Ele trabalhou como ambulante, dormiu em ônibus e morou nas ruas. Sempre no corre, não perdia um compromisso: as rodas de rima espalhadas pelo Rio de Janeiro. Segunda-feira tinha Guilherme da Silveira, terça era dia de São Gonçalo ou Botafogo, na quarta era a vez de Marechal Hermes, na quinta Campo Grande, e a semana terminava com Madureira na sexta-feira. Religiosamente.
Essa era a rotina de Geizon Carlos da Cruz Fernandes, que você com certeza conhece como Xamã. “Foi muito na correria, mas eu sabia que ia conseguir”, afirma ele. E como conseguiu! Xamã se estabeleceu como um dos nomes de maior destaque do hip hop brasileiro, atingiu o grande público, virou hit no TikTok e ultrapassou fronteiras, investindo pesado também na carreira de ator. Fez a novela “Renascer”, na TV Globo, além de séries e filmes. E agora sonha estrelar uma produção hollywoodiana.
“Eu sempre quis trabalhar como ator. Mas a música era muito ciumenta”, define. Não mais. Com dedicação e uma agenda calculada minuto a minuto, agora se dedica às duas artes. E quer seguir assim. Nesta entrevista exclusiva à Billboard Brasil, Xamã fala do novo álbum, que sai em breve e deve marcar sua volta às raízes, “fazendo rima suja”, como ele mesmo define. Lembra de como os versos musicados o ajudavam a pagar o almoço e da importância do rap na sua politização. Destaca, ainda, as parcerias com artistas indígenas, o amigo de longa data Major RD e Marília Mendonça –a quem se refere sempre no presente. “Ela é incrível.”
Você trabalhou como ambulante e viveu nas ruas. O que pensava nessa época sobre seu sonho de virar cantor? Acreditava que iria se realizar?
Quando eu larguei o meu último emprego e fui trabalhar como ambulante, foi muito na correria, mas eu sabia que ia conseguir. Eu usava o corre do dia a dia fazendo as rimas para poder comprar a minha janta, o meu almoço e, às vezes, uma roupa. Mas era muito mais para poder estar presente nas rodas culturais, esse polo criativo que são as rodas de rima. Segunda-feira, eu tinha Guilherme da Silveira, terça era São Gonçalo, a Batalha do Tanque. Tinha Botafogo também. Quarta era Marechal Hermes, quinta, a 50Cents [em Campo Grande]. E às sextas era em Madureira. Aí sábado e domingo descansava. Eu sabia que aquilo valia a pena. Correr atrás dessa maneira, ir para as ruas todos os dias. Se você vive o teu sonho todos os dias e é profissional o suficiente, você faz acontecer.
Que ano era isso?
2014, 2015. O ano do 7 a 1 da Alemanha [risos].
Você sonhou ser jogador de futebol, estudou direito. Como chegou até aqui, com tanto sucesso, menos de dez anos depois? Como foi essa caminhada?
Eu queria ter descoberto a música e o cinema bem antes. Comecei com 24, 25 anos a correr atrás dos meus sonhos através das batalhas de rima. E, nesse período, de 2010 até agora, muitos outros MCs têm quase a mesma história. Tipo Filipe Ret, que está há maior tempão fazendo essa correria, o Djonga também, o Major RD. O rap teve, nestes últimos anos, uma ascensão absurda com o alcance que a internet deu para a gente. Nós não dependemos mais de uma gravadora. Temos a nossa gravadora independente. Usamos as plataformas digitais e as redes sociais para fazer a nossa voz chegar mais longe. Fiz parte desse processo e não fui o único.
A nova geração do rap nacional é formada basicamente nas batalhas de rima. O que elas agregam de tão importante?
Se não existissem as batalhas de rima, não só aqui no Rio mas no Brasil todo, essa geração não existiria. Eu sinto muita falta disso, porque é difícil ver hoje do jeito que era antes. Houve alguns problemas, e era muito criminalizado. Se as pessoas soubessem que aquilo poderia salvar os jovens, encaminhar a carreira de um monte de gente, seria levado mais a sério. Achavam que a gente estava só ouvindo som alto na praça, mas a gente estava era tentando se salvar, falando de música, de cinema, de filosofia. Fazer parte desse processo foi incrível, muito feliz em fazer parte dessa geração.
Queria que você falasse sobre a parceria com o Major RD, tão importante nessa trajetória profissional e uma troca essencial para você e para ele.
O Major trabalhava no mercado próximo da minha casa. Eu morava em Sepetiba [zona oeste do Rio de Janeiro] na época. Passava sempre lá para falar com ele, que era muito novo, tinha 17, 18 anos. Ele sempre foi foda, sempre escreveu muito bem, rimava, tinha punch nos versos. Eu ficava tentando convencer ele a fazer música. E aí um dia ele botou fé. Largou o mercado, a mãe dele quase matou ele [risos], mas aí a gente ia para todas as rodas de rima juntos. Lançamos os primeiros sons, até que eu consegui uma graninha para fazer shows. Foram quase cinco anos tocando junto pelo Brasil inteiro. E hoje em dia ele é fenômeno, não conheço ninguém com a força que ele traz.
Você experimentou duas coisas na carreira: ser respeitado como rapper e, ao mesmo tempo, ter um hit de alcance nacional e que virou trend no TikTok, na era “Malvadão”. Como foi atingir esse sucesso? Teve receio da repercussão, sendo que o popular nem sempre é bem-visto?
Muita alegria. Eu me senti feliz de fazer uma música assim, que alcançou todos os públicos, que interagiu com a galera que nem conhecia o meu rap. Música é isso: você tem que chegar até os lugares, tem que ser ponte. Eu sou muito feliz com essa carreira. Se você olhar a história, sempre teve o som mais dançante, o mais forte, o mais underground, as canções de amor. Eu gosto dessas transições. A galera fala que eu sou tipo jukebox, eu passo por tudo isso. Tem que ter um hit de dancinha também [risos].
Você disse numa entrevista: “Eu sempre tive uma veia muito underground e, depois de ‘Malvadão 3’, que foi para as rádios, os processos de gravação ficaram pop”. O que significa isso?
Às vezes, quando você acerta um hit, a tendência é seguir aquela receita de bolo, com os mesmos timbres, a mesma melodia. Quando eu falo dos processos de gravação pop, não estou me referindo ao gênero pop, mas a pegar uma música e plastificar ela, achando que aquilo vai ser outro hit. Eu, depois de “Malvadão”, passei por um processo de: “Nossa, e agora? O que eu vou fazer?”. Eu quis voltar a trabalhar sem me preocupar com timbre, com som, com melodia. O artista tem que fazer o que ele está sentindo na hora, tá ligado? Se é música de amor, se é música de dança, se é underground. Tudo isso tem que ser orgânico e natural.
Essa popularidade também te abriu caminhos. Você fez novela em horário nobre, está em séries do maior canal do país. Como encara o trabalho de ator?
Total! Eu sempre quis trabalhar como ator profissionalmente. Mas a música era muito ciumenta. Fazia meus projetos sempre flertando com o cinema… Inclusive eu tenho um álbum chamado “O Iluminado”, e as faixas têm nomes de filmes. Aí, em 2022, me reuni com minha equipe, e planejamos que no ano seguinte íamos colocar os shows mais para os finais de semana para que durante a semana eu pudesse gravar. Primeiro fiz “Justiça 2” [série lançada pelo Globoplay]. Depois fiz “Cinco Tipos de Medo”, filme que ainda não saiu. Em seguida gravamos “Maníaco do Parque” [filme do Prime Video], que era totalmente diferente, uma coisa meio true crime. E já estava flertando com “Renascer” [novela da Globo]. Esperei as datas para ver se daria certo e, graças a Deus, deu. Quando você trabalha com o que ama, faz 100% de coração e faz acreditando, aí dá certo.
Quais desafios você enfrentou ao transitar entre a música e a atuação?
Primeiro foi a agenda. Porque a música, como eu disse, ela é um pouco ciumenta. Você tem que estar 24 horas focado nela. Aí tinha essa outra paixão, e precisava do mesmo comprometimento. [Para a novela] Fiz aula com a Andreia Cavalcanti e com a Moira Braga [preparadoras de elenco], e elas me ajudaram a construir esse personagem. Tive que viver 100% aquilo, foi um processo de imersão para mudar o meu corpo, como eu andava, o meu sotaque. E no início eu fiquei com muito medo de não conseguir. Mas é aquela coisa de você se desafiar sempre, e eu tenho isso.
Quais são as suas ambições como ator?
Eu quero fazer um filme internacional, se possível em Hollywood ou na Europa. Alguma coisa fora daqui para continuar experimentando e aprendendo. Quero muito chegar a esse nível, agora que eu já vi que dá [risos]. A galera fala que, quando o bichinho do audiovisual te pica, já era, não tem volta. Então, eu pretendo fazer cinema no mundo. Não quero projetar isso de forma arrogante, óbvio que tem muita gente que veio antes, mas eu pretendo trabalhar bastante para fazer cinema fora. E quero fazer minhas produções também, os meus filmes.
O Rock in Rio teve um grande espaço dedicado ao trap e ao hip hop. O que achou dessa edição?
Ah, pô, incrível. O rap foi aos poucos ganhando o Rock in Rio até chegar a este ano, que foi o máximo. Tipo ter todos os nossos amigos em palcos diferentes, simultâneos, no Sunset, no Mundo, gente do Rio, do Nordeste, de São Paulo. Algumas apresentações juntas, como foi com o Veigh e o KayBlack. Ou então como teve o TZ e o Borges. Quem quisesse ouvir rap, do jeito que quisesse, era só procurar pelos palcos.
Você participou do show em tributo a Marília Mendonça recentemente, em São Paulo. E chegou a gravar com ela. Pode falar dessa parceria?
Então, eu já tinha a letra de “Leão” escrita, a minha parte. Aí eu postei no Twitter, e ela me mandou uma mensagem dizendo que tinha achado incrível. Pensei até que fosse trote. Mas aí ela me mandou um número de celular, fui no WhatsApp e ela disse: “Sou eu, Marília. Adoro sua música!”. Aí botei fé mesmo e convidei ela para fazer parte do meu álbum. Escrevi uma outra parte da música, que seria para ela cantar. Mandei, cheio de medo, e ela mais uma vez achou incrível. Estava muito inseguro, né? Porque cantar para ela, escrever para ela, pô, ninguém é o bastante para isso. E ela é incrível. Ela veste a música, ela coloca a intenção dela, ela encontra outras texturas de cantar. A Marília é uma pessoa muito especial para mim, nesse momento de eu ser reconhecido pelo grande público do Brasil. Ela me deu esse presente.
Sobre o novo disco: o que você tem ouvido? O que tem te influenciado na criação desse projeto?
Eu tenho ouvido muito Victor Xamã, parceiro meu, eu tenho ouvido muito Don L. O Major também. Eu gosto muito dessas pessoas, dos rappers que criam… Que dão uma volta com gíria, pegam uma palavra grande, diminuem. É isso que eu quero fazer. Já rimei para caramba, agora quero novas texturas de rima. Tenho ouvido muito os meus parceiros, sacou?
Fale mais sobre o novo álbum? O que o público pode esperar?
Está quase pronto, e a gente está fazendo algumas seleções, algumas triagens do que vai ser, de quem vai ser, de como vai ser. Mas o que a galera pode ter certeza é de que vai ser o Xamã orgânico, fazendo rima suja, mas algumas coisas com melodia também. Tem alguns artistas indígenas que vão fazer parte. Vou antecipar só dois aqui, o Txepo, que é Suruí, e meu mano Wes [Wescritor], que é Tupinambá de São Paulo. É sempre importante dar espaço para os artistas indígenas e, como é o álbum em que eu estou revisitando as minhas raízes, eu quero que tenha os meus amigos do hip hop indígena também.
Tem se falado muito no mundo da música sobre questões de saúde mental. É uma preocupação para você? Como lida com as redes sociais?
Então, no início foi bem difícil. Lia muitos comentários, e isso já estava me afetando. Hoje, o que eu tento fazer é estar próximo da minha família sempre. Você fica no Instagram e perde um pouco a noção do que é real. Vejo muito hoje em dia o medo de não se encaixar, de não conseguir fazer alguma coisa. Isso vai criando coisas dentro de você, sentimentos, sensações, que não funcionam. A gente que é artista tem que se cuidar sempre, estar próximo da família, buscar ajuda profissional, terapia, porque é cíclico. Assim como a gente sente muito, se expressa muito, também dói muito.
Como o resgate da sua ascendência indígena influenciou sua arte?
É um processo de resgate, de me conectar de novo com as minhas raízes, entender o meu povo. Acontece muito de a gente ser órfão de etnia, porque queimaram todos os documentos e a gente não sabe nada. Deveria ser obrigação, todo mundo deveria saber um pouco mais sobre o seu povo, sobre o lugar de onde veio. É importante voltar para as nossas raízes. Estar com o meu povo, estar lá em Coroa Vermelha [território pataxó na Bahia], faz com que eu me sinta em casa. Eu me reconecto com a minha história.
Você já citou em suas músicas o preço da passagem no transporte público. Tem uma vivência de ter estado na rua. Falou a favor da demarcação de terras indígenas. Como a política aparece na sua vida?
A política aparece na minha vida a partir do rap. Foi o rap que me politizou, que me levou a entender o que é direita, esquerda, de onde eu venho, quem é o cara que está no poder, quem é o cara que está usando o povo para poder fazer massa de manobra. Ouvi tudo isso numa roda de rima com os meus amigos e fui entendendo. Porque muitas vezes o cara não vota porque acha que não vai fazer diferença. Em algum momento, eu achei também que não ia mudar nada. O rap me ensinou a politizar os meus amigos, a incentivar mais pessoas a participar, a dizer: “Vai lá, tira seu título de eleitor, contribua com a gente”. Porque às vezes a gente deixa isso de qualquer jeito, e o Brasil não pode estar de qualquer jeito. E pau no cu do Bolsonaro. Pode botar aí.
Na última eleição você se posicionou. Por que achou importante tomar decisão?
Vou te dar um exemplo: se não fosse o rap na minha vida, talvez não rolasse essa entrevista aqui, talvez eu não tivesse meu título de eleitor, talvez eu não tivesse minha família, talvez eu não tivesse nada. O rap me politizou. O que eu posso fazer agora é tentar levar outras pessoas também a se politizarem –através desse veículo que é o hip hop. No mundo todo, o hip hop sempre foi um veículo de politização. Se você acompanhou o Rock in Rio, por exemplo, viu muita gente falando das queimadas, muita gente falando: “Fogo nos racistas”, muita gente discutindo sobre tirar fascista do poder. A gente aprendeu isso numa roda de rima, ouvindo música, ouvindo Racionais, lendo os textos.
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Colaboraram Guilherme Lucio da Rocha e Yuri da BS
Direção de arte Marcos Artnoc
Fotos Lucas Nogueira
Assistente de fotografia João Pedro Hachiya
Light Design Felippe Costa
Stylist Roberta Campos
Produção de moda Will Santos e Núria Boni
Beauty Jess Linhares
Making Of Lucas Santana
Produção Igor Lessa e Cris Corga
Artista veste À La Garçonne, Dod Alfaiataria, Dolce & Gabbana, Donni Project, Elegannextaylors, Ferragamo, Glowshine, Mad Enlatados, Pepita Acessórios e Usejoias
Agradecimentos Fábrica Bhering e Matheus Tavares