Só Track Boa consagra ‘MEPB’ ao apresentar submundo aos fãs de tech-house
Kenya 20hz, Caio Prince, RHR e Mu540 deixaram sombrio o sorridente festival
Demorou, mas a chamada Música Eletrônica Periférica Brasileira, a MEPB, finalmente teve grandes de seus expoentes em um festival disposto a usá-los como destaques, não como acessórios. Ocupando a área externa da Neo Química Arena, da sexta (14) para o sábado (15), o Só Track Boa teve sua curadoria recompensada pelas apresentações de Kenya20hz, RHR, Caio Prince, Vhoor, Deekapz e Mu540 —ainda que— no menor do palco do festival, chamado de Luvlab.
Vale dizer, àqueles menos íntimos da cena eletrônica, que esses nomes são, há mais de cinco anos, destaques autorais na música eletrônica popular —e periférica— do Brasil. É de Vhoor, por exemplo, “Se Tá Solteira” e “Delírios”, ambas do já clássico “Baile”, de 2021; é de Mu540 peças como “Tang”(da lavra com Tasha e Tracie , de 2020), bem como o álbum “UM Quebrada Inteligente”, feito com o MC e fiel Kyan. No entanto, esse diálogo com o público de um festival mainstream é um raro momento nas curadorias no país.
A outra banda de convidados, se não possui autorais na boca da galera, são nomes caros da produção eletrônica e representam o país na gringa há algum tempo. Em abril, Caio Prince pisou pela terceira vez consecutiva na Europa em um intervalo menor que um ano; a dupla Deekapz já estabeleceu uma fórmula com a qual passeia pelas música brasileira de FM e de baile; RHR mantém um programa mensal na rádio francesa Rinse FM enquanto divide-se em turnês pela Europa, Ásia e parcerias com Skrillex. Por fim, mas não menos importante, Kenya20hz, nome mais proeminente da experimentação barulhada e arrebatadora da eletrônica brasileira, encarregada de abrir a programação desse espaço “alternativo”.
Conhecido pelo público como irradiador do que mais notável há no tech-house, o Só Track Boa dividiu-se entre os que buscaram as vibes de sempre do festival e aqueles que entupiram o pequeno Luvlab atrás de novidades mais sombrias.
KENYA20HZ
Mas, a bem da verdade, eram poucos os fãs mais dispostos a embarcar na estratégia do festival quando, às 23 horas, Kenya20Hz subiu ao palco Luvlab. A apresentação coincidia com a presença de Mochakk, primeiro grande nome do palco Oca, segundo maior palco do festival. Enquanto o DJ criava um clima de algazarra em uma pista lotada e com mesas bistrôs cuja audiência podia adquirir (e ficar carregando), Kenya iniciava um atordoamento acompanhada por 40 fieis que, crentes, sabiam que o arrebatamento iria chegar àqueles de boa fé ali presentes. As 35 mil pessoas do festival, àquela hora, entupiam os dois maiores palcos e ainda não haviam se ligado na proposta do Luvlab.
Se divertindo nos quatro canais, a DJ passeou tranquilamente por sessões hipnóticas que iam entremeando coisas como “Popped”, do Color Plus, assobios de mandelão e, ainda por cima, parecia considerar aquela audiência com respiros de tech-house como “California Dreamin’ 2k23”, divertido remix do Royal Gigolos para o clássico do The Mamas and the Papas.
Como prêmio, a DJ viu aqueles 40 do início transformarem-se em centenas que se entreolhavam, sorriam, abriam a programação do festival e diziam umas para as outras coisas como “essa é a Kenya-vinte-agá-zê”, “nossa, ela é incrível”. Curiosamente, o clima do palco atraiu pessoas com mais disposição para dançar do que para tirar fotos e gravar stories. Em alguns momentos, não se via nenhum celular apontado para a DJ —uma cena rara em festivais assim cuja as apresentações oferecem climaces propícios para o registro daquele drop que irá chegar. Kenya, pelo contrário, conduziu o público pelo transe, entrelaçando sua pesquisa com uma mixagem que causava prazer na sensação de barulho.
RHR b2b Caio Prince
A estremecida no ambiente trouxe clima de desafio para o b2b entre RHR e Caio Prince. Nomes destacados do underground paulistano na fusão de bass, dancehall com mandelão, bruxaria e rap, a dupla foi sintonizando-se gradativamente com um público que ia também se acostumando com a mudança de direção que a dupla provocaria após o set de Kenya. Quem passeou pelo festival durante a troca, viu que este palco continuava sendo o mais desafiador.
Quando o mais incauto dos presentes se deu conta, já havia guarda-chuva da Oakley sendo jogado para cima, passinhos de romano e muitos óculos juliette ao seu redor. Obviamente teve agudos estridentes (como “Agudo Infernal”, dos DJs Teteu e Kamikazi) e graves distorcidos. Apesar de estruturalmente diferente do set anterior, o b2b manteve uma característica até ali no festival, fazendo este palco ser o único em que era possível ouvir distorção, chiados que quebravam o clima da estética quase sempre muito limpa do tech-house ouvido nos outros palcos.
O tom sombrio, denso, espeço dominou aquela parte do Itaquerão e fez-se rave. Ali, ouviu-se produções alienígenas do mandela como “Vem Jogando O Rabetão”, dos DJs Colombo e JS Mix e a primeira aparição do (já clássico) mandelão-bolha “Sinfonia Dançante”, do DJ Brau.
Vhoor b2b Deekapz
Enquanto aguardavam a dupla paulistana terminar o set, Vhoor e o duo Deekapz eram, talvez, o maior mistério da escalação desse primeiro dia de Só Track Boa. O trio já havia juntado força para uma apresentação no The Town. No entanto, o tempo frio e chuvoso enlameou o distante palco “New Order Dance” daquele festival e pouquíssimas pessoas viram a apresentação feita quase incólume para a maioria dos pagantes.
A apresentação afastou um pouco o darkroom que ali havia se criado. Muitas vezes enérgico e solar, o set do trio iluminou (até demais) uma galera que parecia mais disposta a adentrar as camadas do submundo. Se, por vezes, e para delírio da galera, entrava um mandelão de Jeeh FDC daqui, um kuduro acolá, o trio bateu insistente em hinos do funk pop —e isso contrastava com os vestuários pretos de um público majoritariamente branco em busca de trevas naquele palco.
Quem esperava MTGs de Minas Gerais e beat bolhas da parte do produtor mineiro, não teve muita chance além de ouvir “Sinfonia Dançante”, do DJ Brau, que surgiria pela segunda vez na noite —e ainda teria mais uma execução no set da dupla responsável por encerrar o palco.
Mochakk b2b Mu540
O nome de Mu540 já era mencionado nas rodinhas antes mesmo do final do set de Vhoor e Deekapz. Quando o produtor da Baixada Santista surgiu no palco trajado com a camisa do Timão, fez surgir um burburinho de ansiedade em um público que também já havia notado Mochakk em posição de ataque.
Um pouco mais soltos na pesquisa e nas traquinagens do que a dupla anterior, eles foram responsáveis por entregar aos curadores a sensação de missão cumprida. Teve tech-house, claro, mas a dinâmica dos dois baseava-se em alguma intimidade que permitiu que a rave sombria iniciada por Kenya e RHR e Caio Prince também dialogasse com a proposta mais “acesa” de Vhoor e Deekapz.
Houve, mais uma vez, muito mandelão, mas também vocais de Serj Takian, do System Of A Down (“Chop Suey”) que eram golpeados em freestyle por cima do que estivesse tocando. Era possível ver a dupla se divertindo a cada intromissão na faixa anterior. Quando Mochakk sentou o dedo em um edit de “Bolo Um”, do MC Neguinho do Kaxeta, a dupla parecia ter encontrado o rumo perfeito de uma noite em um festival que, com atraso, chancelou a tal da MEPB.