Grupos de pagode usam sertanejo para ampliar seus negócios
Artistas avaliam a alteração do samba influenciado pelo encontro de gêneros
Em 2010, os pagodeiros Thiaguinho e Rodriguinho foram responsáveis pela composição de um dos maiores sucessos da música sertaneja naquele ano: “Fugidinha”. Interpretada por Michel Teló, a música rodou por todos os cantos do Brasil graças ao encontro dos gêneros. Treze anos depois, é a vez de o sertanejo dar uma mãozinha para alavancar o pagode. Mas de uma maneira, digamos, mais robusta.
O gênero que domina o Centro-Oeste brasileiro vem compartilhando com grupos de pagode toda sua estrutura e seu conhecimento de mercado para ampliar o alcance do ritmo que foi febre nos anos 1990 –e tenta se reinventar frente às demandas do século 21.
Capitaneando essa mudança está o Menos É Mais. Hoje um quarteto, a banda formada em Brasília, no Distrito Federal, explodiu em meio à pandemia da Covid-19. Enquanto o mundo aguardava os avanços da ciência para retomar o mínimo de normalidade, o pot-pourri “Melhor eu ir/Ligando os Fatos/Sonho de Amor/Deixa Eu te querer”, do projeto audiovisual “Churrasquinho do Menos É Mais”, tornava-se viral na internet. Publicado em dezembro de 2019, hoje ele acumula mais de 840 milhões de visualizações no YouTube.
As quatro canções da faixa viral são regravações de grandes sucessos do gênero. No entanto, o Menos É Mais queria assumir as rédeas de sua trajetória. Para isso, fechou parceria com Dudu Borges, produtor de “Fugidinha” e que também tem no currículo trabalhos com, atenção: Matheus e Kauan, Marcos e Belutti, Bruninho e Davi, Fernando e Sorocaba, Gusttavo Lima, Henrique e Diego e tantos outros cantores dos mais variados estilos, incluindo pagode –mas foi no sertanejo que Dudu fez seu nome.
O primeiro trabalho do produtor com os pagodeiros de Brasília foi o audiovisual (antes conhecido como DVD) “Confia”, lançado em janeiro deste ano. Das 18 faixas, três contam com participações de músicos dos sertanejos e do forró: “A Casa Mais Feliz da Rua”, com Hugo e Guilherme, “Amor Falsificado”, com Marília Mendonça, “Foi Bom, Mas Foi Ontem”, com João Gomes, e “Lapada Dela”, com Matheus Fernandes. Maior sucesso da safra, “Lapada Dela” foi a música de pagode mais tocada nas rádios do Brasil em 2023 e chegou a figurar como única do gênero nas primeiras colocações do Billboard Brasil Hot 100.
Quem ouve pode até se perguntar qual é o gênero real da canção, composta por Matheus Fernandes, produzida por Dudu Borges e que começa com um reggae antes de entrar num pagode. “O público de hoje não consome só um gênero”, explica Dudu. “Essa mistura vem se tornando cada vez mais natural, é um processo que o sertanejo começou lá atrás, e o pagode vem assimilando de uns tempos para cá. E não tem como fugir dessa tendência.”
Em outubro de 2023, o Menos É Mais gravou um novo projeto audiovisual, “Virado no Pagode”, com participações de Anitta, Luísa Sonza e Xand Avião. Nesse caso, a presença do sertanejo se deu nos bastidores. Parte da produção do projeto contou com a expertise de profissionais que atuam no gênero, trabalhando para duplas consagradas, além da presença de compositores e empresários sertanejos.
O mercado sertanejo tem enxergado no pagode uma opção de investimento artístico com alto potencial de retorno a curto prazo
e oportunidade de escala nacional. Replicando o grande investimento nas rádios populares, buscando feats e montando DVDs em profusão, o modelo de negócios fica cada vez mais intercambiável. O melhor exemplo atual é o grupo Kamisa 10. Formado em Goiás, o grupo recentemente ganhou elogios do cantor Péricles durante entrevista para o programa “Roda Viva”, da TV Cultura. “Está surgindo muita gente do pagode em polos inimagináveis. Tem um grupo chamado Kamisa 10 em que vocês precisam prestar atenção, eles são demais”, disse o ex-Exaltasamba.
Na mesma fala, Péricles diz que há uma disputa por espaço entre o pagode e o sertanejo. Mas quem trabalha com pagode na região Centro-Oeste diz que o cenário não é bem assim. Na verdade, o pagode ocupa um espaço vago em produtoras médias e grandes, que tentam expandir negócios pelo país. Com muito dinheiro a ser investido, empresários e produtores veem o pagode com grande potencial, e o principal motivo é a chance de replicar o modelo artístico do sertanejo, já consolidado por ali. O próprio Kamisa 10, que investe pesado na gravação de DVDs, é um bom exemplo.
Atualmente, a banda faz parte da Let’s Go Entretenimento, produtora que cuida da carreira de João Gustavo e Murilo, Mayke e Rodrigo e outras tantas duplas que tentam se destacar num mercado superconcorrido. A gravação mais recente, “Na Vibe do K10”, aconteceu no Rio de Janeiro e contou com a participação da dupla Guilherme e Benuto. Todo esse cuidado artístico é levado para os shows pelo Brasil. O Kamisa 10 não está entre os pagodeiros mais conhecidos do país, caso do próprio Menos É Mais, ou de cantores como Belo, Thiaguinho, Ferrugem ou Dilsinho.
Porém, os goianos se tornaram os novos queridinhos dos contratantes. Com um cachê de cerca de R$ 50 mil por show, considerado alto para quem está fora do eixo Rio-São Paulo e não tem nenhum sucesso no topo das rádios, eles apresentam um espetáculo completo, gerando engajamento com um público que está cada vez mais exigente.
“Eles têm um profissionalismo diferenciado para um grupo que está começando, uma produção excelente e um show que dá retorno. Hoje, não tem mais essa história de show básico”, explica o empresário Luan Chaves, dono da Príncipe Produções, que realiza eventos de pagode em São Paulo. Chaves contextualiza que hoje em dia o público que consome esses gêneros demanda alto, como o oferecimento de espaços instagramáveis. E desembolsar grandes cachês demanda uma certeza de retorno. “Não faz senti- do fazermos esse investimento se o artista não oferece uma entrega mais completa.” Em suma, “só” voz e cavaquinho é um formato que não cola mais.
Sem preconceito
Toda essa “revolução” no pagode, que tem lastro em meados de 2017 com o sucesso de “Cerveja de Garrafa” e “Saideira”, do grupo sul-mato-grossense Atitude 67, ambas produzidas por Dudu Borges, também gera ressalvas em quem está no mercado há anos. “Dos gêneros com que trabalhei, o pagode é o mais resistente que eu conheço, o que mais se apega a uma tradicionalidade”, destaca o produtor. Rodriguinho, ex-vocalista d’Os Travessos e um dos grandes nomes do pagode, explica que há uma grande diferença entre o caso de “Fugidinha”, quando ele e seu parceirinho Thiaguinho compuseram uma música que acabou se transformando em uma canção sertaneja, e o que os pagodeiros da atualidade fazem.
A diferença está na imersão no mundo do sertanejo, com parcerias e troca de conhecimento de mercado. O cantor jura não ter nada contra isso, veja bem, mas pontua que é exatamente o que tira o aspecto “raiz” do pagode. Já sobre o mercado para além do palco, Rodriguinho é mais firme: “Eu venho de uma época em que existiam os mesmos escritórios, os mesmos artistas. Não havia um modelo de negócio, era tudo igual para todos. Hoje, acho extremamente desleal. Tudo é baseado em quem tem mais dinheiro para tocar na rádio, para investir nas redes sociais. Minha avaliação sobre esse novo mercado não é legal, eu não curto”, dispara ele. Sobre o momento atual do gênero, outro que faz críticas é Jorge Aragão.
“Não tenho absolutamente nada contra o novo, contra as mudanças. Mas temos uma cara, uma identidade própria.” É notório que há um público sedento por essa mistura de sertanejo com pagode –que vai muito além da musicalidade, mesmo. Os shows que fundem os dois gêneros, a demanda por estrutura e a profusão de trabalhos audiovisuais indicam isso. Mas a semelhança entre esses dois estilos já havia sido apontada lá nos anos 1990, com grupos como Só Pra Contrariar e Raça Negra apostando na sofrência. No entanto, agora a questão vai além. A única certeza é que o pagode já não é mais o mesmo, e parte da rapaziada sente falta do protagonismo do cavaco, do pandeiro e do tamborim.