde os mais tradicionais, como Milionário e José Rico, até as estrelas mais recentes, como Ana Castela –que também canta neste ano.

Mulher também entra

Apesar de ser uma festa feita por homens, Pedro diz que manter a diversidade é importante para atrair um público novo. “É um privilégio muito grande para o artista poder pisar nesse palco sagrado. Tive essa honra algumas vezes na minha carreira”, celebra Lauana Prado, que faz parte da programação de 2024, cantando no primeiro dia da festa, em 15 de agosto. “É uma grande responsabilidade abrir a festa”, diz ela sobre o festival, que também terá Maiara e Maraisa e Simone Mendes, no dia seguinte. “Passa ano, vem ano, e esse frio na barriga, essa magia permanece. É fantástico”, diz Maiara.

Toda edição, os organizadores elegem um embaixador. Para 2024, será a dupla César Menotti e Fabiano, que se apresenta no sábado, 21 de agosto, um dos principais dias de todo o evento. O show será uma celebração dos 20 anos da dupla, com participação especial de nomes como Bruna Viola, entre outros.

A primeira vez deles por lá foi em 2007, o que César comparou a ganhar um Oscar, principal prêmio do cinema mundial. “Esse título é buscado por todos os artistas sertanejos. É uma validação profissional que você recebe no meio.”

A cidade escolhida

A opinião dele parece ser unânime. Artistas ouvidos para esta reportagem concordam que Barretos, cidade outrora escolhida como rota de passagem de gado, transformou-se em um trampolim para carreiras e uma forma de consagração.

Não só para músicos, diga-se de passagem. Adriano do Vale, nascido em Barretos, vem dedicando 30 de seus 52 anos para a festa, sendo locutor tanto do rodeio quanto dos shows. “Eu ia na festa quando ainda era no Recinto. Quando voltava para casa, me enfiava dentro do banheiro e ficava imitando os locutores. Um amigo do meu pai, um dia, me disse que, se eu não seguisse esses passos, eu ficaria louco”, relembra.

Ele também trabalha em outros eventos do gênero, como Jaguariúna, mas seu coração é das terras barretenses. “É um lugar de magia, onde todo mundo se encontra. Todo mundo quer estar aqui.”

César Menotti e Fabiano são os embaixadores de Barretos em 2024
Alisson Demetrio/Divulgação

*Esta reportagem foi originalmente publicada na edição #9 da Billboard Brasil impressa, cuja capa é estampada por Gusttavo Lima. Compre ou assine a revista aqui.

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Bruna Calazans

É repórter da Billboard Brasil. Formada em Jornalismo pela Universidade Anhembi Morumbi, atualmente cursa pós-graduação em Comunicação e a Nova Ordem Informacional na FAAP. Com passagens pelo Yahoo Brasil, UOL e Revista Atrevida, é apaixonada por música e especialista em Paramore.

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