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Entre novidades e tradicionalismo, batalhas de rima explodem em popularidade

Entre novidades e tradicionalismo, batalhas de rima explodem em popularidade

Batalha da Aldeia, em SP, é o grande ponto de encontro de rimadores no Brasil

Avatar de Guilherme Lucio da Rocha
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Rick Samuel Mendes Duarte começou a rimar na escola, aos 8 anos, em Viamão, cidade de 250 mil habitantes que fica a cerca de 20 km de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Desde a infância, Xamuel –como ficou conhecido por causa da língua presa e das trocas constantes do S pelo X– era diferente. Franzino, com cabelos encaracolados e língua afiada para rimar, ele não fazia cara de mau nem vestia roupas largas, como o estereótipo do rap pregava.

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Graças às redes sociais, ele descobriu que poderia ganhar a vida nas batalhas de rima. Incentivado pelos pais, fãs da cultura hip hop, passou a rodar o Brasil participando de eventos do gênero, onde desafiava grandes nomes. Com dez anos de carreira e a maioridade recém-completada, em dezembro de 2023 ele assinou contrato com a Universal Music, passando de uma espécie de popstar da cena para artista do casting de uma das maiores gravadoras do mundo. A história de Xamuel é um retrato de como, na última década, os duelos de MCs no Brasil quebraram as barreiras do underground para se tornar uma referência entre os jovens e adolescentes, além de ganha-pão para centenas de rappers no país.

“Vem tudo acontecendo muito rápido, uma coisa atrás da outra. Mas entendo também que é um lugar de referência, é muito grande de se chegar. É uma sensação de sonho realizado. Falo por mim e pela minha família, que me acompanha de perto sempre. Eles são meus maiores fãs”, comemora Xamuel, em entrevista à Billboard Brasil.

Histórico

A ideia de juntar dois seres humanos para um duelo de palavras é mais antiga do que parece. Na Grécia Antiga, há mais de 2.500 anos, o filósofo Platão, pupilo prodígio de Sócrates, desenvolvia diálogos com base nos ensinamentos de seu mestre e discutia problemas morais e filosóficos.

Sua tão famosa frase “só sei que nada sei” vem dessa época, quando filósofos levantavam um tema para um interlocutor responder e ser rebatido pelo seu desafiante. Tudo aos olhos do público.

Milhares de anos depois, nos mais variados gêneros, disputas entre músicos encontram registros no jazz –como nos duelos entre os bateristas Gene Krupa e Buddy Rich–, ou no rock, com guitarristas. Na cultura hip hop, o instrumento dessas rinhas de MCs é a rima. A origem das batalhas se deu em Atlanta, no sul dos Estados Unidos, entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 1990. Com o rap chegando ao mainstream por lá, um grupo de jovens decidiu disputar, em espaços públicos, quem tinha as melhores rimas.

Já no Brasil, as rinhas surgiram inicialmente no formato de repente, emboladas ou cantorias –a depender da região de origem. Com pandeiro ou viola na mão e muitas palavras na cabeça, rimadores como Caju e Castanha, Peneira e Sonhador e Lourival Batista ficaram conhecidos nacionalmente pela habilidade de construir uma sequência de frases em desfavor do seu oponente lírico. “As batalhas de rima são muito parecidas com a embolada”, explica José Roberto da Silva, o Castanha.

“A diferença é que no nosso caso é algo muito mais rápido, a gente não tem muito tempo de pensar. Mas bebemos da mesma fonte”, completa.

Início no Brasil

A trajetória da batalha de rimas no hip hop nacional se iniciou em 2003, na região central do Rio de Janeiro. Ao lado de amigos, o rapper e agitador cultural Aori Sauthon teve a ideia de reunir fãs do gênero para tornar a brincadeira de rimas freestyle mais competitiva. Para isso, as batalhas valiam a soma dos “ingressos” pagos pelos participantes e espectadores: R$ 1 por pessoa. A primeira edição teve a audiência de quatro pessoas e um cachorro, numa praça da Lapa carioca.

O que esses quatro desavisados pescados no boca-a-boca não sabiam é que eles testemunhavam a estreia do que é considerada a primeira batalha de rimas do Brasil, que ficou conhecida como Batalha do Real. Aori explica que o pioneirismo se dá por instituir regras para o duelo de MCs, pela constância e por ser, de fato, uma batalha. “Já existiam eventos de freestyle no Brasil antes da Batalha do Real. Mas o que fizemos à época foi criar uma disputa, com MCs duelando entre si, tendo um tempo estipulado e um vencedor ao final. E, naquele tempo, eu já sabia que daria muito certo”, cravou, confiante.

Cerca de um ano depois, a Batalha do Real reunia bem mais do que cinco espectadores. E foi do sucesso carioca que nasceu a Batalha da Santa Cruz, em São Paulo, considerada a pioneira paulistana no ramo –e que tem esse nome por ser realizada próxima à estação do metrô de mesmo nome. “A gente copiou muita coisa da Batalha do Real, regras, dinâmica, quase tudo mesmo”, conta Marcello Gugu, MC e um dos “relíquias” da cultura hip hop de São Paulo. Enquanto isso, no Recife, a Batalha da Escadaria também dava seus primeiros passos no início dos anos 2000.

Hoje, a disputa dos MCs recifenses é patrimônio imaterial da cidade. Em vários cantos do país, a cena das batalhas de rima ganhava força no meio underground. Tudo com muito suor e lágrimas dos apaixonados pelo ofício das palavras. À época, poucos eventos do tipo pagavam cachês além do prêmio para os vencedores. Ter uma vida confortável como MC de batalha era impensável. Mas também foi dessa geração que nasceram nomes como Emicida, Projota, Rashid, Marechal, Filipe Ret, Criolo, Xamã, entre tantos outros MCs que encontraram no mercado tradicional da música uma solução para o sonho de uma carreira longeva.

“A gente sonhava muito, mas se eu disser que imaginava que as batalhas ganhariam essa proporção, eu estaria mentindo”, diz Projota. “Mas a gente trabalhou muito para que essa nova geração pudesse ter essas conquistas. Por isso, fico muito feliz em ver a molecada tendo a chance de viver das batalhas, de ganhar seu dinheiro, mudar de vida. É uma evolução e não podemos desejar menos do que isso.”

Grandes arenas

As batalhas se tornaram grandes arenas do entretenimento teen. São nesses espaços que MCs duelam na improvisação, buscando aniquilar seu oponente com palavras. Porém, diferentemente da dinâmica da Grécia Antiga, que focava os debates e as apresentações em prol de uma construção social, nas disputas de palavras da sociedade atual, o objetivo é entreter os espectadores, fazer nome e, assim, ascender socialmente.

“A gente vivia um sonho mesmo, era tudo meio que feito com o coração”, resume Marcello Gugu, um dos idealizadores da Batalha da Santa Cruz. “Nosso objetivo era que, um dia, chegássemos a esse tamanho e visibilidade que temos hoje, que tivéssemos uma condição legal para viver de batalha. É muito bacana ver uma molecada nova tendo essa oportunidade.”

E foi de olho nessa dinâmica que a Batalha da Aldeia (também conhecida pela sigla BdA), a principal ágora dos nossos tempos, conseguiu se tornar referência no ramo. Nascida em Barueri, município da Grande São Paulo, em 2016, a BdA começou como muitos eventos do gênero no Brasil: um grupo de jovens decidiu se reunir com amigos numa praça para rimar e fortalecer a cultura hip hop.

Mais de sete anos depois, a Batalha da Aldeia se tornou uma empresa que gera 50 empregos diretos, além de bancar outros cerca de 50 MCs que se revezam para participar das disputas, que podem valer de R$ 200 a R$ 2.000 para o ganhador. Ninguém sai de mãos abanando. Com o sucesso do evento, que junta até 5.000 pessoas em edições especiais, cinco marcas de diferentes segmentos se associaram à BdA, caso da Vans e da Philips.

Entre março de 2023 e março de 2024, o faturamento da batalha foi de R$ 2 milhões (além dos patrocínios, recebem dividendos do YouTube, onde fazem transmissões ao vivo). Para se ter uma ideia de importância, o cachê médio da cantora Ivete Sangalo, uma das maiores artistas pop do Brasil, chega a R$ 1 milhão. “Vimos uma oportunidade de negócio. Porém, é mais do que isso. É uma forma de fortalecer a cultura que sempre nos apoiou”, diz Igor Cavalari, o Igão, um dos apresentadores do podcast “PodPah”, patrocinador do evento.

A BdA acontece religiosamente todas as segundas-feiras, a partir das 19h, na Praça dos Estudantes, no centro de Barueri, a 10 km de distância de Alphaville. A famosa região de condomínios de ricos e famosos paulistanos abriga nomes estourados da música como Zezé Di Camargo, Wesley Safadão e Seu Jorge. Outra ironia é que a Praça dos Estudantes é onde fica a Câmara dos Vereadores do município.

Tanto o poder legislativo, quanto o poder executivo de Barueri ignoram por completo o evento. A Billboard Brasil procurou a prefeitura e a Câmara, por meio do presidente, para ouvi-los, mas não obteve resposta.

A reportagem acompanhou a edição #369 da BdA e viu apenas algumas viaturas da Guarda Municipal circulando. A batalha nesse dia foi vencida por Tavin, diante de cerca de 200 espectadores —o número aumenta exponencialmente em edições de aniversário ou em eventos especiais, quando recebe convidados.

“Estamos vivendo um momento único. Pouco antes da pandemia, a gente pensou ter chegado ao auge”, adianta Bruno Souza, o Bob 13, um dos idealizadores da Batalha da Aldeia e que se tornou mestre de cerimônias do evento. “Porém, depois do baque que foi o período da covid-19, acho que conseguimos chegar a um patamar de referência, de ser exemplo para a cultura.”

Mas lá em 2016, quando tudo começou, a Batalha da Aldeia era apenas uma ideia. Uma sacada que teve um início revolucionário. A estreia se deu em um momento em que celulares e internet móvel já eram acessíveis, e a BdA passou a gravar todas as disputas já na sexta edição. Isso fez com que os momentos registrados e disponibilizados no canal do YouTube estivessem ao alcance de todo mundo, criando mais identificação com esse universo.

O primeiro vídeo da BdA foi postado no dia 5 de agosto daquele ano e mostra o duelo entre Kant e Léo do Jaguaré. Bob13 lê num caderno o nome dos MCs e anuncia que Léo do Jaguaré será responsável por iniciar os trabalhos. “Você tem 30 segundos para atacar, irmão.” Com uma caixa de som reproduzindo um beat em sequência, os dois duelam por três rounds, até a vitória de Kant. O vídeo acumulava, até abril de 2024, 84 mil visualizações. Ao todo, o canal da Batalha da Aldeia conta com 4,5 milhões de inscritos e mais de 900 milhões de visualizações –até achegada desta revista às suas mãos, é bem provável que o canal do evento tenha batido a marca de 1 bilhão de views.

Com o sucesso do canal da BdA, os vídeos de batalhas passaram a ser fundamentais para o sucesso do evento. Cortes dos momentos mais tensos ou mais divertidos passaram a inundar as redes sociais, viralizando no TikTok e parando nos trending topics do X.

“Acho que nossa tentativa de profissionalizar os MCs que sonham em viver de batalhas e a questão de disponibilizarmos todas as batalhas no YouTube são dois dos nossos principais pilares”, menciona Bob13. Cabe ressaltar que, numa era quase pré-histórica da internet, outros eventos decidiram se aventurar em gravações das disputas.

Vídeos clássicos no YouTube, como uma disputa de Emicida e André Ramiro –ator que interpreta o personagem Matias na sequência de filmes “Tropa de Elite”–, acumulam milhões de visualizações e fazem parte de um acervo de quando as disputas eram coisa de nerds da cultura hip hop.

Novos públicos

A Batalha da Aldeia acontece nos fundos da praça, enquanto, no centro dela, ambulantes vendem bebidas e lanches para o público. Assim como quando tudo era mato, Bob13 explica a dinâmica, apresenta os MCs participantes e pede ao público que interaja com respeito, já que o local recebe muitas crianças. Essa nova geração, inclusive, tem lugar especial.

Os MCs duelam sobre um palco baixo e, para facilitar a visão e o conforto dos menores, eles têm passe livre até a grade, mesmo que cheguem mais tarde. É uma espécie de tratado para privilegiar os novatos. Os casais Priscila Soares, 32, e Marcos Vinicius, 34, e Karen Silvina, 33, e André Santos, 37, enfrentam uma questão que se tornou comum para muitos pais pelo Brasil: a admiração dos filhos, ainda crianças, pelas batalhas de rima.

Naquela segunda-feira de abril, eles levaram seis crianças –entre filhos e sobrinhos, com idades entre 8 e 12 anos– para a Batalha da Aldeia. Pelo menos uma vez por mês, os adultos e as crianças saem de Carapicuíba, município vizinho a Barueri, para acompanhar presencialmente a batalha.

Direto da grade, os menores ficam vidrados em cada rima. Essa paixão começa por meio dos vídeos virais nas redes sociais. Encantadas pelo poder das rimas, as crianças decoram todos os rounds e MCs participantes, além de gravar as rimas de maior impacto e cada detalhe da dinâmica de uma batalha como essa. No entanto, existe uma preocupação natural sobre a exposição dos menores a um evento no qual não se tem controle sobre o que é dito em cima do palco. Afinal, é tudo no improviso.

“Eles acabaram introduzindo a gente nesse mundo”, explica Karen. “De início, ficamos receosos, mas vimos que existia um certo respeito. Quando viemos, ficamos felizes porque a organização tem um cuidado com as crianças, elas ficam na grade curtindo, não tem ninguém incomodando, e os MCs também falam de respeito, não tem muito palavrão, briga, nada disso. Agora, até a gente coloca a mão para o alto e interage.”

A preocupação é comum aos que participam das disputas de rimas. Luiz Fernando, o Enidê MC, foi o primeiro artista a representar o Brasil em uma disputa de batalha internacional. Graças ao domínio da língua espanhola, ele conseguiu participar batalhas em países da América Latina e da Europa.

Enquanto leva o talento brasileiro para outros países, o MC reforça a importância de renovar o público em solo nacional. Por aqui, grandes festivais como The Town e Lollapalooza já estão atentos a essa movimentação de mercado e dedicaram, em edições recentes, um espaço exclusivo para MCs duelarem. “Quem organiza batalhas no Brasil deve se preocupar com essa molecada que está chegando, que acaba conhecendo a cultura pelo TikTok, pelo Instagram”, comenta Enidê.

“É muito legal esse novo público, e cabe a nós apresentar os fundamentos do hip hop também –uma cultura que vai muito além da batalha, que tem a questão social, o grafite, o break. Lembro do Criolo, quando era um dos destaques da Rinha dos MCs, em São Paulo, que citava que era importante cuidar da nova geração, respeitando e divulgando os fundamentos da cultura hip hop.”

Aori, da Batalha do Real, destaca que o crescimento da cadeia produtiva deve acompanhar também o reconhecimento financeiro, algo que muitos jovens procuram ao desembarcar na tal Praça dos Estudantes. “Todos ficamos felizes com a popularização, mas o pilar da cultura não está só no MC, só na batalha. É importante que o DJ, por exemplo, também seja valorizado, que o grafite e o break estejam inseridos nos eventos. Estamos falando de uma cultura coletiva, e isso não pode se perder.”

Essa tensão entre o mundo do capital com a conservação da cultura é uma preocupação universal de quem atua no meio. E, talvez, quem melhor reflita o rumo do progesso seja Xamuel. Ele decidiu dar um tempo nas batalhas após uma confusão com outro MC, Jhonny. A treta entre os dois se iniciou exatamente pelo estilo do rapper, que prega a liberdade.

“Tem gente que diz que até aqui é rapper, se passar de algum ponto não é mais. Acredito que a cultura não seja sobre segregação, mas sobre aprender cada vez mais, é sobre liberdade e respeito. Não tem como ser mais ou ser menos, você tem que ter a mente aberta”, finaliza o jovem.

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