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‘Talvez o mal seja eu’: FBC reflete sobre gaslighting, culpa e revolução no rap

‘Talvez o mal seja eu’: FBC reflete sobre gaslighting, culpa e revolução no rap

Rapper do Cabana, em BH, é dono de 'Assaltos e Batidas' —um dos grandes de 2025

Fabrício Soares, o FBC, fala sobre ser diretor criativo do estúdio em que atende, pelo telefone, a Billboard Brasil. O estúdio carrega o nome de uma das marcas que acreditaram no projeto de retomada que ele põe voz desde quando o rapper atravessava outras profissões. Foram 26 anos dividindo-se entre enxadadas de pedreiro, vassouradas como faxineiro, copeiro até iniciar-se no rap como MC, tornar-se um destaque vindo de Minas Gerais —caracterizado por uma inquietude que o fez chegar em resultados sempre louvados como antagonistas.

Foi assim com a estreia “S.C.A.” (2018) —e assim seguiria sendo em “PADRIM” (2019) e no EP “Outro Rolê” (2021). Nesse caminho, dois álbuns preenchem essa história: o pouco comentado “BEST DUO” (2020) e o hiper badalado “BAILE” (2021). Depois, ele ainda chegaria a um exímio show de banda com “O Amor, O Perdão e A Tecnologia” (2023) que culminou em um ao vivo (2024), cheio de house, groove e disco, gravado em Belém.

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O rapper FBC ao lado dos produtores Pepito e Coyote Beatz (Renan 1RG)

O prestígio, no entanto, não apaga algumas coisas.

Teve vezes que pensei em me matar. Pensar, sabe? Tipo: “Talvez se eu morresse fosse melhor”. Talvez eu fosse o problema, talvez o mal fosse eu. Pensava nisso várias vezes. Mas fui vivendo… E toda vez que alguém me elogia, ou algo bom acontece, eu lembro disso.

Agora, em 2025, ele lança “ASSALTOS E BATIDAS“, seu sexto disco, após debulhar Carlos Marighella —a partir do livro “Minimanual do Guerrilheiro Urbano“— com bases construídas despretensiosamente “à mão” com Coyote Beatz, mas que já miravam um resgate do rap pela batida. Ele mesmo fala:

“Em termos de discurso, tem muita gente tratando de assuntos importantes. Tem Don L, BaianaSystem, Ana Frango Elétrico, Liniker… Pessoas que escrevem bem, que tratam de temas atuais: guerra, gênero, racismo estrutural, o protagonismo das mulheres, tudo isso. Mas dentro do rap, especificamente, eu não via ninguém fazendo esse resgate”.

A ligação durou 40 minutos.

Entrevista —na íntegra— com FBC:

PARTE 1 – Recepção de “Assaltos e Batidas” e discografia comentada

Como tem sido esses dias pós-lançamento?

FBC: Eu me surpreendi. Eu sabia que a galera do rap ia gostar, mas não imaginava que a galera nova fosse se sentir assim, sabe? Se sentir pertencente a um movimento. Um sentimento de retomada da coisa do rap, do rap raiz. As pessoas falando “rap raiz”, “real hip-hop”, essas coisas.

Eu lendo as coisas que a galera mais nova estava postando, isso me surpreendeu. A galera do rap, da minha idade pra cima, eu já sabia que ia curtir, ia sacar, ia falar: “Mano, isso é isso, isso é aquilo”. Mas a galera nova… senti que eles não conseguem explicar o que é, mas sentem algo. Tipo: “Pô, eu não vivi isso, mas queria ter vivido”. Famosa saudade do que não viveu, né?

Vamos falar sério aqui. Já falei com você algumas vezes e é sempre muito bom. Eu sou muito fã. Quando vi esse disco, pensei: caralho, acertou mais uma vez. É impressionante a sua discografia. Vi que você fez um ranking dos seus discos no Twitter, a galera discutindo. Por que “O Outro Rolê” é tão apagado na sua lista? Nem entrou no ranking. Sacanagem.

FBC: (Risos) Isso tem a ver com a forma como eu lanço as coisas. “O Outro Rolê” eu não considero um álbum, considero um EP. Mas o Spotify sempre classifica como álbum por causa da minutagem. Até então, eu colocava os beats juntos com o EP. Só não fiz isso no “S.C.A.” de 2018 e no “Baile”, porque nesses dois eu lancei um álbum instrumental separado.

Nos outros, tipo “Padrim”, “Best Duo”, “O Amor, o Perdão e a Tecnologia”… e até os EPs, eu lançava com os beats incluídos. E aí eles acabam entrando na categoria álbum, mas naturalmente são EPs. Sempre que lanço um álbum, lanço também um EP, sabe? Agora foi assim também: lancei “Assalto e Batidas” e antes tinha lançado “Feito à Mão”.

Por causa da minutagem dos beats, o Spotify acaba colocando como álbum. Mas agora acho que vou parar de lançar os beats juntos e lançar separado mesmo. Cresceu muito meu público de música instrumental. Depois que comecei a trabalhar mais os beats no jazz, com mais gente tocando — tipo Jackson Ganga, Nathan Morais, Matheuzinho (baterista), Dandam —, a galera que curte instrumental começou a colar mais.

Esse público geralmente é estudante, gente que trabalha na internet, que ouve som para espairecer. E eles não curtem quando a música com voz tá junto do instrumental. É outra vibe.

PARTE 2 – Capitalismo, Love Songs, controle social, cultural e econômico

Ouvindo seu álbum, me conectei com um assunto que tem sido recorrente recentemente — principalmente por causa da PL Anti-Oruam, a prisão e soltura do Poze, no Rio e, novamente, com o Oruam se destacando em protestos, mensagem da Erika Hilton. Isso tudo se conectou na minha cabeça com “Assaltos e Batidas”. É um álbum que discute o Brasil —e discute por meio da música, do baile.

E essa é uma crítica recorrente à esquerda no Brasil: uma esquerda muito idealista, que se afasta da diversão, não compreende o cotidiano de forma mais solta, mais musical. Você, com esse álbum, talvez consiga fazer esse elo entre esses dois polos. O que você pensa sobre isso?

FBC: O que eu penso sobre o momento em que o álbum foi lançado é o seguinte: a gente tá colhendo políticas — de esquerda, de direita, tanto faz — em vários âmbitos: municipal, estadual, federal. A minha adolescência e pós-adolescência foram marcadas por um período em que o pobre teve poder de compra, crédito. Você podia comprar uma geladeira, um carro.

O que eu quis passar no álbum é que, hoje, o bem-estar parece estar completamente atrelado ao consumo. Ser feliz é consumir. O sistema te diz isso o tempo todo. E dentro do capitalismo, a desigualdade gerada por esse modelo cria distúrbios urbanos, sociais. A arte se perde do que é realmente belo e necessário para o ser humano. A gente esquece do que realmente importa.

As lutas, as pautas, os ideais foram trocados por metas de consumo. E aí entra essa ideia de que “dar certo na vida” é ter um emprego que te permite viajar uma vez por ano, comprar tênis caro, um carro do ano… E quem não consegue isso entra na loucura que eu falo no álbum: “Eu vou conseguir de qualquer forma”. Porque o que importa é o resultado, não o caminho. O sistema não se importa com o meio, só com a aparência.

Então, esses MCs que falam da “vitória” pelo carro do ano, pelo poder de compra — esse discurso não aprofunda nada. É raso. E quanto mais dinheiro entra, mais o discurso esvazia. A luta coletiva vira performance. A gente perde o senso de classe, de comunidade. E aí eu pensei: “Cara, não vou fazer uma love song. Eu vou criticar isso. Essa loucura.”

E essa crítica faz a gente parecer maluco, sabe? Quando você questiona, vira “o diferente”, o “desajustado”. Mas a essência humana não é ser egoísta e avarento. O álbum foi muito estudado, cada palavra. Conversei com Leo Péricles [Presidente do partido da Unidade Popular], Ian Neves [Historiador marxista-leninista], mulheres do Norte, indígenas, pessoas que têm uma visão de mundo que me interessa.

E fico feliz porque o público que eu queria atingir — o que tava procurando algo mais profundo — se conectou com o disco.

Mas eu não estou dizendo que o álbum revoluciona nada. A ideia de revolução e a de manter as coisas como estão são duas faces da mesma moeda. No fim, a máquina sempre gira igual. Confusão é controle. E o controle é social, cultural, econômico.

O rapper distribuindo chinelos da Kenner —marca inicialmente homenageada de forma orgânica no hit “De Kenner”, de 2021 (Reprodução)

Você tem encontrado pares musicais que te trazem o mesmo prazer em ouvir que você teve em produzir esse disco? Vi você falando para a Rolling Stone que fez o álbum para ouvir algo que ninguém mais estava fazendo. Quem você tem escutado que te dá essa sensação?

FBC: Quando eu falei isso na Rolling Stone, era mais sobre o lado do beat, da estética do som, da textura. Porque, em termos de discurso, tem muita gente tratando de assuntos importantes. Tem Don L, BaianaSystem, Ana Frango Elétrico, Liniker… Pessoas que escrevem bem, que tratam de temas atuais: guerra, gênero, racismo estrutural, o protagonismo das mulheres, tudo isso.

Mas dentro do rap, especificamente, eu não via ninguém fazendo esse resgate. Esse movimento de pegar o momento do rap e reafirmar coletivamente o que a gente é. Porque não existe rap de extrema-direita. Não existe rap que não seja político. O ato de fazer rap já é um ato político, de resistência — cultural, social, econômica, territorial. Ele diz muito sobre o lugar onde ele é feito.

O funk também é assim. O que acontece com o Oruam, com o Poze… é disso que estamos falando. O rap, o funk, essas músicas de periferia, elas vêm desses territórios e não podem perder esse vínculo. Hoje tem grupo, tem selo, tem artista milionário fazendo rap, e eu acho que revisitar o passado — revolucionar o passado — é uma forma de não só homenagear, mas também reafirmar nossa essência.

A gente tem que lembrar que somos multiplicadores de um discurso libertário. Isso nasceu das lutas sociais. De movimentos organizados por pessoas negras, pobres, latinas, trans, marginalizadas, que queriam mudar a realidade ao redor. Isso não pode se perder.

O rap tem um papel social, cultural e até econômico: gera emprego, movimenta a indústria. Mas mesmo contribuindo com a economia, com a cidade, com a cultura, ele não pode esquecer sua origem. E eu acho que vindo de mim — que já tenho certo reconhecimento, que já me posicionei com outros discos — esse álbum também funciona como um incentivo para que outras pessoas busquem esse resgate, esse pensamento coletivo.

 

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PARTE 3 – Pepito, Coyote Beatz, Break, Marighella


Musicalmente falando, como foi o trabalho com o Pepito e o Coyote? Eu sei que o EP Feito à Mão foi uma espécie de experimento que levou ao Assalto e Batidas. Como surgiu essa conversa entre vocês?

FBC: Hoje eu atuo como diretor criativo e também como diretor musical em alguns trabalhos aqui nos estúdios Xeque Mate [“Assalto e Batidas” é o primeiro álbum e curta-metragem construído a partir da parceria com a marca de bebidas].

Essa construção com o Pepito começou assim: ele mora perto, no bairro do Prado, em BH, e começou a colar mais com a gente. Ele vinha trocar ideia, mostrava uns beats… Eu já estava muito na pilha da ideia de ter uma seleção brasileira de breaking indo para as Olimpíadas. Pensei: “Cara, isso é foda”. A galera gosta de dançar Miami, de dançar baile. Falei: “A gente tem que fazer uma música para B-boy, um break beat mesmo”.

E quando tô no entre álbuns, costumo ler e estudar muito. Nisso, esbarrei no Minimanual do Guerrilheiro Urbano, do Marighella. Comecei a mergulhar. Tava lendo a biografia dele, aquela da capa laranja, que muita gente já leu. Aí comecei a entender mais sobre o Partidão, o contexto da revolução bolchevique, as guerras, o Brasil… Fiquei nessa pira. Ouvindo muito Xadrez Verbal, o podcast. Falei: “Tô me radicalizando devagar”. (risos)

Mostrei um beat pro Coyote e falei: “É isso que eu quero fazer. Uma parada break beat, BPM rápido, com aquele som tipo Onyx, Naughty by Nature, com caixas estridentes”. E do Minimanual tirei dois tópicos que me chamaram a atenção: “Assaltos” e “Batidas”. Estavam perto um do outro. Aí pensei: “Cara, isso aqui tem nome de disco”.

O nome surgiu antes mesmo de eu saber exatamente o que queria falar. A ideia veio depois, quando assisti de novo 12 Macacos e Rede de Intrigas. Foi aí que entendi: “Quero falar sobre dinheiro, mas não só sobre isso”. Quero falar da loucura que é se sentir parte de algo só por consumir. Essa ideia de que ser feliz é ter — não ser. E que tudo o que temos não custa dinheiro, custa vida. Tempo de vida.

A galera quer conquistar isso tudo, mas não quer perder a vida atrás de um balcão. Então vai atrás “do jeito que der”. Esse imediatismo é violento. Até hoje não consegui escrever um texto decente para minha agência montar o press kit do show. O álbum é muito denso.

Quando o Coyote chegou com os equipamentos certos, era o que faltava. Ele já tinha reconhecimento por tocar com o Djonga desde 2016. Já tinha acesso a recursos, equipamentos analógicos — MPCs de época, teclados vintage. Isso foi essencial para o resultado final.

Foi bonito o processo. A gente fazia os beats e passava tudo na MPC, às vezes trocava de máquina, tudo trabalho de formiguinha. Por isso o nome Feito à Mão. As batidas foram todas tocadas na MPC. Acontecia aos poucos, durante dois anos. Um dia ele colava, outro não, às vezes passava uma semana… E quando colava, a gente fazia. Foi orgânico. Quando vimos, tava pronto. Aí mandei para mix e master.

 

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PARTE 5 – 36 anos e o pão que o diabo amassou

Você tem 36 anos, né? Quando é seu aniversário?

FBC: Fiz 36 no dia 6 de junho, no dia do lançamento do álbum.

Parabéns, meu amigo! Você é muito novo. Apesar de muita gente com 19 já te chamar de velho (risos), você é muito novo. Como tem sido sua visão sobre envelhecer, amadurecer, considerando tudo que aconteceu num período tão curto da sua vida? Porque do Baile pra cá, você mesmo disse que houve um amadurecimento, inclusive financeiro. Muita coisa mudou num intervalo de menos de 10 anos. Como você tem se entendido nesse novo lugar?

FBC: Aí eu preciso ir pra um lado mais pessoal da minha vida. Cara, na década de 2010, eu morei em ocupação. Foi barra pesada. Tentativas de assassinato, fome, enchente levando tudo… chovia, perdia telhado, perdia tudo. Já fui preso, já apanhei. Comi o pão que o diabo amassou, de verdade.

Teve vezes que pensei em me matar. Pensar, sabe? Tipo: “Talvez se eu morresse fosse melhor”.

Talvez eu fosse o problema, talvez o mal fosse eu. Pensava nisso várias vezes.

Mas fui vivendo… E toda vez que alguém me elogia, ou algo bom acontece, eu lembro disso. E isso me mantém no chão. Eu não me envaideço. Não acho que sou muita coisa. Porque essa vida é vaidade, e a gente não leva nada.

O que me deixa feliz é poder fazer. Agradeço muito a Deus, à Checkmate, aos meus amigos. Poder fazer, estar vivo. O que eu sinto é gratidão e trabalho. Quanto mais as coisas boas acontecem, mais eu sinto que tenho um dever. De continuar, de trabalhar mais. De ser um exemplo. Para mim também.

Eu já sei quem eu sou. Mas se eu puder deixar uma marca no mundo, que seja essa: ser um bom exemplo. Alguém que buscou fazer o certo, que valorizou as coisas boas que temos — nossa origem, nossa ancestralidade, nossa rua, nosso povo, nosso território.

Assista o curta de “Assaltos e Batidas”:

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