Em 1994, a dupla Cidinho e Doca decidiu transformar a música “Rap das Armas”. Criada pelos MCs, também cariocas, Júnior e Leonardo, a canção original fazia referência ao novo arsenal que passava a figurar nas mãos de criminosos da capital fluminense, mas pedia paz nas comunidades. “Era um relato do cotidiano”, dizia Leonardo. A releitura ganhou versos mais agressivos, tendo o seguinte final: “Mas se for Alemão, eu não deixo pra amanhã / Acabo com o safado dou-lhe um tiro de Pazã […] E se não for de revólver / Eu quebro na porrada / E finalizo o rap detonando de granada.”
A versão de Cidinho e Doca ficou famosa por integrar a trilha sonora do filme “Tropa de Elite”, aquele mesmo do Capitão Nascimento, policial interpretado por Wagner Moura, conhecido por torturar quem considerava suspeito e futuros policiais. Ali, o Brasil – e o mundo – conhecia o proibidão, vertente do gênero funk com letras que narram, com certa complacência, o cotidiano do crime nas favelas. Principalmente no eixo Rio-São Paulo, o estilo musical tornou-se forte, sendo uma espécie de nicho do submundo para grandes artistas como MC Smith, MC Frank, MCs Renatinho e Alemão, MCs Danilo e Fabinho.
“O proibidão, musicalmente, é a coisa mais subvalorizada dos gêneros brasileiros”, diz o pesquisador Carlos Palombini. “Se tornou algo extremamente experimental.”. Na virada dos anos 2000, o funk proibidão teve seu auge.
Se nos anos 1990 ele se fortaleceu nos morros cariocas, muito como uma crônica genérica da dinâmica específica desses territórios, ao chegar em São Paulo ganhou uma roupagem na Baixada Santista, região que engloba parte do litoral do estado, os funkeiros paulistanos falavam de roubos, assassinatos de policiais e até do dia a dia dos presídios “geridos” pela facção Primeiro Comando da Capital, o PCC.
Se no início, a Baixada Santista emulava o que acontecia no Rio de Janeiro, a região passou a ter uma identidade própria e começou a ganhar fama para além das fronteiras do Estado. Depois de conquistar o interior paulista, o gênero ganhou polos em Minas Gerais e Pernambuco, principalmente. Com presença forte até os dias de hoje, um dos resquícios do sucesso de MCs do proibidão nesses estados é a ligação dos funkeiros com torcidas organizadas desses locais.
Em Minas Gerais, a Galoucura, maior torcida organizada do Clube Atlético Mineiro, cantava no estádio “Última Reza”, sucesso da dupla Danilo e Fabinho. No estado de Pernambuco, nomes mais atuais como MC Lon e MC Kauan se tornaram convidados constantes de eventos organizados, por exemplo, pela Torcida Jovem do Sport e pela Explosão Inferno Coral, do Santa Cruz.
Um dos grandes sucessos desse período é a canção “Parque dos Monstros”, dos MCs Renatinho e Alemão, que dá o papo: “Lá no parque dos monstros a chapa tá quente / É melhor respeitar, sou do bonde dos 3 / Só tem guerreiro sem vacilação / Enforca você, tira o seu coração”.
“Essas letras são como filmes, não há nada de crime nisso. Se o proibidão é crime, essas séries de TV e filmes de ação, entre outras coisas que também falam sobre violência, são o quê?”, questiona Alemão.
Mas essa não era a visão geral, tanto da crítica quanto do próprio sistema judiciário. Renatinho e Alemão, Júnior e Leonardo e tantos outros MCs tiveram que prestar esclarecimentos ao Ministério Público por conta das suas composições.
Anos 2000
Em 2005, quando o proibidão fazia muito barulho (literalmente), a Polícia Civil do Rio de Janeiro decidiu agir: indicou 13 funkeiros por apologia ao tráfico. Entre eles, MC Frank, dono de um dos maiores hits da época, “157 Boladão”. A canção, que faz referência ao artigo do código penal relacionado a assalto, dizia: “Já chegamos na agência de vista / Porra todo mundo pro chão /Só que lá fora a bala comeu /Nós acabamo ficando a pé.”
Naquele momento, para justificar à polícia – e para imprensa – o porquê cantava o que cantava, MC Frank disse que foi “obrigado pela comunidade” a se prestar a esse papel. No entanto, assim como a esmagadora maioria do mercado musical, ele era apenas o intérprete de uma obra composta por outro artista. No caso, Thiago dos Santos, mais conhecido como “Praga” ou “Caneta de Ouro”, que compôs outros sucessos do funk proibidão, como “Vida Bandida”, interpretada por MC Smith.
Anos 2010
A repressão vinda do poder policial fez com que o gênero mais subversivo do funk desse uma arrefecida nos lados do Rio de Janeiro, abrindo espaço para o ritmo tornar-se quase que hegemônico em São Paulo. De 2005 a 2010, o proibidão encontrou morada no litoral paulista, onde já havia fincado raízes. Mas o movimento sofreu um duro golpe, quando quatro MCs foram assassinados entre 2010 e 2012. MC Felipe Boladão, em 2010; MC Duda do Marapé, em 2011; e MC Careca e MC Primo, em 2012 – todos mortos a tiros, todos no mês de abril, todos com músicas do tipo no repertório.
Logo veio a suspeita de que as mortes pudessem ter relação com policiais insatisfeitos com o teor das letras. Em 2022, 10 anos depois da execução de Primo, a hipótese ganhou mais força, pois o policial Anderson de Oliveira Freitas foi preso acusado de ser o responsável pelo crime. Denunciado pelo Ministério Público, ele foi julgado em 2024 — e acabou absolvido pelo júri popular.
Depois da sequência de prisões e mortes, o funk passou a ganhar força em São Paulo e nascia uma nova vertente: o ostentação. Falando do luxo e da boa vida que o dinheiro pode oferecer, os cantores passaram a retratar um cotidiano hedonista, de muita fartura. E foi justamente no vácuo de qual seria a fonte de renda para tanta gastança, que o estado mais rico do país viu nascer uma nova fonte de composições para o proibidão.
Em São Paulo, as armas e crimes violentos, cantados nos versos, deram lugar aos crimes cibernéticos, derivados do artigo “171” e à ostentação proporcionada por brechas na lei. Nos anos 2010, MC Kapela e MC Kelvinho se destacaram por moldar no imaginário de jovens de periferia uma espécie de Robin Hood, sem a parte de doar aos pobres: o roubo era sem violência, mas o lucro ficava todo na esbórnia.
Já no Rio de Janeiro, o proibidão virou uma espécie de modelo underground em meados dos anos 2010. Com a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e fatos pontuais como a ocupação do Complexo do Alemão, os interessados em cantar os detalhes das facções criminosas e os bastidores do crime nos morros cariocas, passaram a atuar quase que na clandestinidade.
Mesmo tendo um público fiel, os funkeiros tinham que se contentar com o sucesso virtual graças ao YouTube, mas enfrentavam dificuldades em, por exemplo, ter uma agenda de shows sólida e que gerasse uma renda razoável para um artista.
Com a ascensão do trap dentro das favelas cariocas, muitos MCs que iniciaram no proibidão, migram para o “primo rico do rap”, que ainda tinha espaço para abordar temas mais espinhosos, como a citação a armas ou drogas, mas sem tanta vigilância.
É o caso de MC Poze do Rodo, por exemplo, que hoje é um dos artistas mais ouvidos do país, mas deixou de cantar músicas com a temática de facções, violência ou afins. É a dinâmica da suavidade que impera para expoentes do proibidão que ganham holofotes – em vez de falar em armas em defesa de uma facção criminosa na disputa de território, se fala da mesma arma para defesa pessoal.
Mas isso não impede o enquadramento. No ano passado, Poze foi alvo de uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que investiga lavagem de dinheiro por meio de rifas e outros jogos ilegais. Há um ano, parte dos bens do músico estão bloqueados – o que o fez desabafar nas redes sociais. “Devolve meus carros parados, que estão se acabando na poeira, devolve meus ouros, que foram conquistados com suor, luta, raça. Mais um dia acordando com ódio no peito tão grande. Solta meus ‘bagulhos’, polícia, está feio já, feião.”
Nova geração do funk
Essa nova geração de funkeiros, que se mistura com o trap, tenta deixar claro que o dinheiro vem por meios legais: desde Tigrinhos e apostas esportivas, até mesmo a publicidade tradicional, que passou a dar atenção ao funk.
A mais nova polêmica envolvendo o proibidão e seus detratores teve como foco Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, o Oruam. Filho do traficante Marcinho VP, o funkeiro/trapper ganhou fama cantando canções bem liberais para o estágio atual da música brasileira. Nada na sua obra tem relação com crimes violentos, tráficos ou algo do gênero. Ou seja: dado o histórico, o artista não tem os requisitos para ser taxado como alguém que cante proibidão.
No entanto, a vereadora paulistana Amanda Vettorazzo (União Brasil) propôs uma lei proibindo a “con- tratação de shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que envolvam, no decorrer da apresenta- ção, expressão de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas”. Juristas ouvidos pela Billboard Brasil dizem que a legislação atual já dá conta de tal tema (nenhum ente federativo pode contratar um artista que cometa crime previsto no código penal).
“A lei tem, claramente, objetivos eleitoreiros. Você tem a perspectiva que a pessoa vai fazer algo e decide punir? Isso não faz o menor sentido. É inconstitucional e completamente absurdo”, diz Danilo Cymrot, doutor em Direito pela USP e autor do livro “O funk na batida: Baile, rua e parlamento”.
A grita da extrema direita ecoou por casas legislativas do país, chegando até a Câmara dos Deputados, com o congressistas Kim Kataguiri replicando o projeto em Brasília.
Há uma corrente no estudo da sociologia que acredita que a história da humanidade é cíclica. Ou seja: mais dia, menos dia, os eventos do passado se repetirão no presente – com algumas adaptações. No caso do funk, essa lógica ajuda a compreender o momento atual do proibidão. Mesmo mudando
o discurso, funkeiros como o próprio Poze do Rodo, Oruam, MC Ryan SP e outros, mais ou menos ligados a letras que podem gerar debate sobre liberdade de expressão, vêm enfrentando represálias do poder público.
No fim das contas, do samba ao funk, da capoeira ao passinho, a história se repete: mudam os ritmos, mas sempre aparece alguém para lembrar o porquê é proibido pisar na grama.