A história da galeria que impulsionou o movimento black em São Paulo
DJs resistem à dominação das lojas de perucas no centro comercial
Construído em 1962, o Centro Comercial Presidente, localizado na rua 24 de Maio em São Paulo, sofreu grandes transformações desde sua abertura. Nos anos 1980 e 1990, o local foi apelidado de Galeria do Reggae por suas inúmeras lojas de discos e equipamentos de produção musical, salões especializados na cultura black e mais lojas de cultura “canábica”. É a irmã quase gêmea da Galeria do Rock, que fica a poucos passos de lá, na mesma rua, e muita gente as confundem.
Mais de 60 anos depois, a Galeria do Reggae não tem nada mais a ver com o gênero musical. Conta-se nos dedos de uma mão as lojas de equipamentos, discos e CDs sobreviventes –e resistem lá pela paixão de seus donos e funcionários.
As lojas de perucas e os salões especializados em cabelo afro se multiplicaram e tomaram conta de todos os andares da galeria. Na entrada da galeria, algumas lojistas aguardam clientes em potencial e oferecem os serviços de beleza para quem está chegando na galeria ou passando em frente.
Poucos barbeiros sobraram no meio da mulherada. Celso Barbosa e Ednaldo Feitosa, mais conhecido como Mangueira, dividiram as tesouras e as máquinas de barbear com Péricles. Isso mesmo, o cantor (os amigos foram sinceros ao falar que a habilidade do músico no salão não se compara ao seu talento na música).
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O primeiro salão da galeria foi vendido pelos donos brancos após o “incômodo” (racismo) da clientela pelos outros estabelecimentos no local.
“Na época dos bailes da Chic Show, os convites eram vendidos lá. Aí o pessoal já aproveitava para cortar o cabelo. A fila dobrava [a rua], era muita gente. Todo mundo vinha se encontrar aqui, do Brasil inteiro”, diz Celso. Jorge Aragão viajava do Rio para São Paulo só para fazer o cabelo na Galeria.
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“De uns 15 anos para cá, o pessoal da Nigéria, Angola, Congo, invadiram a galeria. Por um lado, foi legal, porque trouxe mais movimento. Só que o problema é que eles brigam muito”, avalia. A convivência entre os estrangeiros e os brasileiros é pacífica.
“Eles andam entre eles. É difícil ver uma camaradagem [com a gente]“, diz André Fiori, dono da Velvet CDs, aberta em 1991. “Aqui ficou bem nichado. Os clientes que já conhecem aqui vem sempre, mas é difícil ter alguém batendo perna, que nem fazem na Galeria do Rock”, lamenta.
“O negócio explosivo mesmo foi na década de 1980 e 1990, era tudo mais segmentado. Hoje em dia é normal ser eclético. Eu digo que o melhor cliente é aquele que gosta de tudo e de outros formatos”, acrescenta André.
Oswaldo Jr., é dono da Mr. Groove, mas montou a primeira loja na Galeria em 1987. Ele foi mudando de andar e localização no prédio até chegar ao térreo. Tim Maia e Jorge Ben Jor lideram as vendas dos discos.
Com a possibilidade de fazer negócios em qualquer lugar do mundo, o empresário tem clientes em vários países, incluindo Estados Unidos, Índia, Tailândia, Japão, Rússia, Grécia, Austrália e por aí vai. A venda on-line representa 30% do faturamento.
Entre as raridades vendidas, Oswaldo cita três CDs do Michael Jackson que nunca foram lançamentos oficialmente. “Um DJ fez um remix, que é muito ruim, e o Michael Jackson deu sinal vermelho. Só que a gravadora já tinha feito umas 50 peças. Era uma capa diferente e isso é sempre algo que interessa o colecionador”, diz.
O DJ comprou o acervo de CDs promocionais de um amigo, que trabalhava na gravadora. Entre os quatro mil álbuns e DVDs, Oswaldo achou o ouro. “Eu nem tinha noção do que era. Esses três CDs foram arrematados por um coreano. Pagou o lote que comprei e ainda sobrou um bom dinheiro, acho que foi uns dois mil dólares na época.”
E que falta faziam um aplicativo como o Shazam naqueles tempos, viu? Pelo costume dos DJs esconderem os rótulos dos LPs, Oswaldo e o público do programa “Circuit Power”, de uma rádio de grande audiência em São Paulo, ficaram sem saber o nome de uma música que bombou por quase um ano.
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“Nem o DJ, o Armando Martins, sabia de quem era o disco. Essa música explodiu, estourou. Ele ficou tocando ela por um ano e ninguém descobria. A gente chamava de ‘Melô da Abertura’, porque ele usava para abrir o programa dele na rádio”, conta.
Um conhecido carioca disse a Oswaldo que sabia a identidade do disco. A espera de 10 dias pela viagem do rapaz até a capital paulista valeu a pena. Ficou curioso? Ouça abaixo!
“Quando eu botei para tocar fiquei todo arrepiado. Você não tem noção. Eu vendi esse disco para um cara que era um ‘pirateiro’. Com esse disco, eu montei a minha loja. Foi o preço de um carro, uns R$ 40 mil. Ele chegou com duas malas de dinheiro. Minha mãe achou que eu tivesse fazendo coisa errada!”.
Identidade
A Galeria do Reggae era e continua sendo referência para o movimento black na cidade e no país. Além da venda de ingressos e da divulgação de bailes, o local servia também como palco para a construção de identidade de cada um.
Jay Almeida, DJ e empresário, frequenta a galeria desde 1989. Cinco anos depois, ele comprou a loja Florida Music Store. “Eu fiquei seis meses pensando. Eu era projetista mecânico em uma empresa, estava no primeiro ano de engenharia”, diz.
Influenciado pela mudança da companhia para a Alemanha, ele preferiu ficar no Brasil e encarar o desafio de administrar a loja. As aulas de inglês o ajudaram a fazer boas negociações e trazer os produtos do exterior.
“Viajei para Nova York, vi aquele mundo na minha frente, os negros dominando, sabe? Eu queria tentar criar um pedacinho de lá aqui no centro”, conta Jay.
“Fisicamente ainda representa um pedaço significativo para a cultura black. Você sente quando entra aqui. Só que hoje, algumas coisas acontecem só nas redes sociais e a gente está aqui”, explica o empresário.
“Tentamos fazer uma movimentação na web, mas estamos aqui. Acho que essa referência nunca vai se perder. Talvez a geração atual, dos 20 anos, não vá enxergar ou só vai quando souber dessa história. Aqui ainda é importante, mesmo que não seja tão forte como era.”
Para a rapper Sharylaine, uma das pioneiras do hip hop feminino no país, a falta de lugares centrais para que as pessoas se reúnam pode ser prejudicial.
“Isso seria muito importante para as novas gerações. Tem os espaços culturais muito próximos e correm o risco de ficar ali ‘guetizadas’, e não socializar, expandir”, avalia.
“Tem uma galera jovem que não conhece o centro. Esse circuito de encontro, de reconexão, é um caminho para de conhecer a cidade e outras pessoas. Eu sinto falta disso. Você ia para a Galeria e tinha essa coisa de identidade, de referência. E isso se perdeu”.