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Música indígena para além da sobrevivência

Música indígena para além da sobrevivência

Avatar de Isabela Pacilio
Ilustração da artista Moara Tupinambá para a reportagem da Billboard Brasil

Em guarani, a expressão jarahá pode ser traduzida como “estamos levando”. Ela simboliza a força dos povos originários para manter as tradições culturais e a luta contra a de- marcação e a perda de suas terras. Três meses após o lançamento de “JAHARA”, parceria de Alok e com o coletivo Brô MC’s no disco com artistas indígenas “O Futuro É Ancestral”, os Guarani Kaiowá sofreram novos ataques.

No começo de agosto, cinco indígenas foram hospitalizados após conflitos com pistoleiros na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, no Mato Grosso do Sul. Na música lançada com o DJ, o grupo de rap declama: “A gente grita, mas ninguém nos ouve”. A súplica traduz o histórico de violência que os povos originários do Brasil enfrentam há séculos.

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Kelvin Mbarete, Charlie MC, Bruno VN e Clemerson Batista são de famílias tradicionais de rezadores e lideranças Guarani Kaiowá. Os desafios do dia a dia, como questões de tradição e demarcação de território, originaram o quarteto, em 2009. Toda vez que saem de casa, para longe da família, as duas duplas de irmãos passam por rituais de proteção.

“A reza que minha mãe faz é para que coisas boas nos aconteçam. É um escudo para proteger a nossa caminhada”, explica Kelvin, irmão de Charlie, para a Billboard Brasil. Bruno completa: “Fazemos rituais com nosso avô. É muito importante porque nos livra das coisas ruins do nosso caminho. É algo que se passa de geração para geração”.

A população indígena no Brasil chegou a 1,7 milhão de pessoas de 305 etnias, segundo o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A luta de séculos busca espaço no mercado de trabalho, educação e política, além de ser contra o apagamento cultural desses povos. Nos últimos anos, a batalha ganhou reforço: a música indígena contem- porânea conquistou espaço nos festivais mais famosos do país. Brisa Flow, Suraras do Tapajós, Nelson D, entre outros, fizeram parte dos line ups do Lollapalooza Brasil, do Coala Festival e do Primavera Sound São Paulo. Em setembro, é a vez de Katú Mirim subir ao palco do Rock in Rio, seguindo os passos dos Brô MC’s –primeiro grupo de rap indígena a participar do festival, em 2022.

Brô MC's
Brô MC’s (Gustavo Paixão/Divulgação)

Nem todos entenderam o propósito do quarteto de MCs indígenas, funda- do há 15 anos. “Foi muito malvisto [na aldeia] por ser algo novo e moderno. O rap sempre foi marginalizado. Muitos não sabiam o que era, e aí veio a estranheza. ‘Será que esses caras estão trazendo alguma coisa ruim para a aldeia? Eles estão saindo da nossa cultura?’”, explica Clermerson.

Após conversarem com as lideranças, os rappers foram abraçados pela comunidade. “Ouvíamos as batidas dos Racionais MC’s no rádio. Entendemos que eles falavam sobre suas realidades e convivências. O que acontecia nas nossas aldeias era parecido, mas ninguém cantava sobre o povo indígena”, diz Kelvin.

Em julho, Lucia Alberta, diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, reforçou a importância da demarcação das terras indígenas –como a principal forma de garantir segurança, educação, saúde e cidadania aos povos. Tudo isso é ameaçado pelo marco temporal, tese jurídica que compromete a atuação da autarquia nos processos de demarcação, deixando os povos indígenas sujeitos à violência e a invasões territoriais, além de contrariar a Constituição de 1988, que garante seus direitos.

Nascida no Maranhão e criada no Complexo da Maré, no Rio, Kaê Guajajara quer abordar questões em suas músicas que vão além da luta. Autora dos discos “Zahytata” (2003) e “Kwarahy Tazyr” (2021), a cantora rebate os estereótipos. “Acham que só vamos falar sobre nossas batalhas, ou então sobre natureza”, desabafa. “Podemos cantar sobre outras coisas. Sempre me chamavam para falar sobre sobrevivência, e comecei a me incomodar. Temos o direito de cantar sobre a vida, sobre nossos corpos e como amamos”, enumera ela.

Kaê Guajajara
Kaê Guajajara (Daniela Hallack Dacorso/Divulgação)

A união faz a força

Em 2019, Kaê Guajajara e o poeta e cantor Kandú Puri criaram a AZURUHU no Rio. Antes um coletivo de artesãos, o projeto é hoje um selo artístico voltado ao desenvolvimento da carreira de artistas indígenas. Os cofundadores conciliam os próprios trabalhos na música com mentorias para seus “parentes” –palavra usada como reconhecimento de representantes de di- ferentes povos enquanto indígenas.

Eles citam a parte burocrática da indústria como uma das principais dificuldades para alavancar suas carreiras –seja por falta de verba para se resguardar juridicamente ou pela falta de informações para classificar seus trabalhos em órgãos públicos e plataformas de streaming.

“No meu último lançamento, precisei selecionar [no sistema] um idioma que não era meu. Tem milhares de gêneros europeus e afros, mas não se encontram os indígenas. A gente é forçado a falsificar os nossos registros para poder fazer as coisas acontecerem”, diz Kandú. “Foi difícil entender direitos autorais. Passei por poucas e boas na mão da burocracia, sem contar a questão de roubo [de músicas]”, acrescenta Kaê.

Kandú Puri
Kandú Puri (Mariana Monteiro/Divulgação)

O cantor enfatiza: eles colhem os frutos das lutas dos ancestrais. “Não [temos espaço hoje] porque algum empresário está sendo bonzinho e gostando de indígenas. Quem lutou antes possibilitou nossa chegada aqui com a força e cultura vivas”, ex- plica. “Quando abre uma trilha, você se machuca muito. Quebra galhos, cipós… Estamos fazendo isso para os próximos não se ferirem tanto.”

Quem também está junto na abertura de caminhos é Brisa Flow, produtora e cantora que explora jazz, eletrônico e neo/ soul. Filha de artesãos mapuches, povos originários do Chile e da Argentina, ela foi criada em Minas Gerais. Em Belo Horizonte, descobriu o hip hop e deu à luz seu primeiro disco em 2016, “Newen”.

O álbum seguinte, “Janequeo”, chegou em 2022. “Também é uma alegria estar em lines de eventos menores. Principalmente quando é na quebrada, lá longe. Já fui em lugar que tinha baile de forró depois. É assim que vamos chegar nos públicos de massa”, avalia. “[Nós artistas indígenas] temos missões diferentes, cada um no seu trabalho artístico. Trabalhamos porque precisamos desconstituir esse olhar racista. Para que os nossos jovens tenham perspectiva. Se a gente está conseguindo, eles veem que podem conseguir também.”

Brisa Flow
Brisa Flow (@tonsdefoto/Divulgação)

Aliados

Na busca por novos patamares de visibilidade, artistas como Alok, Max Cavalera e Maria Gadú são reforços para a conscientização das questões dos povos. Em junho, o DJ lançou o álbum mais significativo da carreira, “O Futuro É Ancestral”, com participação de músicos e lideranças indígenas nas nove faixas. “Meu papel aqui é como eu posso potencializá-los, porque voz eles têm”, disse Alok na época. Ele investiu cerca de R$ 4 milhões no projeto e ofereceu novas moradias para os artistas.

Filha de uma família de indígenas, Maria Gadú se reconectou com sua ancestralidade. O aprofundamento resultou na série “O Som do Rio”, de 2022. Ela viajou de barco pelo Rio Tapajós ao lado da ativista Val Mundukuru, gravando os sons da floresta e conhecendo os povos indígenas da região.

“Meu nome é Mayra, mas as pessoas me conhecem como Maria Gadú. Minha relação com povos indígenas vem do momento em que nasci, entendendo que meu pai optou por me dar um nome indígena para respeitar nossa história. Ele vem de uma família indígena, da bacia do Rio Negro, uma história apagada como tantas outras”, diz a compositora no vídeo do projeto. “A luta pela mãe Terra é a mãe de todas as lutas, isso me bateu muito profundo. Se não tiver todo mundo, não tem casa, não tem mãe Terra, não tem luta.”

Há quase 30 anos, o Sepultura era um dos pioneiros do mainstream a trazer a cultura indígena no heavy metal. O álbum “Roots”, com músicas gravadas com a tribo Xavante em Canarana, no Mato Grosso, e com vocalizações dos indígenas, marcou a trajetória da banda.

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Coletiva de imprensa sobre o lançamento do novo álbum de Alok (Filipe Miranda/Divulgação)

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