O novo pop baiano que ocupa o vácuo da axé music e tem sede de futuro
BaianaSystem, Àttooxxá, Afrocidade e Ayabass levantam um novo movimento
Era 2010 e havia uma novidade pairando por Salvador. O circuito Barra-Ondina, tradicional no Carnaval baiano, que abriga os grandes camarotes e que se acostumou a receber estrelas do axé, avistava um trio que fazia a terra tremer com graves potentes.
Não era Daniela Mercury, Asa de Águia, Bell Marques ou Léo Santana, tampouco os arrastões de Ivete Sangalo ou da Timbalada. Era o BaianaSystem, acenando com solos de guitarra baiana, que por anos ficou esquecida e aqui voltava ao posto de protagonista. Russo Passapusso, Roberto Barreto, Marcelo Seko e Japa System (percussionista que hoje faz voo solo) avisavam que aquele Carnaval adentrando a avenida tinha um quê de revolta.
“Nossos questionamentos muitas vezes não têm respostas”, reconhece Roberto que, hoje, vê sua guitarra baiana comandar uma multidão de 200 mil a 500 mil pessoas nos Carnavais de Salvador e de São Paulo. Segundo ele, é importante para o grupo gerar a compreensão de que não está lá apenas para tocar e receber cachê.
O Navio Pirata, imponente trio elétrico do BaianaSystem, promove uma catarse que acontece de forma simbiótica: a banda entrega pancadas sonoras e multimídia aliadas a um discurso que parece mover os corpos, mas também uma energia de gira, comunhão e propósito. Em retribuição, o público se move de acordo com os comandos do vocalista e MC, Russo Passapusso, em direção a um momento de êxtase. Momento esse que conversa com todos os bailes espalhados pelas favelas brasileiras –sejam de pagodão baiano, funk, reggae ou brega.
E foi a partir justamente desses questionamentos sem respostas que a banda fez da estranheza laboratório para abrir alas para um novo pop baiano. “Frevo Foguete” pergunta como serão os futuros Carnavais; “Duas Cidades”, uma das mais conhecidas, provoca o ouvinte ao discutir a desigualdade social, mapeando a cidade de Salvador: “Cidade Alta ou Cidade Baixa. Diz! Em que cidade que você se encaixa?”.
Há quem diga que é como um fenômeno acompanhar um show do BaianaSystem, Carnaval desse ano, o maior sucesso do BaianaSystem, “Lucro (Descomprimindo)”, tem 25 milhões e sequer aparece entre as mil músicas mais ouvidas. Não é pouco, claro. E, segundo Roberto, que costumava trabalhar como radialista em Salvador e entende bem do mercado, é tampouco uma disputa. “Apesar de eu saber que tudo o que diz respeito ao mercado envolve essa coisa de ‘quem tem mais’, não podemos ficar reféns disso. A gente faz coisas que são totalmente inversas ao que o mercado espera. Nossa música mais recente [‘Batukerê – Toda Fé de Salvador’] tem seis minutos, orquestra, arranjo de cordas e sopros, coro gravado em igrejas”, enumera, provando que o pop pode vir em muitas roupagens.
Curtir o regional antes de pensar global
A cinco quilômetros da muito cantada praça Castro Alves, em Salvador, fica o WR Bahia, lendário estúdio onde estrelas da axé music se forjaram durante décadas. Em uma das cadeiras está um roqueiro do extremo norte da Bahia: Rafa Dias, o RDD, criador do Àttooxxá e produtor-chave desse novo pop baiano.
A ideia é curtir o espírito regional antes de pensar em uma musicalidade que possa ser global. Com 34 anos e prestígio no mainstream, Rafa tem, hoje, um nome consolidado na produção musical. O hit “Elas Gostam (Polpa da Bunda)” estourou a bolha e levou o Àttooxxá para bailes e shows pelo Brasil inteiro.
A música, regravada em todos os ritmos possíveis no Carnaval de 2018, acumula 17 milhões de plays e virou referência de som de paredão. Quando analisa a valorização de sua assinatura como produtor, Rafinha vê outro fator além do genético-cultural da Bahia.
“Misturar a música daqui com o pop e o eletrônico é algo que sempre se fez por aqui. Acho que, primordialmente, tem um quê de postura, de não ser referência pelo ‘sorrisão’.” O “sorrisão” ao qual o músico se refere é o estereótipo do “povo feliz”, tão comum na Bahia e que segundo ele, ainda encontra ecos na música produzida por lá. “A minha geração pegou muito do rap, do reggae. É não se sujeitar a ter que dar sorrisinhos para satisfazer ego por aí.”
E completa: “Poucas pessoas pararam para entender o que o Carlinhos Brown fez no rolê da Timbalada. O primeiro disco deles tinha até sample. Você ouve agora e parece que foi feito hoje de manhã. Está em nosso DNA essa música que é global, mas com muito sotaque”, analisa o produtor, que também passou a assinar pagodeiras em outros idiomas, como em “Me Gusta”, colaboração de Anitta com a rapper norte-americana Cardi B.
Nessa guinada musical, surgiram outros nomes, como 7Kssio (dono de pagodeiras como “Senta Na 9”, uma das músicas do Carnaval baiano de 2022), Robyssão (carioca enraizado em Salvador, representante de um pagofunk, que mistura o pagodão baiano com o ritmo carioca) e o Afrocidade (que, ao esquema big band, funde o pagodão a uma pesquisa de ritmos ancestrais da Bahia).
A reivindicação pagodeira
O músico e arte-educador Eric Mazzone fundou o Afrocidade a partir de oficinas de percussão no núcleo de música da Cidade do Saber, no município de Camaçari, na região metropolitana de Salvador. Para ele, há um fio condutor de todas essas histórias que se fundem ao pagodão. “A gente se relaciona com esse jogo pela verdade. Esse é o fio que nos conecta”, afirma, citando que, se há novos protagonistas nesse universo musical, há também uma herança ancestral que faz a liga entre passado, presente e futuro.
“Hoje, O Kannalha está se conectando com a Pabllo Vittar, o Afrocidade dialoga com o território da Marina Sena, Xênia França e Luedji Luna vêm com uma outra linguagem pop. Antes, tínhamos na cena o Olodum, o Ilé Ayé, o Malê Debalê fazendo também outros movimentos de originalidade.”
No Brasil, o pagodão baiano reivindica seu espaço no tempo, especialmente com um olhar para o futuro. As pagodeiras melódicas da Bahia conseguem, agora, dominar as ruas e reconquistar as rádios e suas paradas musicais. Além disso, têm um nome entre os mais ouvidos no pop brasileiro: Léo Santana, que aparece com frequência no Billboard Brasil Hot 100.
“Foi o primeiro grande nome dessa geração. Foi o primeiro cara que fez o pagodão entrar numa esfera pop do Brasil, de um jeito que a gente olhava e falava: ‘Esse cara é foda para caralho’. Postura foda, humilde, está ligado em tudo. Comunica e faz pop”, define Rafa. “A Bahia abraça as paradas que são reais. Léo, Márcio Victor [líder do Psirico, outro fenômeno do fim dos anos 2000], esses caras, são o puro suco do que é o groove.”
A mistura é o que traz o novo, que criou possibilidade de renovação no passado e agora planta sementes de uma renovação para o futuro –ainda que hoje possa causar estranheza ou gerar os tais questionamentos sem respostas aos quais o BaianaSystem se referiu lá atrás. E é o próprio Léo Santana que se lembra de uma dessas revoluções: a música “Rebolation” que, na época, inaugurou esse novo capítulo na história da música popular baiana.
“Eu costumo dizer que somos a atualização da axé music”, contextualiza Léo Santana. “A gente trouxe uma outra pegada, colocando mais referência gringa, uma guitarra mais para o r&b, o pagotrap. Em 2010, polemizamos ao misturar eletrônico com pagodão em ‘Rebolation’. Mas não faço o que faço por ser modinha. É algo que está no meu som porque é o que eu escuto desde pequenininho. Seja o Harmonia do Samba, seja James Brown, seja Phil Collins”, diz Léo.
‘Um futuro diferente para as vozes negras’
O mercado musical brasileiro também esbarra na ignorância quando o assunto é a música baiana feita por artistas negras. A invisibilidade das mulheres do axé e do Carnaval da Bahia –e a atenção seletiva para cantoras brancas que, por vezes, não são nem nascidas no estado– foi a motivação por trás da criação do trio Ayabass.
Formado em 2018 por grandes nomes do pop baiano e encabeçado pela cantora, apresentadora e atriz Larissa Luz, contava ainda com Luedji Luna e Xênia França. “A ideia era refletir as carreiras de mulheres negras da Bahia que não despontaram, ou que não tiveram o espaço que nós consideramos justo”, relembra Larissa.
O repertório, pensado inicialmente para rodar a Bahia durante aquele verão, homenageava nomes como a cantora e ministra da Cultura, Margareth Menezes, e nomes menos conhecidos fora da Bahia, como Alobêned, Márcia Short e Virgínia Rodrigues. Em hiato desde 2020 (pandemia…), o projeto voltou à ativa, claro, em Salvador. Mas vai expandir seu alcance para outros lugares do Brasil, como no festival Doce Maravilha, que acontece em maio no Rio de Janeiro, assim como em Brasília e Curitiba.