Região de Interlagos trocou o ronco dos motores pelo barulho das guitarras
Local passou a receber diversos festivais de música nos últimos anos
Dono de uma padaria no bairro de Interlagos, zona sul de São Paulo, Marcos Roberto Resenti esnobou o festival de música que iria acontecer em abril, no autódromo da cidade. Para ele, o estoque de cervejas que havia no estabelecimento era mais do que suficiente para abastecer os sedentos –porém durangos– jovens que iriam para o Lollapalooza.
Marcos pegou a família e foi passar uns dias numa casa de praia na Bahia. Tostava sob o sol inclemente daquela região quando recebeu o telefonema de uma de suas gerentes, dizendo que o arsenal de geladas programado para durar três dias havia se esgotado em poucas horas.
O comerciante pegou então o primeiro voo para São Paulo e utilizou seus contatos para aparelhar os freezers para os dois dias restantes.
“Para mim, seria um evento menor. Ao contrário do GP de Fórmula 1, que traz um público mais velho e mais rico.” O erro de cálculo do comerciante aconteceu em 2014, ano em que o Lollapalooza passou do Jóquei Clube, na zona oeste de São Paulo, para Interlagos.
Hoje em dia, ele não apenas mantém um enriquecido arsenal de geladas em sua padaria como também montou um pub, inaugurado no dia da abertura do The Town.
Marcos é um dos muitos comerciantes da região que criaram novas frentes de trabalho a partir do aproveitamento do autódromo como sede de alguns dos principais festivais do país –no início de dezembro, é a vez da versão brasileira do Primavera Sound aportar por lá. “De 2014 para cá, houve uma evolução multisetorial: o comércio e o aluguel cresceram, e a gente busca que o ecossistema do local seja funcional para quem mora lá e para quem vai a esse tipo de evento”, diz Rodolfo Marinho, secretário de Turismo da Prefeitura de São Paulo.
A configuração da região gerou uma classe de empresários informais, que abrem suas garagens para vender bebidas ou então transformá-las em estacionamentos improvisados. Uma dessas pessoas é Luciene Magalhães Silva. A casa onde mora se metamorfoseou numa espécie de adega, e a garagem é alugada para carros que chegam de outras regiões.
Nem tudo é dinheiro no dia-a-dia da dona de casa, que virou empreendedora: ela gentilmente cede o banheiro de sua residência para os transeuntes que desafiam o poder diurético da cerveja. “Eu tinha receio de abrir a minha casa para esse público, porque imaginava que eles fossem um bando de drogados”, admite.
Tomou tanto gosto pelo comércio que alugou a própria casa para os funcionários da produção do The Town, transformando sua residência num hostel improvisado. Com isso, precisou adaptar a garagem, a mesma que já serviu de estacionamento, para seu quarto de dormir. Mas nem todo vendedor lucra com o crescimento da região.
Há quem não tenha motivos para se alegrar. Dono de um pequeno bar nos arredores do autódromo, José Carlos sofreu com as alterações promovidas pelo departamento de trânsito da prefeitura. A rua que sedia o chamado Bar do Seu Zé foi fechada para veículos, levando o fluxo de pessoas para alamedas adjacentes. “A turma que vai ao festival pega uma cerveja, uma água e olhe lá. Fico no prejuízo”, lamenta.
O título de um álbum de Rodrigo Campos, um dos sambistas prediletos do rapper Criolo, professa que “São Mateus não é um lugar assim tão longe”. É longe, sim, mas o ambulante Julio César não liga para grandes distâncias. Desde 2018, ele atravessa os 55 km que separam o bairro da zona leste de São Paulo de Interlagos e se posta na Feliciano Correia, avenida que dá acesso ao portão principal do autódromo.
Ali, vende cerveja, água e refrigerante por preços que variam de acordo com a atitude do freguês (uma dica: sempre pergunte o valor antes de comprar, porque significa que o dinheiro está curto e pode render um desconto).
César começou nesse ramo ainda na adolescência, vendendo bebidas em portas de estádios e shows. Bandeou-se
para os lados de Interlagos de tanto que escutou de mascates amigos que ali havia um público bom de copo. “O pessoal prefere beber na rua do que dentro do evento porque sai mais barato.”
O empreendimento deu tão certo que migrou seu arsenal de “Danones” para outros estados. Quando a banda inglesa Coldplay se apresentou em Curitiba, lá estava ele para matar a sede dos fregueses de Chris Martin & cia. Nem se importou de viajar uma distância quase dez vezes maior do que a travessia até o autódromo.
O bairro de Interlagos existe há pouco mais de um século. Ganhou esse nome porque está situado “entre dois lagos” –na verdade, as represas Billings e Guarapiranga. Estima-se que 190 mil pessoas morem no local, que tem como atividade econômica principal as corridas de Fórmula 1.
Com o aumento das atividades culturais, os hotéis da região viram sua taxa de ocupação crescer muito além do período automobilístico. A taxa durante festivais é de 80% contra os 50% em dias normais. Mas, ao contrário dos admiradores das corridas, o frequentador de festivais de música busca opções mais em conta –que podem ser hotéis de duas a três estrelas ou a alta rotatividade da sala de dona Luciene.
A prefeitura não ficou insensível a esses números e acena com melhorias. “Queremos construir um túnel que ligará a Estação Autódromo da CPTM ao local dos eventos. O final da Marginal Pinheiros também terá um viaduto que levará os motoristas direto para o autódromo”, promete o secretário de Turismo.
As obras ainda não começaram, claro, mas Marcos não tem do que reclamar –como vê-se pelo relógio incrementado que usou para decorar a foto dessa reportagem. O número de funcionários do bar aumentou em 50%, e ele contratou 100 temporários para trabalhar nos seus diversos empreendimentos. Ah, sim. Ele nunca mais viajou para praias distantes nos dias de festival: prefere se refestelar nas propriedades que possui entre as represas. “Mas se você for à minha padaria, poderá tomar uma cervejinha comigo”, sorri.