‘Você é Doida Demais’: Lindomar Castilho matou mulher e foi perdoado pela filha
A história de dor e perdão vivida pelo cantor do hit brega e Liliane de Grammont


No dia 30 de março de 1981, a cantora Eliane de Grammont se apresentava na boate Belle Époque, em São Paulo, ao lado do violonista Carlos Randall. Logo após entoar os versos “agora era fatal, que o faz de conta terminasse assim”, da canção “João & Maria”, ela caiu ao chão, baleada por tiros de um revólver calibre .38. O autor dos disparos era o ex-marido e pai da filha de Eliane, Lindomar Castilho, sucesso nos anos 1970 com boleros como “Você É Doida Demais” e “Nós Somos Dois Sem Vergonha” e – que ironia cruel– “Eu Amo a Sua Mãe”.
A atitude do cantor, que ainda não havia digerido o término do casamento, era símbolo de um período arcaico em que homens “lavavam a honra com sangue”. Dois anos antes, o playboy Doca Street havia alegado “legítima defesa da honra” para justificar o assassinato da socialite Angela Diniz. Street foi condenado a 18 meses de cadeia, mas foi do tribunal direto para casa porque já tinha cumprido um terço da pena prevista.
O caso de Lindomar, contudo, mobilizou as feministas, que protestaram, fortalecendo o lema “quem ama não mata” e ajudando a condenar Doca em segunda instância. Lindomar acabou sentenciado a 12 anos de prisão. Quando tentou retomar a carreira, logo após o cumprimento da pena, as manifestações das feministas eram tão frequentes que ele optou pela reclusão.
O drama, que começou com um feminicídio, ganhou novos contornos no final dos anos 1990. Liliane de Grammont, a Lili, filha do casal, retomou o contato com o pai. Ela tomou essa atitude depois da morte da avó, que a criou juntamente com os tios –os jornalistas Helena de Grammont e Juarez Suarez.
“Minha avó se sentia culpada, porque apresentou o meu pai para a minha mãe. Me aproximar do meu pai foi um processo de juntar os cacos e acreditar que o ser humano pode, de alguma maneira, evoluir”, justifica. “Esse perdão é por mim, para que eu fique inteira e consiga seguir minha vida.”
As memórias iniciais de Lili são de um pai carinhoso, que de repente foi tirado de seu convívio (aliás, ela estava dormindo na casa dele na noite fatal). A retomada tem momentos de tensão, intercalados por lembranças de um período de ternura. Durante uma visita à casa do pai, ela achou um chapéu onde se lia Eliane e Lindomar.
O nome da mãe também estava escrito dentro de um violão que o cantor carregou por quase toda sua carreira. “Foi um momento bem impactante. Para mim, é importante saber que eu nasci também de um momento feliz, né?”
Lindomar, hoje com 83 anos, vive em Goiânia e recebe visitas ocasionais da filha.
Duas décadas depois, Lili transformou a dor em coreografia no espetáculo “Memórias em Conta Gotas”, da São Paulo Companhia de Dança. Ela é uma profissional consagrada em seu meio: criou coreografias para a última montagem da ópera “Aída”, do Theatro Municipal de São Paulo, e para “O Meu Sangue Ferve por Você”, cinebiografia do cantor Sidney Magal.
“Memória em Conta Gotas”, indicado ao prêmio APCA 2023, tem três canções de Lindomar com movimentos criados pela filha. São elas “Você É Doida Demais”, “Eu Vou Rifar Meu Coração” e “Linda”, que ela descobriu há pouco tempo. “Ele compôs ‘Linda’ para mim na cadeia. Na letra, pede o meu perdão”, diz ela.
Em alguns momentos do bailado, criado por Lili, uma dançarina cobre o rosto com uma meia, como se não quisesse mostrar sua identidade. “Foi então que eu percebi que estava falando de mim.”
A cura pode ser um processo longo e doloroso, mas do qual Lili não abre mão.