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Nando Reis: ‘Fiz coisas terríveis em mim e com pessoas que amo’

Nando Reis: ‘Fiz coisas terríveis em mim e com pessoas que amo’

Avatar de Sérgio Martins
O cantor e compositor Nando Reis

Uma das lembranças mais tristes que trago de Nando Reis data de 1995, numa entrevista realizada no escritório do empresário Manoel Poladian. O cantor e compositor paulistano estava alheio à conversa, como se estivesse vivendo num universo particular.

Esse Nando, felizmente, não existe mais.

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O cantor, que me recebeu em sua casa, no início de setembro, estava sóbrio, focado e consciente da sua importância no cenário musical brasileiro –seja ele o pop, o rock ou a MPB.

Nando Reis acaba de lançar “Uma Estrela Misteriosa”, projeto composto de três discos de vinil (quatro para quem adquirir a edição especial) e vai passar o resto de 2024 apresentando os álbuns em diversas capitais brasileiras –a banda, aliás, vem acrescida de Martin Barrett, ex-baterista dos Screaming Trees e produtor do álbum, e de Peter Buck, ex-guitarrista do R.E.M. “Eles estão no Brasil ensaiando”, me confidencia.

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A conversa gira em torno não apenas do novo álbum e do bem-sucedido retorno dos Titãs, mas também da habilidade de Nando em transformar suas dores em letras. Ele faz parte de uma escola de compositores às quais o escritor americano Bill Flanagan chama de “Os Penitentes da Alma”.

São aqueles que criam músicas baseadas em suas experiências pessoais, com letras que parecem entranhadas na carne. A seguir, os melhores trechos da conversa com Nando Reis, que falou abertamente sobre vício, morte e  reunião com os amigos.

O cantor Nando Reis segura uma flor
O cantor Nando Reis (Carol Siqueira/Divulgação)

Por que lançar quatro discos de uma vez?

Porque eu sou compositor e não lançava nada inédito desde 2016. Calhou de o Barrett [Martin, ex-baterista dos Screaming Trees] vir ao Brasil para fazer um documentário, acompanhado do Peter Buck, ex-guitarrista do R.E.M. Martin me chamou para gravar duas músicas.

Mas, quando entramos no estúdio, eu aproveitei o fato de estar ao lado de dois grandes músicos e gravei o quanto podia –no caso, 24 canções, que aumentaram para 30 quando viajei para os Estados Unidos com os Titãs, em 2023. Então, vem do meu desejo de lançar um disco com fluência e qualidade.

Esse projeto é uma prova de que conseguiu fidelizar sua plateia, a ponto de ela embarcar nessa com você?

Não tenho essa presunção nem penso dessa forma. No entanto, gosto de registros físicos, sou um colecionador. Pelo número de shows que faço e pela quantidade de pessoas que vão, consigo o suficiente para viver.

O suficiente? Você é um dos maiores arrecadadores em direitos autorais do país. Dizem que perde apenas para Roberto Carlos.

Se for verdade, estão me pagando muito mal…

A faixa “Coragem É Poder Mostrar” tem uma coisa meio Raul Seixas encontra o cantor romântico Antônio Marcos. Qual é a dela?

Eu acho que fica entre Raul Seixas e Waldick Soriano. Tem uma mistura de coloquialidade com um elemento dramático, que é típico do Raul. Sabe, eu tenho coisas que ressoam de um modo meio primitivo. Música italiana, por exemplo. Às vezes, imagino “O Segundo Sol” cantada por um gondoleiro. Talvez tenha vindo dos compactos de música italiana que a minha mãe me trouxe.

Uma das letras mais fortes de “Uma Estrela Misteriosa” é a de “Des-Mente”. Você fala: “Quero beber, quero cheirar, quero gozar”. E depois muda para: “Não quero beber, não quero cheirar, não quero gozar”. Qual o motivo desses versos?

Eu faço música para organizar meus sentimentos. Elas me ajudam a me relacionar com eles, a compreendê-los, externalizar. Aproveito as minhas dores para fazer um assunto para uma composição. Escrevo sobre o que vivo. Não sou bom de inventar histórias. Não sou como o Bob Dylan, que tem a habilidade de criar todo um universo.

A faixa “Des-Mente” é sobre mim, que passei 30 anos de abuso de álcool e drogas. Subi no palco bêbado, dei entrevistas bêbado…

Você deu uma entrevista para mim –em 1995, creio eu– e estava meio estranho. Foi no escritório do empresário Manoel Poladian.

Sim, são coisas que me deixam bastante constrangido. Mas eu fiz e ponto. O fato de eu não fazer mais me alivia bastante.

E aí eu trago esses assuntos. A própria “Coragem É Poder Mostrar” tem esse viés sobre os infernos, sobre as coisas que estão desajustadas com os padrões.

“Daqui por Diante”, outra canção do disco, também fala sobre isso. Ela é sobre a relação com a família, “Des-Mente” mostra como funciona a mente de um adicto: a disputa, a falta de controle… É uma coisa de você ter consciência e não segui-la porque o seu desejo desmente, combate, se contrapõe a ela.

E quando você tem consciência de que é um problema, isso fica mais nítido. Porque até então você achava que era aquilo mesmo que você tinha que fazer. É sobre isso que a música trata, né? Ela des-mente. É uma questão que me agrada falar sobre.

Gostei muito da dualidade presente na letra, o “quero” e depois o “não quero”.

Ela é a exposição do diabinho e do anjinho que vivem em nós.

O cantor Nando Reis
O cantor Nando Reis (Carol Siqueira/Divulgação)

Como você faz para não recair no vício?

Olho para a dor. Cada um tem o seu jeito. O meu cérebro sobreviveu por milagre. Meu psiquiatra disse: “Seu corpo aguentou coisas que teriam sido fatais para outras pessoas. Pelas coisas que você bebeu e ingeriu… Você é um cavalo”.

Nunca tive ressaca, era um bêbado funcional. O que é bastante relativo, né? Você vai aos compromissos, mas você vai se degradando, vai deteriorando a qualidade da sua apresentação, o corpo vai cansando a mente. O que protegeu o cérebro desses excessos foi que eu fiz muita atividade física.

Outra canção que me deixou emocionado foi “Rhipsalis”, que você fez para uma cantora iniciante chamada Janaína –que morreu antes de vocês se conhecerem. E eu tinha passado teu contato para ela.

Poxa, então foi você que me apresentou a ela? Pensei que tivesse sido o Rick Bonadio, que tinha virado produtor dela. Janaína era uma cantora iniciante. No dia em que a gente iria se encontrar, soube que morreu num acidente automobilístico com a família. Era 1996 e escrevi “Janaína” para falar desse caso. Muito tempo depois, me deparei com a letra, mudei uma ou outra coisa, e ela se passou a se chamar “Rhipsalis”.

Você tem um jeito peculiar de falar da morte. “Meu Aniversário”, por exemplo, fala da tua mãe; “Vou te Encontrar” é sobre a morte da mulher do Paulo Miklos. É um assunto que te deixa fascinado?

Uma das funções da canção é extrair algo belo em meio à dor. É o meu mecanismo de sobrevivência. Por outro lado, o instinto de morte, que é muito evidente num adicto, está sempre presente. É assunto de muitas músicas. Tem uma canção no meu disco anterior, “Jardim Pomar”’, chamada “Infinito 8”, que fala de finitude.

Sou apegado à vida. Tenho uma relação de prazer com a vida, de realização com a família, o trabalho. Essa contradição interna me deixa intrigado. É uma coisa que eu investigo. Por isso é que eu não vou beber. Porque eu sei que existe um lado que se eu atender, eu vou morrer, estragar as coisas belas da minha vida. Então, prefiro ir para a música.

Dói cantar uma música autobiográfica?

Eu choro quando canto “Daqui por Diante” [cujos versos iniciais dizem: “Longe vai, ficou pra trás/ Passamos/ Foi-se o caos/ Estou em paz…”]. Porque fiz coisas terríveis em mim e com pessoas que eu amo [emociona-se]. Não é nem um pouco legal. Claro que eu tenho consciência de que não faço mais e de que eu tenho muitas coisas boas a oferecer. Mas é algo que dói demais.

Falando em coisas mais agradáveis… Você está lançando um livro, uma compilação dos teus escritos.

Sim, estou. Ele se chama “Pré-Sal” e se originou das cartas que escrevi para a Cássia Eller, citadas na canção “All Star”. Quando a Cássia morreu, no fim de 2001, a viúva dela mandou as cartas de volta para mim.

Sempre achei que aquilo era um legado. A gente estava iniciando uma relação. Fiquei apegado às cartas, a Cássia é a cantora que mais gravou a minha obra. Achei que poderia ser interessante. Juntei com uns desenhos e também uns versos que fiz.

Nando Reis e Cássia Eller
Nando Reis e Cássia Eller (Arquivo Pessoal)

Por falar em Cássia, eu acho incrível a tua entrada na vida dela.

Você lembra de uma conversa nossa, né? Eu te contei por telefone e você não tinha gostado que eu ia iniciar uma parceria com ela…

Sim, eu me lembro. “Mas Cássia Eller????”, eu te disse. Hoje posso dizer que, embora a Marisa Monte tenha sido importante na tua carreira, foi a Cássia que te sacramentou como o grande compositor que você é.

Sem dúvida. A Marisa Monte foi a primeira artista a gravar uma música minha fora os Titãs. Fizemos dois trabalhos importantes.

Mas foi com a Cássia que realizei um desejo de criança: de ser o Caetano e o Gil para uma cantora da minha geração. O Caetano foi para a Gal Costa, e pude fazer o mesmo com a Cássia.

Eu sou puta compositor, ela é uma puta cantora, e fizemos um trabalho magnífico.

A reunião dos Titãs, em 2023, soou para mim como o capítulo final de uma linda história. E para você, como foi?

Perfeito. Eu tinha um sonho recorrente, era quase um pesadelo, em que eu estava nos Titãs e precisava comunicar a minha saída de novo. Seria horrível passar por tudo aquilo novamente, porque a minha separação do grupo foi bem difícil, né [Nando saiu em 2002, em termos pouco amigáveis]?

O reencontro foi ótimo e apaziguador. Ficaram evidente os vínculos que a gente queria privilegiar. Há também dois elementos muito fortes nisso tudo, né? A morte do Marcelo, em 2001, e a própria doença do Branco Mello, que colocam todas as outras coisas como questiúnculas visíveis. Além disso, o que produzimos é de alta qualidade. Foi divertido.

E eu também falei: “Como fiquei tanto tempo sem encontrar meus amigos?”.

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