O rock brasileiro vai à praia
Kid Abelha e Os Paralamas do Sucesso lideraram pop rock solar nos anos 1980
Em entrevista para a imprensa paulistana em meados dos anos 1980, Lulu Santos foi perguntado sobre o que era o “rock de bermuda”. A resposta foi uma série de impropérios dirigidos não apenas pelo cantor, compositor e instrumentista, mas também por sua então mulher, Scarlet Moon (1952-2013). Hoje, ele não apenas se sente mais confortável com o rótulo como também é um dos principais representantes do gênero ao lado de Kid Abelha, Paralamas de Sucesso e João Penca e seus Miquinhos Amestrados.
Mas, afinal, o que é o rock de bermuda? O epíteto, obviamente, foi criado para classificar aquele estilo solar e despreocupado produzido pelas bandas do Rio de Janeiro na época. Os temas –paqueras, praia e dilemas da juventude aliados ao visual (que, claro, inclui bermudas)– contrastavam com a sisudez dos grupos que surgiam em São Paulo no mesmo período.
Mas as raízes desse subgênero do pop nacional, por incrível que pareça, têm origem na cidade cinzenta. Em 1981, o jornalista e agitador Júlio Barroso criou a Gang 90 e As Absurdetes, dos hits “Nosso Louco Amor” e “Perdidos na Selva”. Como bem pontua Ricardo Alexandre, autor de “Dias de Luta”, um tratado sobre a cena musical jovem dos anos 1980: “A fórmula do grupo paulistano, com os vocais divididos com homens e mulheres e um flerte com a estética new wave daquele período, foi base para diversas bandas surgidas na capital carioca. Uma delas –talvez a principal– era a Blitz, que lançou seu disco de estreia um ano depois da Gang 90”.
“Tinha uma rivalidade acentuada pela crítica entre São Paulo e Rio de Janeiro. Alguns jornalistas paulistas começaram a fazer essa crítica meio ácida, falar de forma pejorativa em ‘rock de bermudas’. Era uma tentativa de fazer um ‘brouhaha’ com essa situação do monopólio do Rio. Todas as gravadoras estavam aqui”, diz João Barone, o baterista dos Paralamas do Sucesso, que fala de sua trajetória musical no recém-lançado “1,2,3,4! Contando o tempo com Os Paralamas do Sucesso” [Ed. Máquina de Livros].
Os principais núcleos do rock de bermuda foram o Circo Voador, casa de espetáculos surgida originalmente na praia do Arpoador, em 1982, e a Rádio Fluminense FM, também chamada de Maldita –porque tocava música alternativa e muitas demos. A casa de shows deu guarida a diversas bandas iniciantes que passaram a despertar, mais tarde, a atenção das gravadoras. A coletânea “Rock Voador” (1982), com curadoria da rádio, trazia duas canções do Kid Abelha, que na época, tinha o esdrúxulo complemento “Os Abóboras Selvagens”.
“Várias bandas estavam se formando sem que a gente soubesse. Quando começamos a nos encontrar nos lugares, como no Circo Voador, por exemplo, percebemos que muita gente estava fazendo o mesmo que nós”, conta Paula Toller, a frontwoman do trio.
A Maldita não se limitou a elaborar coletâneas. Ela também divulgou os artistas que não tinham espaço nas rádios convencionais. Um deles foi o trio carioca Paralamas do Sucesso. Em 1982, uma demo contendo “Patrulha Noturna”, “Vital e Sua Moto”, “Encruzilhada Agrícola-Industrial” e “Solidariedade, Não!” renderam à banda um contrato com a gravadora EMI.
“Era uma época em que tinha mais músicas estrangeiras do que nacionais tocando nas rádios. A Fluminense teve esse insight de fazer uma programação dedicada às bandas de rock com as fitas-demo. Dali, algumas coisas acabaram emergindo para o mainstream. Essa receita parecia óbvia demais, de furar o filtro das grandes gravadoras que apostavam em bandas desconhecidas para ver se dali surgia uma carreira. A rádio simbolizou essa democratização”, analisa Barone.
No final de 1982, o Circo Voador mudou para a Lapa. A dez quilômetros dali, João Penca e seus Miquinhos Amestrados, formado por uma turma de amigos do mesmo prédio no Leblon, ficaram conhecidos após participarem do álbum “Cantando no Banheiro”, de Eduardo Dusek. Com topetes à la Elvis Presley, os integrantes abusavam do bom humor irreverente em canções como “Psicodelismo em Ipanema” e “Lágrimas de Crocodilo”.
“Rock de bermuda era falado de forma um pouco preconceituosa por alguns colegas, como Marcelo Nova, do Camisa de Vênus, que dizia que homem sério usava calça comprida. Mas a gente era muito rock de bermuda. As mais floridas e bregas… Era difícil arrumar coisa boa. Não estava muito na moda”, diz o vocalista Selvagem Big Abreu. Apesar do sucesso, Leo Jaime, que fazia parte do grupo, preferiu a carreira solo. Seu álbum de estreia chegou em 1983, “Phodas ‘C’”, mas foi proibido de tocar nas rádios pelo tom sexual das músicas, como no caso de “Sônia”. “Vamos nessa festa fazer um trenzinho/ Você na frente e eu atrás/ E atrás de mim um outro rapaz”, ele canta na faixa, versão de “Sunny”, canção de Bobby Hebb.
Abertura política
Um dos fatores que explicam o sucesso do rock de bermuda é o período de abertura política. O processo de redemocratização durou de 1974 a 1985, período ainda comandado por militares. A aprovação da Lei da Anistia e o retor- no do pluripartidarismo no país alavancaram os movimentos que abreviaram o fim de ditadura.
“Era como se tivesse um acordo mental, social e espiritual de que, finalmente, a gente podia relaxar com relação à vigilância política. Essa era a senha para a geração pop, colorida, solar e carioca. Eles estavam dispostos a fazer letras que fossem simples, porque a gente não precisava mais decodificar coisas pela censura. E, ao mesmo tempo, letras que flertassem com uma certa tradição pop brasileira que remonta à Jovem Guarda”, avalia o jornalista Ricardo Alexandre.
As composições mais juvenis aparecem não só no rock de bermuda, mas também na MPB em geral. “Foi o período em que as canções de amor se sobrepuseram às canções de protesto”, acrescenta o produtor e compositor Paulo Massadas.
Nessa mesma época, louva-se o executivo da música André Midani (1932- 2019), que um ano antes havia contratado Lulu Santos na Warner Music Brasil. “Ele percebeu a movimentação de gente nova fazendo uma música espontânea em uma época de otimismo. A gente tinha o sonho de que o Brasil poderia ser uma democracia. A gente queria cantar sobre o que acontecia nas nossas vidas”, relembra Paula Toller.
Esse otimismo rendeu ao Kid Abelha a venda de mais de 9 milhões de discos. “No primeiro LP, ‘Seu Espião’, tivemos sete músicas entre as mais tocadas nas rádios. Foi uma sequência de 18 hits em pouco tempo”, acrescenta a cantora. A primeira formação da banda, em 1981, contava com George Israel, Leoni, Beni Borja e Bruno Fortunato. Nos anos seguintes, o grupo mudou de formação e permaneceu como um trio. O sucesso trouxe uma avalanche de críticas à líder.
“Percebi que o problema era só comigo, porque com os cantores homens das outras bandas não tinham essa mesma exigência. Talvez porque no Brasil as intérpretes que estavam em evidência eram Elis Regina, Gal Costa, Clara Nunes… Eu cheguei com um tipo de canto e atitude que era completamente diferente. Não era a atitude ‘diva’. Era uma atitude ‘rock’”, diz Paula. “Isso afetava demais [minha autoestima]. No fim das contas, o que convenceu as pessoas foi o sucesso e perceber que aquilo ia durar. Não era só uma ou duas músicas.”
Em agosto, a cantora celebrou os seus 40 anos de carreira com o projeto audiovisual “Amorosa”, registro da turnê que leva o mesmo nome. “Eu não tinha essa consciência de ser mulher em uma banda. Eu era uma garota que queria estar com os meninos e poder fazer o mesmo que eles faziam. Bruno foi o primeiro a chamar a minha atenção para isso. Só depois fui sacar que ele já estava percebendo o que viraria ‘a’ coisa [do Kid Abelha].