Como Chorão se tornou símbolo de rebeldia dos anos 2000 e ídolo do rock
Vocalista da banda Charlie Brown Jr. é considerado o último rockstar brasileiro
O rapper carioca Marcelo D2 estava descansando quando, no meio de uma madrugada, recebeu uma ligação de Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr. D2 era acostumado a essas incertas do amigo, mas aquele telefonema soou como um desabafo melancólico. “Ele me dizia que tinha sido duro com as pessoas, mas era o jeito dele de ser”, revela o líder do Planet Hemp. “Chorão havia se afastado de todos os amigos e nem sequer tinha chegado ao fundo do poço.”
O espiral de decadência do cantor de “Só os Loucos Sabem” se consumou no dia 6 de março de 2013, quando foi encontrado morto em seu apartamento, na região de Pinheiros, em São Paulo. O laudo médico apontou que ele havia sofrido uma overdose de cocaína. Tinha 42 anos. A tragédia de Alexandre Magno Abrão, seu verdadeiro nome, deixou uma lacuna no rock. O gênero perdia a principal representação do rebelde que, como poucos, encarnou a figura do malandro que sempre achava uma saída criativa para situações adversas. Por outro lado, a exemplo dos que vão embora antes da hora, a figura de Chorão foi ressignificada. O maluco irresponsável virou um sujeito que não teve medo de viver por suas próprias regras –ainda que isso tivesse lhe custado a carreira e a própria vida. Por mais que essa atitude esteja em desuso, Chorão ainda hoje é objeto de adoração de seus pares e de uma legião de fãs.
Goste ou não, Chorão foi o último grande ídolo do cenário pop/rock brasileiro. Ele se destacou pela qualidade de sua música e pela abrangência de seu trabalho. O vocalista do Charlie Brown Jr. era versado na escola do rock, do rap, do funk, do reggae e de tudo o que mais aparecesse à sua frente. Suas letras eram de fácil assimilação e faziam um uso criativo de metáforas. Como “Mas só de ouvir a sua voz eu já me sinto bem/Mas se é difícil pra você tudo bem/ Muita gente se diverte com o que tem…”, de “Só por uma Noite”. Ou “Eu descobri que é azul a cor da parede da casa de Deus/ E não há mais ninguém como você e eu…”, de “Lugar ao Sol”. É certo que não é nenhum verso digno de um Kendrick Lamar, mas fala direto com o público. É graças a esse tipo de comunicação, em falta no cenário atual, que o Charlie Brown Jr. vê seu séquito de fãs aumentar dia após dia. Eles são a banda de rock mais ouvida do país, com 11 faixas entre as mil mais tocadas por aqui. A caixa de CDs (sim, CDs!), composta pelos dez álbuns de estúdio do grupo santista, esgotou a primeira tiragem de mil cópias. “Foi um recorde do gênero, um número muito expressivo para os dias de hoje”, diz Rafael Félix, Head of E-Commerce da Universal Music.
Uma das principais qualidades da obra de Chorão é que, embora seja definida como rock, ela consegue atingir públicos das mais variadas idades e tendências. O funkeiro Gabb, de 14 anos, descobriu Charlie Brown Jr. por meio do pai. “Eu peguei muita referência do Chorão na hora de compor minhas letras”, diz o intérprete de “Bandido Não Dança” e “Nóis É os Cara”.
O cantor e compositor Tierry, autor de sucessos na voz de Ivete Sangalo e Marília Mendonça, também tem o roqueiro paulistano como referência. “Sou influenciado pela simplicidade das letras dele e pela forma direta como conta uma história”, declarou. Chorão é admirado também por seus contemporâneos, em especial os artistas da comunidade hip hop. O “Acústico MTV”, lançado em 2003, abriu espaço para bandas como RZO (de onde saiu a cantora e rapper Negra Li). Gustavo Black Alien, ex-Planet Hemp, era tão fã do cantor que dedicou a ele a canção “Skate no Pé”, um dos destaques do aclamado álbum “Babylon By Gus Volume 2”, de 2015. “Gravei no dia do aniversário do Chorão, dois anos depois da morte dele. Decidi fazer uma celebração”, conta o rapper. Em 2021, Sandy e o então marido, Lucas Lima, fizeram uma releitura de “Lugar ao Sol”, aquela da parede da casa de Deus, lançada num projeto especial.
O vocalista do Charlie Brown Jr. era talentoso e carismático. Mas também era uma figura contraditória. Chorão era capaz de puxar briga para o que considerava uma injustiça. Edu Falaschi, ex-vocalista do Angra, lembra de um imbróglio envolvendo Chorão e uma figura do terceiro escalão da MPB num hotel em Fortaleza. “O cara estava no lobby, gritando com o produtor porque não queria dar autógrafo para uma fã. Chorão deu uma dura no sujeito, dizendo que ele só era quem era por conta de pessoas como aquela menina. E o obrigou a dar o autógrafo!”, relembra. Por outro lado, há casos confirmados de que usou palavras e atitudes duras com admiradores de sua banda. De vez em quando, ameaçava jornalistas de morte por não concordar com a abordagem de matérias sobre ele ou sobre o grupo. Ele importunou a gravadora para gravar o “Acústico MTV” para depois abandonar a turnê promocional do projeto pela metade.
Sempre defendeu o conceito de irmandade dentro do Charlie Brown Jr., mas insultou publicamente seus companheiros. Um ano antes de morrer, esculachou o baixista Champignon, que havia saído em 2005 e retornado em 2011. “Você se fodeu e não aprendeu nada”, disparou durante uma apresentação. A polêmica fazia parte do jogo de cena do vocalista. “Ele gostava de causar”, entrega Marcelo D2. Aliás, essa cartilha do roqueiro rebelde, que não cabe mais nos dias de hoje, era incentivada pelo meio naquela época.
O Charlie Brown Jr. nasceu em Santos, litoral de São Paulo, no início dos anos 1990. A princípio, cantava em inglês e tinha como influência o hardcore californiano e o som furioso de bandas como Rage Against the Machine. Pouco tempo depois, abrandou sua sonoridade, e as letras passaram a ser vociferadas em português. “Fui contagiado pela inspiração farta deles e pela energia que colocavam nas músicas”, diz Tadeu Eliezer, o Patolla, produtor de “Transpiração Contínua Prolongada”, disco de estreia da banda, lançado em 1997. O Charlie Brown Jr. se beneficiou de um momento propício para o rock e para a indústria de discos, quando o Brasil chegou a figurar entre os cinco maiores faturamentos do universo musical. O grupo era também bom de rádio, num período em que esse veículo de comunicação ainda reinava de modo absoluto. “Chorão sabia a importância da rádio e dava uma atenção especial para os veículos desse segmento”, diz Alexandre Horovuski, ex-diretor da Joven Pan e da 89 FM.
A derrocada de Chorão coincide com um momento em que o rock assume um lado mais introspectivo, que não encontrou guarita junto a um consumidor que tinha como objetivo música para diversão, mas que também não se animou com o rock’n’roll colorido de bandas como Restart e Cine. Houve então uma cisão no público. Os admiradores da faceta mais festiva do gênero se bandearam para o sertanejo universitário, que trazia guitarras ruidosas e letras em celebração da balada. Por outro lado, quem era desejoso de um estilo mais furioso encontrou seu lugar ao sol no funk e no trap. Nenhum dos gêneros, contudo, foi pródigo em gerar um ídolo que se equiparasse a Chorão em visibilidade e importância. “De 2000 para cá, não encontrei ninguém que se conectasse com o público como ele se conectava”, diz Felipe Novaes, diretor de “Marginal Alado”, documentário sobre a trajetória do líder do Charlie Brown Jr. Em meio a novos gêneros e subgêneros, pouco ligados ao universo do rock, há quem espere um novo Chorão com a devoção de quem aguarda um novo Messias. Mas os tempos mudaram, e a cartilha de boas maneiras dos popstars atuais dificilmente está aberta a um novo rebelde do rock.
“Não há mais condições para que se crie um fenômeno tão popular quanto foi o Charlie Brown Jr. nem para que surja uma estrela do tamanho do Chorão”, resume Hovoruski.
Afinal, como o próprio vocalista professou em “Champagne e Água Benta”, ele era “não tão complicado demais, mas nem tão simples assim”.