Em depoimento exclusivo à Billboard Brasil, a empresária e diretora artística Constança Scofield, de 52 anos, falou sobre sua trajetória dos palcos com a banda Penélope para o comando da Toca do Bandido –estúdio que ergueu ao lado do então marido, Tom Capone (1966-2004), morto num trágico acidente de moto na volta do Grammy Latino, de onde saiu vencedor.
“Éramos uma família baiana na região do cacau, no sul do estado. Minha mãe tinha discos da geração dos anos 1970 da MPB, e meu pai tocava violão. Frequentei uma escola montessoriana, bem progressista para a época. Fazíamos iniciação musical, tocávamos flauta e instrumentos percussivos. Com 10 anos, comecei a estudar um pouco de música clássica, e nos mudamos para Salvador. Foi um choque cultural, o axé era muito forte.
Na adolescência, me encontrei no indie rock e no shoegaze. De repente, eu estava lá, no fundo da sala com o pessoal mais roqueiro. Comecei a namorar um guitarrista e descobri o mundo das fitas demo. Mergulhei em The Cure, Ride, My Blood Valentine… Quando a MTV chegou à Bahia, a coisa explodiu. Ampliei minha visão com meu namorado e também quando conheci a Érica [Martins], na faculdade de direito.
Começamos o Penélope em 1997 e nos voltamos para a tropicália e os Doces Bárbaros. Éramos conscientes, mas sem bandeiras. A gente não assumia esse papel [de feministas], mas o feminino era importante. Não abriríamos concessões para nos impor diante dos homens. Passávamos por cima. Não víamos preconceito nem cara feia.
O cenário dos nossos shows era uma calcinha gigante, cheia de babadinho, feita pela artista Bebel Franco, porque os caras ficavam pedindo para ver nossas calcinhas. ‘Já mostramos a calcinha, agora vamos continuar com a música?’. Tinha esse humor, era muito legal, mas não íamos parar o show para brigar. Era um rock mais doce, reflexivo, que abraçava todo mundo, mas não tínhamos tanta maturidade. Éramos cruas. Vejo o quão arriscada foi a aposta da Sony na gente. Era uma gravadora mainstream, mas que estava de olho no Nordeste. Eles tinham acabado de contratar o Chico Science (1966-1997).
Tom Capone (1966-2004) foi um grande parceiro artístico e produziu nosso primeiro disco, ‘Mi Casa, Su Casa’ [1999]. Ele trabalhava de um jeito tão simbiótico que não assustava nenhum artista. Era um talento, nem dava para perceber as alterações sendo construídas. Ele nunca inibia o processo criativo do artista e sempre vinha com ideias perfeitas. Tom era um gigantão apaixonante, e a nossa história não foi diferente.
A gente se conheceu em janeiro de 1998 e, no final do ano, já estava casado. Saí da banda, tirei minha carteira da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e engravidei do Bento. Vivemos juntos até 2004, quando ele morreu. Aconteceu dois anos depois que o estúdio do Tom, a Toca do Bandido, tinha sido construído no fundo da nossa casa.
Ele estava numa ascensão vertiginosa., tudo apontava para uma carreira internacional. Tom teve cinco indicações na edição do Grammy Latino daquele ano, incluindo produtor. Ele estava em Los Angeles e me ligou entre a cerimônia e a festa, decepcionado por não ter ganhado nesta categoria, porque queria trazer o troféu para o Bento [Maria Rita ganhou, naquele ano, o prêmio de disco de MPB por ‘Maria Rita’, produzido por Tom]. Eu o acalmei, dizendo que ainda tínhamos que produzir mais artistas latinos e que a música brasileira tinha um dever de casa de integração com esse mercado a fazer.
A Toca não parava. Eram duas equipes funcionando 24 horas por dia. A gravidez e o nascimento do Bento me fizeram desacelerar e filtrar esse turbilhão de trabalho, abundância e sucesso. Conheci a yoga e voltei meu foco para saúde, paz e conexão com a gestação, o que foi fundamental para me preparar para receber a trágica notícia.
Era manhã em Los Angeles, tarde no Rio. Eu tinha ido ao pediatra com o Bento. Estava no carro com um amigo da Toca, o Tarta, que estava dirigindo. Recebi a ligação do Álvaro Alencar, braço direito do Tom e engenheiro da Toca. Ele começou falando: ‘Não sei como te dar essa notícia’. Minha resposta foi de um pragmatismo, direta ao ponto, como se eu tivesse me preparado para viver aquele momento dramático.
‘Ele está vivo ou morto?’ Foi um período muito longo de sofrimento. Dor emocional, física, como se os meus órgãos tivessem sido triturados. Uma marca psicológica pesada com reflexões muito profundas sobre efemeridade, merecimento, vida. Mas a formação jurídica e o mergulho na yoga me fizeram olhar para a frente e encontrar caminhos para dar continuidade ao legado de Tom –e ver o Bento crescer conectado com a história do pai. Hoje, nosso filho é A&R do Toca Discos, selo do estúdio. Logo depois da notícia do acidente, nossa casa ficou cheia até a chegada do corpo dele dos Estados Unidos, que demorou cinco dias, para o velório. Foi uma comoção absoluta, Tom era muito amado.
Mas o que iria acontecer dali para a frente? Tive que botar a mão na massa, resolver milhares de coisas. Eu não podia vender tudo e ir embora, voltar para Salvador. No luto, a gente segura a respiração e vai. Só existir não tem a força para te trazer para a luz no fim do túnel. Bento era a minha felicidade. Fui me virando. A música me ajudou com a dor e me deixava viva. Foi terapêutica e determinante para a minha recuperação. Mas olhar para trás é sempre muito difícil.
Cinco anos depois, conheci o Felipe [Rodarte, atual marido, também músico]. Ele fez todos os rituais em homenagem ao Tom. Foi bonita a forma como ele abraçou o Bento, a Toca e a minha história. Juntos, tivemos Vicente, em 2012. Na Toca, sinto que temos uma missão com a cultura brasileira.
Existe um desejo do mercado de dar um tempo maior para a música, e ela não ser mais tão descartável. Acredito num movimento de artistas e produtores que focam mais a qualidade. Mas, agora, quero contar a trajetória do Tom. Quero fazer livro, documentário, algo biográfico e lúdico. Ele tinha esse mote de a música não ter fronteiras. Vivemos isso agora, mas, em 2000, ele já falava disso. Era um visionário.”
Esta matéria foi originalmente publicada na edição #11 da revista Billboard Brasil, cujas capas são estampada por Caetano Veloso e Maria Bethânia, Mariah Carey e Xamã. Saiba mais sobre esta edição.