Capítulo apagado (e perseguido) da história, bailes black estreiam no cinema
Doc 'Black Rio! Black Power!' chega às telonas com luta e 'baile de negrão'
A cultura de baile e da negritude politizada brasileira ganhou um registro singelo chamado “Black Rio! Black Power!“, documentário que retrata a influência do movimento Black Rio nos passos de dança e também na luta por justiça racial entre as décadas de 1970 e 1980. Dirigido por Emílio Domingos e com produção executiva de Dom Filó —figura crucial em forma de MC nos bailes—, o documentário faz espectadores sentirem-se como os próprios entrevistados: emocionados ao revisitar o tamanho do movimento e da influência desses bailes.
O filme estreia nos cinemas de todo o país nesta quinta (5), saiba onde assistir aqui.
Era 1972 e também um punhado de jovens pretos do Rio de Janeiro queriam assistir os episódios da série do investigador Shaft (um baita de um camarada, disposto a enfrentar toda a sorte de bandidos). Passada a sessão de cinema, o negócio era o soul —ou melhor: dançar o soul e, finalmente, estar em comunhão com irmãos e irmãs pretos dispostos a inaugurar a cultura de bailes na cidade. Mal sabiam eles que seriam perseguidos pela ditadura militar, pelos sambistas e, de quebra, seriam os precursores dos hoje mundialmente famosos bailes funk, surgidos no final da década de 1980.
“O processo desse filme foi muito intenso. Foram 10 anos de muita persistência para contar essa história. Eu não queria desistir por mais difícil que fosse captar recursos e convencer pessoas de que essa história merecia ser contada, que é a história do negro, do baile funk, da consciência política, todas classicamente apagadas”, conta Emílio.
Um dos ápices do documentário é também um auge na vida dos biografados, quando o movimento passou a ser incorporado pela indústria musical, culminando em uma dos grupos mais aclamados da música brasileira, a Banda Black Rio —dona do clássico “Maria Fumaça”, cuja cópia original, de 1977, pode custar R$3 mil.
“Foi quase um dever cívico [fazer o documentário] para com pessoas como o Filó, pessoas que sofreram muito e que fizeram, por meio dessa revolução, mudar a sociedade. Conseguir encontrá-los, 50 anos depois, e ouvir as reflexões maduras do movimento foi muito interessante. Encarar o que eles encararam… Eles se tornaram alvo”, explica o diretor.
Dez anos de pesquisa e convencimento
“Falamos com diversos canais e players… Mas, para começar, as pessoas tinham dificuldade de entender. Não conseguiam ver como essa história influenciava tudo o que veio depois”, revela Emílio que teve a ideia durante as filmagens de “A Batalha do Passinho”, de 2013. “É curioso porque você está vivendo os frutos do movimento Black Rio como o passinho, o funk, o hip hop, o surgimento de uma juventude negra que consegue chegar à universidade. Eu sou cineasta hoje por causa do Black Rio. Está tudo intrincado. São dez anos tentando fazer com que o apagamento que eles sofreram não se repetisse”.
O filme e os personagens contam como uma juventude filha de pais de classe média do Rio de Janeiro começaram a se organizar em grupo para sessões do filme “Shaft”, cujo protagonista negro era um detetive que, além de enfrentar vilões em Nova Iorque, também explorava a sensualidade e tinha Isaac Hayes na trilha sonora. Os encontros, pouco depois, viraram baile —que chegaram a receber 10, 15 mil pessoas por semana, todas vivenciando ali um novo mundo de orgulho e luta negra.
Primeiro, os encontros eram no Clube Renascença, localizado no Andaraí e que, hoje, abriga rodas de samba como a liderada por Moacyr Luz, o Samba do Trabalhador. Depois, migrou para a quadra do clube Grêmio Social Esportivo Rocha Miranda, onde os paredões de som eram protagonistas em um ambiente escuro —não só de iluminação parca, mas também muito afrocentrado. O baile mesclava momentos de diversão, conscientização, orgulho negro, união e paquera. Habilidoso, Dom Filó expressava-se como um MC, comandando com palavras de ordem.
“Nós nos dividíamos entre o samba e o soul. Eram os cabelos black crescendo, a ditadura militar, a repressão… Tudo isso nos fez reunirmos nos clubes. Para você ter uma ideia, os orgãos de repressão mandavam infiltrados porque eles achavam que nós estávamos recebendo dinheiro da CIA para fazer um movimento armado, essas coisas. Quantas vezes perdi meu pente afro. Como DJ, tinha medo de perder meus discos do James Brown. Aí eu levava alguns discos do Martinho da Vila para eles levarem mesmo”, explica Dom Filó.
Visto como inimigos pela ditadura e pelo samba
“Essa história dele era de alegria, mas também de muita dor. Eu mexi em sentimentos que estavam meio que parados no coração dele. A desilusão com o processo todo fez com que ele se tornasse um videomaker, contar a história de outros negros. Mas não a própria história dele”, analisa Emílio, adiantando um pouco da história. Com o sucesso da rapaziada preta na noite carioca, a ditadura militar abriu os olhos, vendo ali um potencial perigo revolucionário que podia, não por acaso, estar mimetizando a história do movimento negro nos Estados Unidos —à sua maneira, estavam, é verdade. Mas a perseguição escancarou um país não só ditatorial, mas totalmente calcado —e recalcado— no racismo.
Dom Filó, por exemplo, foi perseguido e sequestrado pela polícia da ditadura. Dentro de um cativeiro, teve coragem de dizer que, se ficasse naquela situação, toda uma galera muito disposta não ia sossegar enquanto ele não aparecesse. Deu certo e ele foi liberado. Mas esse final feliz não foi capaz de curar a cicatriz do racismo.
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“Houve uma esperança. O Black Rio era um abrigo. Paz é um negócio muito difícil para quem é negro nesse país. E o baile possibilitava isso. E, mesmo assim, o Filó foi perseguido. Ele não estava fazendo nada demais, mas isso o que ele fez incomodou muito. Nesses 50 anos muitas conquistas foram geradas pela organização do movimento negro”, completa Emílio.
Além da ditadura, o documentário mostra um primeiro conflito de geração que o movimento fez surgir —e justamente com um movimento tão negro, caçado e cooptado pelo sistema quanto: o samba. O filme mostra uma reportagem de mais de 10 minutos do “Fantástico” em que a TV Globo insiste em criminalizar os bailes e, de quebra, traz o sambista Candeia se opondo a um suposto movimento “americanizado” e que “desprezava” a música brasileira para dançar soul. Curiosamente, Candeia era um sambista interessado na proteção do samba contra a branquitude —é dele a criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, cuja existência era politicamente muito semelhante aos objetivos de Dom Filó e companhia.
“Foi uma estratégia para dinamitar o movimento. Coincidiu com o início da derrocada do baile soul. É muito curioso ver como eles eram tratados por ‘imperialistas’ pela esquerda e pela direta. De certa maneira, o medo se comprovou porque o orgulho negro chegou mesmo via música, pelo baile. O discurso de conscientização de todos ali era muito grande e muito parecido com o funk consciente que surgiria nos anos 1990”, reflete Emílio.
“Era complicado porque tinha um negócio chamado ‘invernada de Olaria’. Tinha a polícia e tinha essa invernada. Um camburão cinza e amarelo. E tinha que correr —ainda mais negão. Nada diferente de hoje”, completa Dom Filó.
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A Banda Black Rio e a ‘inimiga’ discoteca
Os bailes estavam em alta. Quando migraram para o Rocha Miranda, eles assumiram o nome “Soul Grand Prix”, uma forma de driblar a desconfiança daqueles que poderiam achar que se tratava de um baile exclusivamente de ideologia de negrão. Filó acrescentou fotos de Fórmula 1 no visual do baile, fazendo com que elas ficassem misturadas às fotos de personalidades e visitantes do baile. Esse visual afrofuturista que misturava velocidade, tecnologia e soul music virou LP dos bem vendidos.
Esse sucesso desaguaria em um dos momentos mais interessantes da discografia brasileira, a Banda Black Rio. Com o sucesso das coletâneas da Soul Grand Prix, Dom Filó conseguiu uma brecha para montar uma banda, totalmente inspirada não só pelas músicas que rodavam no baile, mas também pela vanguarda da música negra brasileira. Debute do grupo, “Maria Fumaça” é, até hoje, considerado um dos maiores discos da música brasileira.
Mas isso não foi suficiente porque o mercado preparava um ritmo que seria um golpe para aquelas pessoas que viam no soul uma salvação. Em meados dos anos 1980, o movimento viu surgir a disco music que, se também por vezes negra, expressava-se com menos ênfase na conscientização negra. Grupos como Earth, Wind & Fire, por exemplo, queriam curtir falando de astrologia, amizade, entre outros temas “menos políticos”. A própria TV Globo inaugurou na programação um folhetim inteiramente dedicada à discoteca, a novela “Dancin Days”.
Descontente, Filó abandonou o barco da Soul Grand Prix (e deixou uma emblemática capa de despedida, onde ele encara, chiquérrimo, um espelho de um banheiro deteriorado, abalado e, enfim, destruído.
“Muitos deles não tinham contato há muito tempo! Eles não se viam e foi muito legal! Foi o que queríamos ter feito no filme. Cada um contava uma história mais engraçada que a outra. Foi maneiro vê-los se juntando e contando histórias como a do Toni Tornado que, em um baile da Soul Grand Prix em Contagem, Minas Gerais, pulou extasiado em cima da multidão —mas ninguém teve coragem de segurar aquele armário de quase dois metros de altura”, diverte-se Emílio.
O filme conta também com a participação de figuras como Carlos Dafé (cantor e compositor), Carlos Alberto Medeiros (historiador e ativista), Virgilane Dutra (dançarina e “irmã 2000”), Rômulo Costa (fundador da Furacão 2000), entre outros. No perfil do Instagram do filme, é possível ver todas as salas de cinema que disponibilizaram cópias de “Black Rio! Black Power”.
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