A ‘escada’ que Matuê construiu por cima da Sony Music
Aluno de Frank Ocean, rapper cearense segue em direção à independência
No dia 19 de agosto de 2016, Frank Ocean, sensação de uma nova forma de R&B vinda do coletivo Odd Future, lançava um álbum conceitual e visual, cumprindo seu contrato de dois discos pela Def Jam, um dos selos da Universal Music. O álbum trazia ineditas e vinha quatro anos após o sucesso do primeiro álbum, “Channel Orange”. O californiano parecia dar uma resposta aos fãs sedentos e aos pedidos da gravadora por um novo movimento autoral. Com o regulamento embaixo do braço, ele foi lá e fez “Endless”. Só que, um dia depois, fora das garras da antiga chefe, ele soltaria “Blonde” —um álbum de inéditas, também, mas com 100% dos royalties revertidos para seu bolso.
Frank, então, transformou-se, em 24 horas, em um dos ativos mais lucrativos da música. Oito anos depois, aqui no Brasil, Matuê lança “Sabor Overdose no Yakisoba” com um único objetivo: dar um pé na Sony Music —as primeiras letras do nome do álbum formam o nome da gravadora— e lançar “333”, aguardado álbum. Dono de seu próprio selo, a 30PRAUM, “Tuê” desfrutaria integralmente dos ganhos vindos da obra. Para deixar claro a relação com a major, bastou o seguinte tuíte:
Por favor não divulguem esse projeto,
— Matuê (@matue30) August 6, 2024
Com apenas três faixas, o mini-álbum é uma nota oficial de fim de relacionamento com a gravadora —publicada pela própria gravadora, sem que ela possa dizer muita coisa a respeito. No registro, Matuê concentra sua lírica em dizer que “graças a Deus eu nunca quis ser igual você” (“Reza do Milhão”), “essa bebê quer meu money” (“Honey Babe”, fazendo alusão a “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Waly Salomão) e “palavras não me movem, ações são palavras em prática e você só é bom na lábia” (“A Última Dança”).
‘Foi uma surpresa para a gente’
Foi com essa frase, em 2020, que o presidente da Sony Music, Paulo Junqueiro, classificou o sucesso de “Máquina do Tempo”, primeiro álbum de Tuê pela gravadora, lançado em 2020. Aceitar a megalomania da obra ia além das cores vibrantes do projeto gráfico, do ambiente virtual criado para dar vida a um “Tuê” do metaverso e do lançamento em vinil roxo. A Sony queria ter em seu elenco um dos maiores produtores e hitmakers do rap desta década.
Por outro lado, Matuê queria uma parceira que endossasse seu selo próprio, a 30PRAUM, e seus novos planos já que, afinal, “sempre existe mais dinheiro a fazer”, como ele mesmo rima na faixa título.
Pouco tempo depois do lançamento, a empresa fazia descer um helicóptero no topo do prédio que abriga seus escritórios, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Junqueiro disse, à época, que “esse álbum do Matuê ultrapassou todas as nossas expectativas, bateu todos os recordes possíveis. As métricas estão aí. Foi uma surpresa para a gente”. Depois, entregou 14 placas comemorativas ao artista cearense.
Presidente da Sony Music Brasil entrega pessoalmente 11 placas de ouro, platina e Diamante para Matuê por sucesso de suas músicas no Brasil e Portugal – https://t.co/I1ft4VAuXP pic.twitter.com/UOGCWzcwzu
— Rap Mais (@RapMais) November 25, 2020
Matuê explode falando das arquiteturas da segunda década deste século e encarar o sucesso de “Máquina do Tempo” como uma surpresa talvez revele a diferença de expectativas entre artista e gravadora.
Obrigado Frank Ocean por me ensinar a construir uma escada 🙏 pic.twitter.com/hFro6470MH
— Matuê (@matue30) August 5, 2024
E Matuê sabe que entender essa diferença não é fácil. Frank Ocean, em 2016, soube. Depois do impactante “Channel Orange”, lançado quatro anos antes, Frank lançou um álbum visual chamado “Endless” e, de forma controversa, terminou de cumprir suas obrigações contratuais com a Def Jam, selo que concentra alguns artistas e fonogramas de hip hop da Universal Music. É desse álbum a origem da foto que ilustra o tuíte que Matuê usa para ilustrar seu atual processo com a Sony. Um dia depois do florescer de “Endless”, Frank Ocean lançou o que de fato é seu “real segundo álbum”, “Blonde” —distribuído exclusivamente por uma concorrente digital, a Apple Music, talvez mais habilidosa para lidar com as requisições de um artista do século 21.
De acordo com Dan Rys, experiente analista do mercado musical, que escreve na Billboard norte-americana, “Frank Ocean aumentou sua participação nos lucros saindo de 14% para 70% em 24 horas, fazendo aquilo parecer um dos mais rápidos crescimentos de uma empresa no mercado musical. A Def Jam e a mãe, a Universal, ficaram travadas e foram ‘trapaceadas’ com um álbum visual que não estava à venda”, explica.
boa noite MATUE
vsf SONY— nengue (@pietreog) August 6, 2024
85% dos royalties e ‘333’
Em artigo no site Mystic Sons, Chris Bound questiona a validade de gravadoras nos momentos de maior brilho lucrativo dos artistas. “A Universal Music, empresa-mãe da Def Jam, está atualmente tentando ‘proibir’ lançamentos exclusivos de álbuns através de sites de streaming, tudo porque Ocean escolheu um em detrimento deles para seu próprio benefício. Então, novamente, isso reforça a narrativa de que as gravadoras não conseguirão mais reter seus artistas mais lucrativos, já que não têm mais um monopólio controlado sobre a quantidade de exposição que podem dar a um artista”, escreveu em 2016 após o lançamento de “Endless” e “Blonde”.
Três anos depois de “Máquina do Tempo”, Matuê e Sony explicaram o hiato de produções entre as partes. “Eu tinha parado de lançar música até renegociar meu contrato de distribuição e royalties. Hoje faço 85% de royalties sobre todos meus lançamentos mesmo dentro de uma major [grande gravadora]. Podem ‘papocar’ o play que a maior parte do dinheiro está indo para o bolso dos artistas”, tuitou o rapper, no ano passado.
De “Máquina do Tempo” para 2023, a 30PRAUM, selo do rapper, cresceu muito. Além do próprio, seus companheiros, os rappers Wiu e Teto fizeram milhões —de plays e de grana. Mesmo assim, o processo de convencimento gerou mais desgaste do que reconhecimento na relação entre artista e gravadora.
Como resultado, a Sony Music se afasta do sonho de lançar o segundo álbum do artista, o aguardado “333” e, de quebra, garante a Matuê um holofote que ele jamais teria em termos de expectativa dentro da casa. Resta ao artista, agora, conseguir que “333” seja tão impactante quanto foi “Blonde” —que, depois de lançado, além dos números, tornou-se um dos álbuns mais marcantes do gênero em que Frank Ocean atua.