fbpx
Você está lendo
Filipe Catto detalha reafirmação de gênero e redescoberta artística: ‘Me dá orgulho’

Filipe Catto detalha reafirmação de gênero e redescoberta artística: ‘Me dá orgulho’

Cantora não binária falou com exclusividade à Billboard Brasil sobre trajetória

Avatar de Billboard Brasil
catto

Filipe Catto é uma cantora não binária –pessoa que não tem sua identidade e expressão de gênero limitadas ao masculino
nem ao feminino. Ela encontrou em Gal Costa a inspiração, a força e a confiança para ser ela mesma. Em depoimento exclusivo à Billboard Brasil, a cantora fala sobre seu processo de reafirmação de gênero.

“Quando eu era criança, chegava para a minha mãe e falava que não era menino. Não me sentia daquela forma e rezava para poder ser quem sou hoje: uma pessoa trans não binária. Era meu maior sonho. Meus pais, coitados, fizeram o que podiam. Não destruíram minha individualidade infantil por falta de amor, mas por ignorância e medo. O destino de uma pessoa trans naquela época era a morte, a violência e a marginalidade. Foi muito complicado crescer nesse mundo sem ter nenhuma representatividade

VEJA TAMBÉM
Design sem nome 7

Quisera eu, com cinco anos, ver alguém não binário na TV para ajudar a minha mãe a me compreender. Hoje, isso é uma questão resolvida entre nós. Assim que descobri que pessoas não binárias existiam, fui atrás para entender e li muitos livros. Vi que poderia ter liberdade dentro da minha vivência. Caiu como uma luva. Minha afirmação de gênero me arrebentou inteira por dentro, mas foi um alívio. Ser uma pessoa trans é um processo, e temos que nos tratar com muito carinho.

Meu pronome é ‘ela’, mas entendi que não precisava ser a Barbie e que havia milhares de formas de existir. Mas me senti livre mesmo quando compreendi que eu era uma cantora. Essa palavra me deu liberdade. Eu já era uma cantora lá atrás, quando tinha uma banda de rock aos 14 anos. Na época do ‘Saga’ [disco de 2009], usava até mullet. Mas sempre fui uma cantora. E sou uma pessoa, não um produto. Claro que teve gente que parou de me acompanhar [após a reafirmação de gênero], porém, o público que ficou do meu lado foi muito generoso. Criou-se uma rede de apoio e carinho. A gente tem que andar para a frente. Quem não estiver na minha barca, que não venha.

Filipe Catto Credito Juliana Robin 3
Filipe Catto (Juliana Robin)

Meu ideal de sucesso era poder fazer meu disco como e na hora em que eu quisesse. O resto foi secundário. Quero ter o prazer de levar minha música para todos os lugares com autonomia. Eu amo ser uma artesã com meu próprio tempo. Claro, nem tudo foram flores. Os últimos anos me trouxeram paradas e perdas bruscas. Minha turnê foi interrompida, lidei com a morte do meu ex-marido, e um namoro de cinco anos chegou ao fim. Precisei voltar para dentro, pegar meu violão e sair tocando sozinha. Isso fez com que eu fosse para outros lugares da minha cabeça e encarasse de outra forma o que era o meu trabalho.

No começo do ano passado, surgiu o projeto para cantar Gal Gosta (1945-2022), a convite do Sesc, em São Paulo. Eu, então, estava arranhando as paredes do poço. Tinha chegado no limite do que eu poderia fazer. Estava em estúdio, gravando meu álbum de inéditas, mas mexi em coisas muito densas da minha psique. Foi um processo de saúde mental delicado. Gal foi um presente dos céus. Me botou no palco, enfrentando todas as minhas disforias de corpo, com um figurino revelador e sensual. Ela me devolveu para um lugar de confiança, bem-estar, crença no meu trabalho e de mais fé. É uma artista que sempre esteve nas minhas entranhas. A ouvia desde o berço e, na adolescência, descobri a fase roqueira dela. Fiquei louca. Foi transformador.

Gal é símbolo de potência, feminilidade e bom gosto. Ela sempre esteve envolvida com o que há de mais chique na música brasileira e me inspirou de diversas formas. Fiquei na dúvida se faria o projeto ‘Belezas São Coisas Acesas por Dentro’ [trecho da canção ‘Lágrimas Negras’, lançada por Gal em 1974]. ‘Eu sou apenas uma pobre camponesa, será que vou cantar Gal Costa?’.

Filipe Catto Credito Juliana Robin 2
Filipe Catto (Juliana Robin)

É uma responsabilidade muito grande assumir esse repertório. Só que minha pombagira bateu no meu ombro e falou: ‘Você vai fazer, sim. Está na hora de parar de se fazer de fofinha. Vai lá e canta’. Liguei em seguida para a minha empresária e avisei que o show seria bem rock. Criamos o projeto com total despretensão. Eu nunca deixaria de fazer meu trabalho, essa é a minha vocação. Faria isso com dois palitos de fósforo e um grampo de cabelo. Iria para bares e karaokês, como eu fiz durante anos. Mas um trabalho com tanta dignidade, com a banda, com equipe técnica e tudo, realmente curou a minha cabeça.

Após um processo muito doloroso de terapia, pesquisa interna, desconstrução, loucura, sexo, drogas e rock n’ roll, cheguei em cima do palco com uma roupa transparente, calcinha enfiada na bunda, cabelo na cintura e cantando ‘Tigresa’ e ‘Vaca Profana’. Foi desafiador e libertador. Demorei anos para colocar minha energia dessa forma em cena. O artístico se enrosca com o pessoal, e o ‘Belezas’ traduziu muito bem esse momento de ser, esse meu grito de liberdade atual. É uma homenagem para a Gal e uma afirmação dessas canções no presente. Podia ter dado tudo errado, ela é muito sagrada. Mas quando vi a reação das pessoas, não tive mais dúvidas. O show virou álbum, e assumi a produção musical. Não estava ali só como intérprete. Pessoas trans e garotas do rock sempre foram muito dirigidas por machos. Agora a gente pode pegar a produção na mão e falar: ‘Eu que fiz!’. Me dá orgulho.

Voltei a trabalhar no disco de inéditas com meu emocional mais estruturado. Virou um processo mais prazeroso, não apenas doloroso. Sem Gal, não sei se teria sido possível. Ela tinha uma transgressão e uma sexualidade em cena que eram muito provocativas, além de ser a maior voz de todas. A maneira como enfrentou a ditadura, como usou a voz dela para conquistar liberdade… Gal inventou um tipo de feminilidade brasileira que é muito inspiradora para mim e para pessoas trans. É uma diva do Brasil que a gente ama.”

Mynd8

Published by Mynd8 under license from Billboard Media, LLC, a subsidiary of Penske Media Corporation.
Publicado pela Mynd8 sob licença da Billboard Media, LLC, uma subsidiária da Penske Media Corporation.
Todos os direitos reservados. By Zwei Arts.