Cat Power volta ao Brasil mais serena, apaixonada por Bob Dylan e feijoada
Cantora faz show em homenagem ao ídolo no C6 Fest, em SP, neste domingo
Chan Marshall, a Cat Power, não é mais a mesma. Ainda bem, segundo a própria. A eterna musa indie chegou aos 52 anos muito mais serena, feliz com a maternidade-solo, com a bipolaridade controlada e tendo superado uma experiência de quase morte justamente enquanto um álbum aparecia pela primeira vez no top 10 da Billboard. E é nessa vibe muito mais tranquila (e saudosa de feijoada, que trata como um alimento divino) que a cantora norte-americana de sucessos como “Sea of Love” e “The Greatest” volta ao Brasil, para o C6 Fest, neste domingo.
Entre Pavement e Daniel Caesar, a cantora apresenta o show especial baseado no álbum “Cat Power Sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert” (2023) que, como o título entrega, regrava o lendário disco ao vivo de Dylan acompanhado pela The Band (na época ainda chamada de The Hawks). Diferentemente de Dylan e seus parceiros, Chan de fato gravou na lendária casa de shows londrina –enquanto o tal show de 1966 aconteceu em Manchester, no norte da Inglaterra. Fã do bardo norte-americano, ao ser convidada pela BBC para tocar por lá, Chan jura não ter pensado duas vezes na hora de sugerir o show em homenagem ao seu maior ídolo –o que rendeu um belíssimo registro.
Abaixo, você lê a íntegra do descontraído papo, que começou com Chan Marshall elogiando a decoração do quarto da entrevistadora e terminou com uma bela indicação de leitura.
Billboard Brasil: Alguns de seus maiores sucessos foram músicas de outros artistas, como “Sea of Love”, de Phil Phillips, e o álbum “Jukebox” (2008), mas esse é seu primeiro álbum centrado no trabalho de apenas um artista. Acho que seria muito bobo da minha parte perguntar por que homenagear o Bob Dylan, então prefiro perguntar por que escolher um disco ao vivo dele para tocar no Royal Albert Hall?
Bem, eu não conseguia marcar um show em Londres, o que era muito surpreendente porque eu tinha cinco singles do disco “Covers” [2022] tocando ao mesmo tempo na rádio BBC 6, algo inédito na minha carreira. Tenho sorte de tocar nas rádios de qualquer lugar do mundo, mas não conseguia marcar um show por lá. Eu estava muito preocupada com o porquê, e eu queria encerrar minha turnê em Londres por causa dessa ótima resposta que recebi de lá. E o único local que me ofereceu uma data foi justamente o Royal Albert Hall, e foi tipo… Fiquei sem fôlego quando finalmente consegui o show, e ainda foi no Guy Fawkes Day, 5 de novembro de 2023 [o disco viria a ser lançado apenas cinco dias depois]. Achei revolucionário! E eu, bem, sem nem pensar, falei que queria tocar este disco. Parecia uma ideia perfeita para encerrar uma turnê de covers. Eu nunca tinha estado naquele lugar antes, mas vi o documentário “Don’t Look Back” quando tinha 20 anos, sobre Dylan, e foi, você sabe, uma bela mudança de vida.
E como foi transformar esse show de covers, que encerrou uma turnê de covers, em um álbum ao vivo como o que Dylan gravou?
Algumas semanas depois do anúncio do show, depois de muitas mensagens nas redes sociais, de pessoas de todo o mundo, inclusive do Brasil, dizendo “por favor, tragam este show para o Brasil”, eu pensei: “caramba, não sei se terei condições de sair em turnê com este disco porque a banda é muito grande, seria muito caro”. E foi então que tive a ideia: talvez devesse gravar o show. Então, se eu nunca mais tocasse isso de novo, pelo menos teria o disco para compartilhar. Só que eu não tinha a porra do dinheiro, então a [gravadora] Domino falou: “olha, a gente paga”, e aí vieram as ofertas para tocar em São Paulo, por exemplo.
Como Bob Dylan ainda dialoga com o mundo de hoje?
Essa turnê foi um grande presente para mim e um presente que eu gostaria de dar a Bob. As pessoas que vêm a esses shows estão realmente elevando meu espírito e tem sido um momento lindo. Quero dizer, para a música, porque o mundo tem muitos problemas. Gravei essa performance num momento em que os Estados Unidos estavam banindo livros, os direitos das mulheres estão sendo jogados pela privada, e vejo a militarização da polícia por todo o país. Achei que esse era mais um motivo para fazer e registrar esse show, vai que ele inspira alguém ao longo do caminho a fazer suas próprias coisas, a falar o que pensa, a não temer.
O Royal Albert Hall é um lugar sagrado para a música. Você realmente não pensou em nenhum momento em gravar suas próprias músicas por lá em vez de tocar as do Dylan?
Não. Achei que era uma ideia tão boa, veio tão espontaneamente, do meu coração, que nem pensei duas vezes. Foi como se eu tivesse vomitado a vontade de fazer esse show. Pensei: “Eu quero fazer isso. Eu vou tocar Bob Dylan. Sabe? Fazia sentido… porque eu, você sabe, eu amo o Bob, amo o trabalho dele. Eu simplesmente senti vontade. Foi tão simples querer fazer isso…
Muita gente jovem não está familiarizada com a obra e o legado de Bob Dylan, o que deve mudar consideravelmente com a estreia da cinebiografia do músico estrelada por Timothée Chalamet (ainda sem data de estreia). Você, como artista, se sente na obrigação de passar para a frente a música de seus ídolos para uma nova geração?
Esse é o espírito. Esse é o verdadeiro espírito. Qualquer forma de arte sempre me emocionou. Música, balé… Até comida, como… feijoada, a primeira vez que coloquei feijoada na boca… eu não estou brincando. Você sabe que estou dizendo. Foi um momento mágico. Sim, é esse tipo de coisa que move minha alma.
Acho que essa é a pergunta mais difícil que você vai responder hoje, mas qual é a sua letra preferida do Bob Dylan?
Nossa, sim, é muito difícil escolher uma, mas… [Cantando] “Ramona, come closer…”
Essa letra tem aquela dor que passa para você, sabe? Comprei esse disco por US$ 1,50 quando eu tinha 17 anos. Eu já conhecia Bob Dylan, mas quando ouvi essa música, eu fiquei: “espera”. Ele ama essa mulher, e um homem que é capaz de amar tanto uma mulher a ponto de escrever uma música incrivelmente comovente para protegê-la… Eu precisei continuar ouvindo Bob Dylan porque ele me fez me sentir segura aos 17 anos.
Eu não me sentia segura e então Bob Dylan me ofereceu essa experiência de vida. Por isso as pessoas têm essa relação que parece próxima, de camaradas, com ele. E nessa letra ele diz que as dores da sua tristeza passarão à medida que os sentidos vão se expandindo. Você sabe, tentar ajudar alguém a pensar melhor e ouvir seu coração… é lindo dar a ela aquela música, seja ela quem for. Ramona pode ser você, pode ser eu. Amar mulheres assim é lindo.
Tem alguém da nova geração que você admire, mesmo que não tanto quanto Dylan?
A Olivia Rodrigo é alguém que está fazendo algo muito legal. Ela acredita no poder das mulheres, ela é feminista e ter alguém como ela cantando trilha sonora desse novo filme do Bob Dylan seria ótimo. Acho ótimo qualquer coisa que empodere os jovens de hoje a serem destemidos diante das adversidades.
Nesse álbum você soa bem menos como Cat Power e mais como Bob Dylan. Por quê?
Eu queria oferecer essas canções com a graça e a dignidade dele porque você sabe, eu o amo. Eu amo o trabalho dele. E ele ainda está vivo, ele está andando pela Terra e fazendo entregas. Mas eu realmente não me importo com o que ele pensou [sobre o disco]. Eu o vi em Glasgow [na Escócia] três dias antes de fazer aquele show em Londres e foi o melhor show que eu já vi. Ele me colocou na lista e eu tive a oportunidade de abraçá-lo e dizer o que estava acontecendo. Ele cantava como quem fazia uma anunciação, ao mesmo tempo em que a banda soava tão quieta. Foi fantástico.
Você sabe o que ele achou do seu álbum?
Hm-hm. Eu não quis perguntar. Para quê? Você dá um presente para alguém porque ele saiu do seu coração, o objetivo não é saber o que a pessoa vai pensar.
Você já experimentou o sucesso comercial, chegou a aparecer nos charts da Billboard. Como é voltar para um modo mais indie de fazer música depois de trocar de gravadora e sair da Matador Records para a Domino?
Obrigada! Eu estou muito forte. Quero dizer, meu poder… não tenho mais medos, não fico mais me questionando. Eu estava [na Matador] fazendo as coisas por amizade, você sabe, porque eu era amiga deles há muito tempo. E eu estava fazendo muitos negócios por amizade e sinto que isso me machucou de várias maneiras. Então veio a maternidade. E eles me dispensaram logo depois de eu ter meu filho [em 2015].
Então eu tive uns dois anos muito, muito difíceis. Mãe solo, sem trabalho, sem um disco, sem gravadora. Mas eu superei isso, e passar por algo assim, em que todo o seu universo desmorona… Lana Del Rey me procurou e me levou em turnê pela Europa. Nick Cave me procurou e me fez abrir os shows dele. Você sabe, há pessoas no meu mundo, no mundo da música, que me ajudaram a entender o que estava acontecendo. Eles diziam: “Chan, você está sendo descartado pela sua gravadora? Não há equivalente a quem você é como artista, mulher ou mãe, nada”. E por ter percebido que não estava sozinha, eu fui capaz de ficar mais forte e de ser mãe de um menino nesse mundo louco de homens, com leis de homens e guerras de homens. Eu me sinto muito abençoada pelo que eu tenho, pelo meus talentos, não acho que nada seja garantido, mas estou muito feliz, grata e honrada por ser convidada para tocar esse disco por aí porque nem acreditei que isso fosse acontecer, sabe.
Isso é algo que eu não imaginaria quando criança: ser cantora, nunca imaginei cantar essas músicas para pessoas que nunca vi na vida, ainda mais pessoas mais velhas, de 70, 80 anos, que têm vindo aos meus shows. Cantar para elas vendo os sorrisos em seus rostos é lindo demais.
Você viveu momentos bem conturbados na vida e na carreira. Logo depois do lançamento de “Sun”, em 2012, você foi internada ao mesmo tempo em que emplacava uma música no top 10 da Billboard pela primeira vez. Do que você se lembra deste período?
Esse foi um dos períodos mais sombrios de todos os tempos. Eu tenho uma doença auto-imune e fiquei em cuidados intensivos talvez 15, 16, 20 vezes. Tive um pico de estresse, meu esôfago fechou e basicamente me asfixiei. Eu perdi aquela turnê, perdi muita coisa, quase fui à falência, tive que agendar uma nova turnê às pressas. Mas tive que seguir em frente, não queria que ninguém soubesse que eu estava doente porque precisava cumprir com a minha obrigação. Aquelas músicas daquele disco eram muito importantes para mim e eu precisava cantá-las para seres humanos.
Eu me recusei a morrer. Recusei a deixar que isso me atingisse e isso mudou minha vida para sempre. Me tratei usando medicina natural vinda da Amazônia. Vocês, no Brasil, têm todos esses medicamentos naturais. Eddie Vedder tem uma fundação para ajudar a salvar as florestas tropicais, e isso é muito importante.
Nós duas sabemos que envelhecer não é fácil, especialmente para nós, mulheres. Mas posso ver que a atual Chan Marshall está muito melhor que a Chan Marshall de antigamente. Estou certa?
Obrigada! E sim. Adoro envelhecer porque consigo eliminar o comportamento tóxico do meu ambiente com mais facilidade do que antigamente. Quando você é jovem você tem problemas, você precisa de ajuda. Eu cometia o o mesmo erro repetidamente, e isso era uma questão de saúde mental.
Sim, eu não sou perfeita. Ninguém é perfeito. Mas através de terapia psicológica e de uma série de terapias alternativas disponíveis eu estou melhorando. Eu tenho esse temperamento, às vezes acabo machucando alguém ao meu redor. Tipo, eu realmente mudo de humor muito rápido. Eu tenho que trabalhar nisso, mas você sabe, fomos ensinadas que temos que ter um tipo de corpo, um tipo de comportamento, sofremos uma lavagem cerebral. Mas nada disso significa nada. É lixo. As mulheres realmente sabem o que é melhor e mais importante para elas.
E estou bem. Estou envelhecendo bem. Eu me amo. Eu amo minha vida, meu filho. Eu amo o mundo. E acho que a maioria das mulheres tem isso dentro delas. Elas simplesmente não são ouvidas.
Quais os planos para depois do fim da turnê?
Voltar ao estúdio. Eu estou trabalhando no meu novo álbum, chamado “Opus”. Tenho cinco músicas quase prontas, mas preciso trabalhar mais nelas. E tenho outras canções que ainda não gravei.
Também quero focar no meu filho depois das aulas, levá-lo para jogar futebol, tênis, nadar, e então voltar a fazer turnê no verão [do hemisfério norte] com os Pixies e o Modest Mouse.
Então estou em turnê, sou mãe, estou gravando, estou me mantendo saudável e andando para frente, me certificando de ter boas pessoas à minha volta. Ah, e eu estou tentando ler livros, que é a parte mais difícil. Tenho esse ritual: acendo uma vela, encho a banheira com água morno, espalho óleo de lavanda e rosas e tento ler. Tem esse livro jovem-adulto do Gustave Flaubert, “Um Coração Singelo”, que é super curto e bateu tão profundamente em mim. É difícil, mas tão bonito. Acho que você vai gostar. À noite, antes de dormir, desligue o maldito telefone e o computador, apague as luzes mais fortes, tome um banho, acenda uma vela, pegue seus óculos de leitura porque provavelmente você usa, como todas nós, old bitches, e leia esse livro.