A salvação pela rave, pelo humor e pela resistência no palco New Dance Order
Para curtir o palco eletrônico, além da disposição, é preciso querer ser salvo
O palco New Dance Order estreou no Rock In Rio VIII, em 2019, com headliners como Bhaskar, Infected Mushroom, Alesso, DJ Malboro e Vintage Culture, entre outros que, individualmente, contribuíram para gêneros como o deep house, o Brazilian bass e o big room. Em 2023, no The Town, o protagonismo é das criaturas clubbers da noite de São Paulo que salvam e são salvas em um movimento constante de cura em uma cidade que esborra beats na mesma proporção que a síndrome do esgotamento (o famoso burnout) populariza-se no linguajar dos paulistanos.
A depender do primeiro final de semana do palco, as festas GopTun, Mamba Negra e ODD irão vivenciar uma disputa mercadológica: por conta da chuva, o palco dedicado ao eletrônico apresentou-se como alternativa viável apenas para os muito dedicados à rave ou aos curiosos atraídos pela mega estrutura de temática espacial.
Simulando uma grande nave e embalado por grandes módulos de som que levavam o grave direito ao peito, o palco permitiu aos mais resistentes viver um pouco desse espírito do tempo paulistano construído nos últimos anos por festas como a Batekoo e a Carlos Capslock.
Um pouco de grave, um pouco de riso
Autodenominando-se, em tom sério-jocozo, como um designer de vibes, Mauricio Bahia Sacramento é quem trouxe a Batekoo como um quilombo para São Paulo. “Em 2013 a 2015, teve uma virada de chave em que as pessoas descobriram que ser preto era uma coisa muito boa”, recorda o também produtor, empresário e DJ Fresh Prince da Bahia — como também assina quando no comando do baile. “A gente estava em um momento coletivo muito bonito. Ter duas pessoas pretas em um mesmo recinto era um motivo para nos conectarmos, virarmos amigos. E a Batekoo me fazia estar sempre rodeado de pessoas da minha rede e cor que não compartilhavam desse tal espírito paulistano”, analisa.
Foi aquilombando-se entre os seus que a Batekoo transformou a vingança contra São Paulo em festa e festival fenômenos da noite paulistana. “Como hoje a gente ainda passa por situações de violência contra pessoas negras, é normal que o ser humano reaja na mesma proporção em que foi atingido. Mas a Batekoo converteu essa vingança em felicidade e afeto”, explica. No palco New Dance Order, além de Mauricio, a apresentação, realizada nesse sábado (02), foi liderada por MC JujuZL e pelos DJs Kiara Felippe e Mirands. O set apresentou canções de artistas que correm por fora dos clichês da música pop eletrônica brasileira (como o duo paulistano Irmãs de Pau) e desfilou músicas de gêneros como o brega funk e o pagodão, tendências que sempre rolaram nos galpões por onde a festa se realizava em São Paulo.
Bem-humorada desde o nome, a Carlos Capslock é uma das principais festas do movimento de contracultura de São Paulo. Há 12 anos, quando tudo era mato, colocar performers no palco de uma festa eletrônica ainda era novidade . “Para mim, é um prazer poder tentar trazer um pouco de humor para as pessoas que vivem ema São Paulo pois, sei como a cidade pode ser hostil e exclusiva dependendo das oportunidades que você tem acesso”, explica Paulo Tessuto, ex-jogador de basquete, produtor, DJ e criador do personagem que dá nome à festa.
A chegada ao palco do The Town foi marcada pela chuva e competição com o show de Bruno Mars. Mas os fatores agridoces combinam, em parte, com a biografia espontânea da festa. “A decisão de fazer essa o personagem se tornar uma festa foi algo que nunca foi planejado. As coisas foram acontecendo naturalmente. Eu confesso que fiquei um pouco surpreso [com o convite] mas também um pouco orgulhoso. Eu sei que a Capslock é uma festa que é reconhecida em todo o Brasil por sua essência, representatividade e qualidade, mas também sei que ainda podemos crescer muito. Então, é aquela coisa: meio marguerita-meio chocolate com morango”, brinca o produtor que subiu ao palco, nesse domingo (03), junto aos DJs Stroka e Beliza e daas performers Ka Trevosa, Ronalda Bi e Elloanigena Onassis.
São Paulo, Europa, The Town
Tessuto é um ex-jogador de basquete do Esporte Clube Pinheiros que, aos 16 anos, começou a ir para outro club, a Lov.e, casa que recodificou a noite techno brasileira. Pergunto como ele está e a resposta é um resumo da festa como espaço de proteção e desenvolvimento de identidades em São Paulo. “No momento, eu estou ‘maior bem’. Feliz com as minhas decisões assim como com as oportunidades que a Capslock vem tendo ao longo dos últimos anos. É muito bom poder aprender com os meus erros assim como observando novos projetos nascerem e evoluírem. Estou em um constante processo de evolução e desconstrução. O que me move é criar encontros que puder mudar a vida das pessoas”, define após turnê por cidades como Berlim, Lisboa e Rotterdam.
Tímido, Maurício Sacramento teve que se esforçar para vencer, além da introspeção, a vinda para fazer a Batekoo arrebatar uma carência afetiva em uma cidade como São Paulo. “Sei lá. Eu cresci numa periferia de Salvador, num bairro chamado Vale das Pedrinhas, e quando você cresce como uma criança pobre, você não tem muitas expectativas. Meu máximo de crescimento era passar no ENEM. E eu não passei. Então era muito estranho conseguir tudo isso sem ajuda dos meus pais, de um mentor. Foi tudo by myself e aos trancos e barrancos”, reflete o Fresh Prince da Bahia e da Batekoo. “Eu não tinha um planejamento. Tinha um propósito despretensioso de criar um projeto de valorização das estéticas negras, de exaltação da negritude. A festa acabou alcançando um lugar gigantesco e em muito pouco tempo começamos a receber convites de São Paulo. Pra mim, é muito doido pensar nisso”, responde, dizendo que, em outras palavras, sim, está bem após narrar a exaustiva turnê que o coletivo fez por Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda, Inglaterra, Portugal.