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Tudo o que você precisa saber sobre kpop para não passar vergonha

Tudo o que você precisa saber sobre kpop para não passar vergonha

Desafiando estereótipos, gênero transformou o mercado da música

Avatar de Guilherme Lucio da Rocha
Grupo de kpop TXT

Vírus que precisa de vacina, fábrica de salsicha, aparência e beleza “exóticas”.“Backstreet Boys da China”, filme esquisito, tudo igual. Quando se fala no pop produzido na Coreia do Sul, esses são, por baixo, os comentários menos preconceituosos disparados por quem não tem intimidade com essa cultura. Há xingamentos ainda piores, mas pouparemos o leitor dessas infâmias que beiram o racismo. Mais do que desconhecimento, trata-se de uma questão cultural: há séculos a Ásia é rotulada como uma região parada no tempo e dominada pelo misticismo. A visão extravagante, alimentada principalmente por olhares europeus e norte-americanos, cega para o fato de que se trata de um continente rico em sofisticação, diversidade cultural e inovação. No caso do kpop, ignora-se também que se trata de um dos maiores fenômenos do século XXI –e que não tem data para acabar. Como diria um veterano treinador da seleção brasileira, terão de engolir MUITO o kpop.

Ao contrário do que se acredita, ele não é um gênero musical. É uma indústria multitrilionária (você não leu errado: multitrilionária!) que compreende música, produções audiovisuais e marketing. O ramo da música está no topo dessa cadeia alimentar. Estima-se que entre 2014 e 2023, o septeto BTS, primeiro grupo a dominar o mercado norte-americano, injetou mais de 29 trilhões de wons na economia da Coreia do Sul. A YG, empresa do BLACKPINK, outro nome de expressão do kpop, faturou US$ 120 milhões de abril a junho de 2023. No Brasil, ele é deglutido principalmente em São Paulo, cidade onde se concentra uma vibrante colônia coreana. Em 2019, o BTS esgotou duas noites de shows no Allianz Parque, estádio que já abrigou os ultrapop Coldplay e Ed Sheeran. Grupos como ATEEZ, NCT 127, Super Junior, aespa e o cantor WOODZ –ex-jogador do Corinthians que virou popstar–, entre outros, também desembarcaram na cidade, com igual sucesso. Plataformas de streaming como Spotify tiveram um aumento de 772% no consumo do pop coreano nos últimos seis anos.

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“É apreciável que o kpop, que ganhou destaque em nosso país natal, seja admirado por pessoas de diversos lugares ao redor do mundo”, afirma Cheul Hong Kim, diretor do Centro Cultural Coreano no Brasil. Para entender essa revolução nas artes do país é preciso retornar ao início do século passado, quando a Coreia foi subjugada pelo Japão. De 1910 a 1945, os japoneses extirparam todo resquício de identidade coreana e impuseram os seus costumes –entre eles o idioma, os livros, os programas de rádio e de TV. Após a rendição dos invasores, a península foi dividida entre os Estados Unidos e a então União Soviética. A parte sul, cuidada pelos norte-americanos, acabou por assimilar o modus operandi político e –mais do que tudo– do entretenimento dos novos ocupantes. Mas foi só a partir do filme “Parque dos Dinossauros” (1993), de Steven Spielberg, que rendeu mais dinheiro do que a venda de carros Hyundai (um orgulho nacional) que o governo percebeu que a cultura poderia se tornar um veículo de consumo interno e de exportação. Uma decisão que fez com que a Coreia do Sul se tornasse uma indústria competitiva no leste asiático. “Os produtos ficaram mais baratos do que no Japão e na Indonésia. Todos passaram a comprar deles”, diz Daniela Mazur, doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense.

A ideia de vender a música para outros países surgiu ainda nos anos 1990, com a criação de companhias dedicadas ao pop local: o kpop. O modelo de fabricação de popstars foi baseado nos exemplos japoneses e norte-americanos. No caso desse último, a Motown, principal gravadora de música negra de todos os tempos e que gerou ídolos do quilate de Michael Jackson e Stevie Wonder. “Os grupos da Motown tinham aulas de etiqueta, de dança e cantavam um repertório criado para eles. Isso acabou por criar um modelo a ser seguido”, diz o produtor musical João Marcello Bôscoli. De volta à Coreia… Quando Park Jae-Sang, mais conhecido como PSY, atingiu a marca de 1 bilhão de visualizações com “Gangnam Style”, em 2012 (batendo o “invencível” Justin Bieber), ele externou para o resto do mundo uma realidade há muito conhecida no continente asiático. Os coreanos tinham em mãos uma indústria pulsante e globalizada, pronta para ser trabalhada em outras nações.

BTS, BLACKPINK, EXO, TWICE e congêneres fazem parte da terceira geração do kpop. Embora não tragam tantas diferenças na parte musical (já que o pop é a base), eles se sobressaem pelas coreografias mais bem elaboradas e pelo fato de hoje serem mais aceitos no xenófobo mercado norte-americano. O BTS, por exemplo, figurou na segunda colocação dos artistas mais populares no mundo em 2022, segundo relatório da IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica). É seguido de perto pelos conterrâneos do SEVENTEEN e do Stray Kids.

O kpop é um grande e bem saboroso Bibimbap, um dos pratos mais populares da culinária coreana (um risoto made in Seoul, que junta carne, arroz e vegetais). O ingrediente principal do Bibimbap kpop é a música urbana, calcada em batidas eletrônicas e samples. Muitas vezes, acrescenta-se um rapper para dar sabor às canções. A coreografia entraria como gochujang, uma pasta de pimenta ardente. O coreano é a língua mais utilizada, seguida por inglês e japonês. Por mais que seja um modelo de produção esquematizado, ele está longe de ser a tal “fábrica de salsicha” à qual costuma ser comparado. “Se for uma salsicha, trata-se de um alimento muito temperado e que só tem lá”, diz a jornalista Érica Imenes. O kpop arranca elogios até de produtores identificados com o que existe de contemporâneo na nova música brasileira. “Os feedbacks de produção são os mais detalhados que vimos na vida”, diz Laudz, do Tropkillaz. Ele e o parceiro Zegon produziram, ao lado do americano Dem Jointz, o single “Ay-Yo”, do grupo NCT 127.

Ser um astro de kpop é passar por provações dignas de uma prova de sobrevivência. Os candidatos participam de audições em vários lugares do mundo. Passam meses, até anos, tomando aula de canto, dança, atuação e –caso não sejam oriundos do país– de coreano. São incontáveis horas de ensaios e gravações até o grupo estar pronto para debutar. A escassez de hits pode ser fatal para os artistas. Em geral, eles são dispensados ou colocados na geladeira pelos empresários quando fracassam. A série “Além do Guarda-Roupa”, da HBO Max, dá um gostinho da rotina de um grupo de pop coreano. Ela mostra o quarteto fictício ACT, que subitamente aparece no guarda-roupa da protagonista, uma adolescente coreana-brasileira. Os produtores colaboraram com uma empresa da Coreia para as canções da trama e foram fiéis ao esquema de promoção do grupo –com direito a clipe e até um dance practice (o ensaio) dos artistas.

“Além do Guarda-Roupa” é a primeira produção brasileira com aspectos da dramaturgia coreana –da vinheta de abertura aos créditos, passando pela trilha sonora, produção de conteúdo extra nas redes sociais e mistura da fantasia com o romance. “Pesquisamos para entender o motivo de os brasileiros assistirem a dramas coreanos, e era curioso ver a amplitude da idade do público”, diz Silvia Fu, diretora de produção de conteúdo roteirizado da Warner Bros./Discovery. O kpop, aliás, não é consumido apenas por adolescentes. Dados da KCON USA, evento que promove a cultura coreana nos EUA, mostram que 76% dos visitantes têm entre 18 e 34 anos. Os menores de idade representam 15%.

A relação entre artistas e fãs é valorizada e incentivada pelas empresas –o que pode ser prejudicial em certos momentos. Os sasaengs, por exemplo, são fãs extremos que perseguem seus ídolos e invadem sua privacidade –incluindo quartos de hotéis. Além da música, os grupos se dedicam às gravações de vlogs, gincanas e desafios, viagens ao exterior e muitas (muitas!) lives. Todo conteúdo produzido, seja ele gratuito ou pago, é espalhado nas redes sociais. Fãs se organizam com traduções, pastas compartilhadas, fanbases no Twitter e até eventos presenciais.

O apoio é visto nos shows, com os lightsticks (bastões luminosos), trazendo os fãs como parte da apresentação. Com designs únicos feitos para cada grupo, eles são sincronizados com a iluminação e mudam de cor ou intensidade conforme as músicas. Sim, a inspiração da pulseirinha do Coldplay nasceu daí. O lightstick também é utilizado como forma de protesto. Quando o público quer demonstrar sua insatisfação –seja com os empresários ou com o grupo–, eles são desligados.

O kpop mexe com a essência da música: os sentimentos. As letras retratam as expectativas da juventude, as pressões sociais, as questões de saúde mental, os relacionamentos amorosos e a amizade. A barreira do idioma se torna inexistente. É como se apenas o coreano –com alfabeto próprio, fonéticas longe do português e gramática complexa– pudesse traduzir de forma poética os sentimentos que o inglês, português ou espanhol jamais conseguiriam. “O incrível da música é a capacidade de transcender idioma e cultura. É uma ponte que une as pessoas”, afirma DPR IAN, cantor do coletivo artístico DREAM PERFECT REGIME, que fez um show lotado em São Paulo no ano passado. O mais rico do kpop é sua diversidade de grupos, artistas, gêneros musicais e possibilidades. Sua influência não apenas na indústria musical, mas na moda, na linguagem e na cultura global é inegável. Reconhecer o fenômeno é compreender o poder da música em transcender fronteiras e conectar pessoas ao redor do mundo –mesmo que o país esteja a 18 mil quilômetros do Brasil.

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