Por que jovens estrelas do gospel estão deixando o gênero tão cedo?
Investigamos as razões por trás do abandono do poderoso gênero
“Só eu sei as alegrias, mas também as muitas dores que esse nome me traz”, escreveu Priscilla Alcantara no dia 31 de outubro, numa carta aberta endereçada aos fãs. Nela, a cantora explicava porque passaria a usar Priscilla como nome artístico, abandonando o sobrenome com o qual ficou conhecida. Sua nova versão abandonou também o gospel, gênero do qual foi uma das estrelas principais.
Os desejos de boas novas que Priscilla expressou no texto não receberam boa acolhida por parte do público religioso.“Que liberdade é essa que te aprisiona, muda sua essência, e te afasta de Deus?”, “Parece que vendeu a alma”, “Pois, o que adianta o homem ganhar o mundo inteiro e perder sua alma?’ Marcos 8:36” foram alguns dos comentários em reprovação às mudanças adotadas pela cantora, de 27 anos.
A conversão definitiva de Priscilla a um repertório mais, digamos, profano (ou secular, como se diz na igreja), não deixa de ser surpresa para quem acompanha a sua carreira. O discurso gospel foi adotado por ela desde sua estreia, com “O Início”, de 2008. Nos últimos tempos, ela vinha acompanhada por um ritmo mais dançante, próximo ao pop das divas internacionais. Mas, dessa vez, o que restava de sua conexão musical como gospel se tornou pó. Mais especificamente, vermelho. Priscilla mudou o cabelo, botou as tatuagens para jogo e anunciou um disco homônimo–assim como ela em sua nova fase, apenas “Priscilla”. “Quer Dançar”, primeiro single, contou com sample e colaboração do grupo Bonde do Tigrão, um nome tradicional do funk carioca. A fé, contudo, ela diz que continua firme.
O gospel, segundo dados do Spotify, representa mais de 20% da indústria fonográfica brasileira. E continua acrescer: em 2022, aumentou seus ouvintes em quase 50% em relação ao ano anterior, que vinha em ascensão desde o início da pandemia de corona vírus, em 2020. No Billboard Brasil Hot 100, sua presença também é expressiva, com nomes em destaque, como Gabriela Rocha, Isaias Saad, Valesca Mayssa e Maria Marçal, esta com apenas 13 anos de idade. A cantora mirim é cotada como promessa do gênero. No entanto, os jovens artistas que vieram antes dela –inclusive Priscilla, que não quis conversar com a reportagem sobre sua saída do gospel no momento– nutrem, atualmente, outras opiniões e caminhos diferentes daquele muitas vezes esperado pelos fiéis ouvintes do gênero. Eles vêm abandonando sua sonoridade e mensagem prematuramente. Alguns o fazem deforma mais brusca, outros, em uma decisão mais direcionada para o lado artístico.
É o caso de Jamily, cantora de 31 anos, natural do Rio de Janeiro. É conhecida pelo grande público desde os 9, idade em que foi descoberta no programa de talentos de Raul Gil. “Venho de uma família muito simples. Ir para a TV foi algo contra a maré. Minha mãe acreditou no meu sonho, teve fé que ia dar certo”, relembra, em entrevista à Billboard Brasil, sobre o começo de sua jornada na música.
Com oito discos voltados ao gospel lançados desde então, Jamily decidiu, no último ano, afastar-se um pouco do gênero. Ela o trocou por uma paixão antiga, as músicas românticas como as de sua ídola Whitney Houston. Apesar da virada, a cantora diz que continua cristã e mantém no repertório músicas da fase gospel, como “Conquistando o Impossível”, que ultrapassa 23 milhões de plays nos streamings. Isso não impediu que o público a cercasse de curiosidade e comentários não solicitados sobre sua vida e, principalmente, sobre sua fé.“Eu ignoro. Às vezes, respondo, e quando passa do limite, o botão de bloquear está lá para isso”, explica.
Lidar com a necessidade de estar constantemente presente nas redes sociais é um dos maiores desafios enfrentados por Tiago Arrais. Com a dissolução do duo Os Arrais, em 2022, o cantor, então com 35 anos, lançou “Canções de Amor”. No álbum, discute temas existencialistas mais voltados para o mercado secular, ou seja, gêneros fora do gospel, que o consagrou.“Estou cada vez mais desencorajado pela forma com que a música de hoje em dia é oferecida. Os artistas precisam ficar se expondo toda hora. Parece que o cantor tem que ser mais interessante do que a arte que ele faz”, desabafa.
Essas novas obrigações foram introduzidas em seu cronograma de trabalho, após o encerramento do duo religioso que tinha ao lado do irmão, André. Mesmo com a fama, o cantor revela que nunca se sentiu muito pertencente àquele meio.“Fui criado na Igreja Adventista do Sétimo Dia. Meu pai era pastor. Minha referência disso não eram aquelas pessoas que te diziam o que fazer, aquela moralidade absurda. O que eu aprendi era ajudar quem precisava”, relembra.“Meu viés religioso, inclusive na música, era relacionado com a condição humana, e não em converter alguém. Eu queria entender, naqueles textos sagrados, o que posicionou pessoas por tantos milênios até hoje.”
A curiosidade pelo conhecimento fez com que Tiago se formasse em teologia. Atualmente, além de sua carreira musical, ele leciona o tópico e também filosofia numa faculdade dos Estados Unidos. Sua vivência também o fez deixar o gospel depois de ver suas composições usadas para fomentar posicionamentos políticos com os quais ele não concordava. Principalmente nos anos que precederam a vitória de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, em 2018. “Eu não queria mais fazer arte que seria usada para criar dano para o ser humano. Muitas pessoas do meio gospel instrumentalizam a Bíblia para fazer o mal”, diz.
A música para o mundo gospel não tem apenas uma função artística. É uma extensão da pregação que acontece dentro das igrejas, nos cultos, por meio da palavra falada. É ainda uma forma de identificação social e cultural, embora se isentar ou expressar opiniões políticas no gospel não seja considerado pecado. Mas Maurício Soares, ex-diretor da Sony Music Gospel por 12 anos, reitera que, para uma porcentagem significativa do gospel, a história é diferente.“Do meu ponto de vista, como cidadão, eles têm todo direito de se posicionar. No entanto, cantores que se expressaram politicamente de uma forma diferente da direita estão sentindo as consequências. Mas isso não é uma questão só do gospel.”
A maior resistência do gênero reside em outro lugar para a comunidade evangélica, e virou um dos maiores motivos para a desistência de jovens talentos do gospel: a sexualidade. “Existem coisas no segmento cristão que são inegociáveis. Ser gospel não é interpretar uma música, é entender um modo de vida. É impossível cantar o que não está sendo vivido”, afirma Maurício.
O goiano Jessé Aguiar, de21 anos, é o único compositor vivo na lista das músicas mais gravadas da história do Brasil. O músico conseguiu o feito com “Está Tudo Bem” e “Alívio” –esta última entoada por Maiara e Maraisa durante o funeral de Marília Mendonça. Antes dos dias de glória, porém, Jessé passou necessidade durante a adolescência, tendo que se desdobrar em empregos para auxiliar a mãe e o irmão em casa.
Mas esse não foi o único motivo de sofrimento para ele: o maior deles foi suprimir a sua homossexualidade, que não é bem-vista no mundo gospel. E isso quase lhe custou a vida. Jessé apelou até para pedir para ter não ter mais aquela sexualidade –o “método” da “cura gay”, que não possui nenhum embasamento científico, virou alvo de um projeto de lei da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que pretende equipará-lo à tortura. “Ouvi no culto que homossexuais iriam queimar. Eu pedia milagres para Deus: vários foram atendidos, mas esse nunca”, recorda.
Os pensamentos intrusivos que desencadearam em grandes crises de ansiedade fizeram o jovem começara escrever músicas em busca de algum conforto. Quando tentou cometer suicido, foi salvo por um violão, que caiu da cama, depois de ter escrito sua carta de despedida. O texto acabou virando música, e suas composições encantaram o dono de uma gravadora gospel que mudou sua vida da noite para o dia. Jessé virou um sucesso absoluto no gênero, entrando na lista das músicas mais ouvidas do planeta no Spotify.
No entanto, aquela bênção parecia, secretamente, uma maldição.“Eu gostava de usar barba, moletom. Não deixaram. Me colocaram de cara lavada e terno. Falavam que eu tinha que ficar com a cara da Igreja para ser aceito”, conta. A situação se agravou quando conheceu o seu primeiro namorado, Lucas, que acabou entrando para sua equipe, inflamando os boatos de que ele seria gay. “Fui cancelado. Sites de fofocas gospel colocaram detetives atrás da gente, que nos seguiam até em casa para tirar fotos. Tentaram até falar com a avó dele.”Mesmo lucrando alto no gênero, Jessé decidiu se assumir publicamente em julho de 2023. Atualmente, o cantor está produzindo um EP, fora do gospel, reunindo gêneros como pop, r&b e rap.
Experiência semelhante à de Jessé foi vivida por Manda, anteriormente conhecida como Amanda Rodrigues. Criada na Igreja, a cantora de 32 anos respira espiritualidade e música desde a infância, o que acarretou em sua carreira na música gospel. A faixa“Sobre Ele” conta com mais de 9 milhões de plays. Um fenômeno. No entanto, durante aquela fase, o fim da juventude, descobriu-se lésbica.“Nas músicas daquela época, é possível perceber uma pessoa em crise existencial. Tive que olhar para mim mesma e decidir se ia abraçar quem eu era, ou sublimar essa parte. Mas entendi que Deus me amaria de qualquer jeito”, conta. “Desde que me assumi, passei a ser uma aberração para a minha própria galera. A igreja é o lugar onde eu cresci. Minha namorada abraça muito a baianidade dela, e perguntei como seria para ela ter que negar aquela parte dela.”
Hoje, Manda segue seu processo de autoconhecimento na música e sonha com as possibilidades que esse novo momento vai trazer. Mas ela não está sozinha e revela que divide relatos em um grupo de WhatsApp com outras estrelas que eram do segmento e enveredaram pela música secular, como João Lucas, de 24 anos, dono do hit evangélico“Eu Vou” ao lado do grupo (também gospel, claro) CasaWorship e da própria Priscilla.
Em um movimento na contramão das histórias aqui contadas, o músico Pierre Onassis, ex-Olodum e atualmente na Banda Afrodisíaco, recorda-seda primeira vez que visitou o Pelourinho, em Salvador, naBahia –escondido, já que sua mãe achava a região perigosa–e entrou em contato com seus ancestrais. “Quando eu entrei na quadra do Olodum, me apaixonei pelo som do tambor e me casei com ele”, conta.Depois de anos viajando pelo país e assinando diversos hits do axé, como “Vai Sacudir, VaiAbalar”, com Cheiro de Amor, e “Cara Caramba”, do Chiclete com Banana, o cantor, então com 42 anos, decidiu se afastar um pouco desse mundo e se converteu para, segundo ele, aproximar-se de Deus. “Foi uma experiência maravilhosa de quase oito anos. Hoje, me sinto uma pessoa melhor”, recorda-se da fase, já que hoje, mesmo ainda com fé, retornou à música secular e ao axé. “A religião faz o contrário da música: ela afasta. A música aproxima. Cantar me aproximadas pessoas, e é o que Jesus sempre quis.”
O gospel estabelecido por vias tradicionais de pensamento está afastando jovens que, apesar de não se encaixarem em todas as suas provas de identificação, seguem tendo fé. Por conta disso, o gênero seguirá enfraquecido para esse público –e esses artistas–, deixando de receber a devida atenção das paradas e plataformas de streaming, uma reclamação constante da indústria. Afinal, nesse jogo de fé, a procura pelo sagrado que reside em cada um de nós vai sempre prevalecer.