Como o R&B feito no Brasil ganhou força com novas apostas do gênero
Nomes como Os Garotin, Melly e Jota.pê, indicados ao Grammy Latino, se destacam
Se o rock, o sertanejo e a tríade formada por funk/rap/trap dominaram o cenário musical brasileiro nas últimas décadas, inspirando jovens país afora a criarem as próprias bandas, duplas e rimas, um estilo clássico, porém meio esquecido, anda voltando a brilhar. Uma nova geração aposta nas melodias do R&B e chama a atenção do mercado, dos festivais e do público. Prova disto é a indicação de nomes como Melly, Os Garotin e Jota.pê –personagens desta reportagem, que faz parte da Billboard Brasil #10– terem sido indicados ao Grammy Latino 2024.
O R&B nasceu da mistura do rhythm’n’blues com a música gospel, no final dos anos 1950, pelas mãos dos negros dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, já foi imenso na voz de nomes como Tim Maia (1942-1998), Cassiano (1943-2021), Sandra de Sá, Hyldon e tantos outros, e agora experimenta um retorno aos holofotes com uma nova cena. Luccas Carlos, Hodari, Os Garotin, Yoún, Tuyo e Liniker fizeram o R&B made in Brasil ganhar uma nova cara, cheia de personalidade.
História por trás do R&B
O gênero é fundamentado em aspectos aparentemente simples: ritmo e melodias trabalhadas, composições fortes sobre temas cotidianos com um toque de melancolia, além da presença de instrumentos como piano, guitarra, baixo e sopros. Vocais poderosos e de apoio acompanham. Quando colocados juntos no liquidificador, esses elementos costumam render carreiras espetaculares, como as de Marvin Gaye (1939-1984), Whitney Houston (1963-2012) e Stevie Wonder, entre outros.
No Brasil, o movimento chegou forte no final da década de 1960, chamado também de black music. Com o passar dos anos, no entanto, o R&B tomou outras formas. Aproximou-se do pop, do jazz, do country, e a mistura inicial ganhou ainda mais corpo. Seguindo a mesma tendência, o Brasil adicionou seu toque a tudo isso.
No Brasil
Desde sempre, o R&B conversa com ritmos puramente brasileiros, como fica claro no som da cantora Melly, em que o gênero encontra o pagodão baiano. “É a minha raiz, mas com diversas outras influências. Também acabo fazendo muito pop. Mas o público tem uma dificuldade de aceitar que ele possa ser feito com outra cara, em outro lugar do país”, afirma. De Salvador, na Bahia, Melly tem 23 anos e venceu, em 2023, o Prêmio Multishow na categoria artista revelação. Ela lançou seu primeiro álbum, “Amaríssima”, no último dia 28 de maio e, com o trabalho, deu um novo rumo para o que se entende como R&B nacional. “Eu faço música popular brasileira, minhas letras são populares. As minhas raízes são da black music, é o que eu sou, é o que eu tenho de repertório.”
Essa bandeira das letras R e B, que representam uma complexidade musical gigantesca, pode gerar certa confusão. Afinal, devido às suas características, o gênero se aproxima do pagode, do samba e do que também é considerado música popular brasileira. “O Djavan mesmo é muito R&B, mas foi colocado nessa caixinha da MPB. Eu sinto que as pessoas que estudam a música brasileira não estão interessadas na diversidade da black music e, aí, colocar artistas como ele nessa caixa acaba sendo mais fácil de identificar”, argumenta Melly.
Luccas Carlos, que roubou a cena num palco secundário na primeira edição do festival The Town, há um ano, vai além e defende que o entendimento do gênero pode ser, inclusive, pessoal. “Meu álbum, ‘Jovem Carlos’ começa com um samba. Mas sou um cantor de R&B. E aí depende do que é esse gênero para a pessoa, né? Muita gente vai ouvir e achar que eu estou pensando em fazer outra coisa, mas é o meu jeito de ver a música”, defende.
O cantor carioca de 30 anos viu a chave girar a partir do álbum lançado em 2022. Desde então, seu trabalho vem sendo ligado a diversos gêneros musicais o que, para ele, não é problema. “The Weeknd, por exemplo, sempre bateu na tecla de que não é rapper. A gente demorou a entender, mas entendeu”, define Luccas. Essa luta do artista canadense é uma em que o brasileiro não quer mais entrar. “Eu posso ser muita coisa. Nas antigas, já me coloquei muito nesse lugar de defender que não sou rapper, mas hoje não me vejo mais apenas como cantor. Se eu quiser rimar, vou rimar, se eu quiser gritar um bagulho, sei lá. Posso fazer qualquer coisa.”
O mesmo vale para o estreante –mas não tão estreante assim– Jota.pê. Aos 30 anos, o cantor de Osasco, São Paulo, tenta a sorte na música há uma década, mas ganhou a atenção do público depois de participar do reality da TV Globo “The Voice Brasil”, em 2017. Desde então, amadureceu seu som, que também é marcado pela mistura. “O Tim Maia é uma grande referência de R&B para mim, por exemplo. E ele é classificado como um artista de MPB, né? Que é outra mistura e engloba muita coisa. Eu também me classifico dentro desse aspecto da MPB, justamente por fazer essas misturas –sendo uma delas o R&B, que é muito presente no meu trabalho.” Calcado, sim, no rythm and blues, o segundo disco de Jota.Pê, “Se o Meu Peito Fosse o Mundo”, já desponta como queridinho nas listas de melhores deste ano.
Mas, então, o que é o R&B?
Talvez você já esteja cansado de ler a palavra mistura neste texto, mas não existe nada mais certeiro para definir o que se tornou o R&B. De fato, é um gênero que bebe da fonte de vários outros para se tornar o que é, e continua sendo um organismo vivo, que se movimenta e se apropria de novidades, mantendo a essência com letras melancólicas, melodias e instrumentos característicos. Ainda conta com influências do que é feito dentro das igrejas espalhadas pelo Brasil. Melly diz que o início de sua trajetória na música foi dentro de uma pastoral –iniciativa da igreja católica que promove atividades diversas para jovens, como aulas de canto e instrumentos. “Meu primeiro show autoral foi em um festival religioso. O padre gostou da minha voz e me chamou. Não precisei cantar músicas religiosas, fui nas que eu tinha mesmo.”
Esse espaço de criatividade misturado com religião também foi o cenário em que Shuna, 30 anos, e Gian Pedro, 26 anos, se conheceram e decidiram criar o duo YOÚN. “Nossa formação veio desse lugar, de dentro da igreja. Foi onde aprendemos a tocar instrumentos e, principalmente, onde nos conhecemos”, relembra Gian, que adiciona seu violino ao rebuscado som da dupla. Naturais de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, eles definem essa experiência como essencial para o que o YOÚN é hoje, inclusive em termos de qualidade artística –que é alta e os levou ao pitching musical da última edição do Rio2C, maior evento de criatividade da América Latina, animando os nomes da indústria que assistiram ao show. “Eu não sabia cantar antes de fazer parte do coral. Foi ali que aprendi a compor e onde desenvolvi mais técnicas vocais”, conta Gian.
“Eu posso ser muita coisa. Nas antigas, já me coloquei muito nesse lugar de defender que não sou rapper, mas hoje não me vejo mais apenas como cantor. Se eu quiser rimar, vou rimar, se eu quiser gritar um bagulho, sei lá. Posso fazer qualquer coisa.” – Luccas Carlos
Depois de ter a igreja como escola, a dupla usou o metrô do Rio como palco. Cantou de vagão em vagão até chamar a atenção do público e cativar seus primeiros fãs. “Nosso som, para nós, parece ser algo comum, por estarmos submersos nesse estilo há alguns anos. Mas, para quem ouve pela primeira vez, soa como um respiro, uma novidade. A gente foi influenciado pelo o que aprendeu na igreja, mas nasceu na periferia. A gente ouvia funk, pagode. Nenhum de nós nunca perdeu o contato nem a conexão com a rua”, destaca Gian.
O trio Os Garotin, formado em São Gonçalo, no Rio, por Leo Guima, Anchieta e Cupertino, teve base semelhante. “Nós três tivemos esse aspecto na nossa criação, da igreja periférica”, diz Leo. “Essa musicalidade que está dentro da gente veio da igreja”, complementa Cupertino. Eles surgiram no cenário musical em 2023 e lançaram o primeiro disco, “Os Garotin de São Gonçalo”, neste ano. Representando a nova onda do R&B nacional, estiveram em festivais como o Turá, em São Paulo, e receberam a bênção de Caetano Veloso, com quem gravaram a faixa “Nossa Resenha”.
Amigos, eles decidiram criar o trio após a pandemia, depois de terem se aventurado como solistas na música. “A gente não tinha muita noção, no início. Quando se deu conta do que estava fazendo, percebeu que era algo diferente”, relembra Cupertino. “Aí fizemos maldade, né?”, brinca Leo. “Essa coisa de encaixar um pouquinho de tudo na música faz parte da nossa essência”, completa.
“Nosso som, para nós, parece ser algo comum, por estarmos submersos nesse estilo há alguns anos. Mas, para quem ouve pela primeira vez, soa como um respiro, uma novidade” – YOÚN
O que há de novo
Os últimos três anos definiram uma safra poderosa para o R&B brasileiro. Os nomes citados nesta reportagem lançaram trabalhos que repercutiram entre o público e atraíram a atenção do mercado. Julia Braga, diretora de marketing do selo Slap, da Som Livre, acredita que esse é um espaço ainda a ser explorado na indústria fonográfica. “Este é, talvez, um dos estilos mais ecléticos que existem, principalmente se a gente pensar no que o Brasil contribui para ele”, diz ela. O selo surgiu com a ideia de apresentar ao mercado novos artistas, e revelou nomes como com Silva, Tiago Iorc e Maria Gadú. Segundo Julia, a ideia é colaborar com a cultura brasileira ao mostrar para o público novos artistas e novas tendências musicais. “A gravadora propõe algo popular, e isso inclui o R&B. A gente segue com essa assinatura de representar algo que não esteja, necessariamente, no mainstream, mas traz essa representatividade”. Jota.pê e Melly fazem parte do catálogo do selo.
Além da gravadora e dos festivais, eventos e festas têm voltado suas atenções para o novo momento do gênero. Luedji Luna, com uma carreira consolidada como cantora, decidiu se aventurar no lado empresarial da coisa e lança, em 2024, a primeira edição da festa Manto da Noite, focada em R&B. A ideia surgiu, justamente, da falta de eventos dedicados ao gênero. “A Erykah Badu foi colocada na programação de um festival brasileiro que não tinha nada a ver com ela. Ela é uma artista do hip hop, que dialoga com o movimento do rap como um todo, mãe do neo soul e do R&B. O festival traz esse artista e não coloca nenhum DJ na programação?”, relembra, citando a edição de 2023 do Nômade, em São Paulo. Luedji frisa que o R&B brasileiro vem crescendo há anos, mas vive agora um momento inédito. “Essa geração nova vem com algo mais definido. Os artistas estão assumindo esse título de R&B.”
Ela defende que, durante muitos anos, a mídia não conseguiu destrinchar o que era a música preta e englobou tudo como “black music”. Separar as coisas manda uma mensagem mais clara para o público e possibilita tanto para o mercado, quanto para os artistas, explorar toda essa mistura. “Sair desse não-lugar faz com que o gênero retorne com toda força para o gosto do brasileiro.”