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‘Proibidões’ do Carnaval: debate sobre canções que ofendem invade a folia

‘Proibidões’ do Carnaval: debate sobre canções que ofendem invade a folia

Sambas carnavalescos que abusavam de preconceitos hoje geram desconforto

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Bola Preta 2020 Cred. Rafael Santos 65 1

“Nega do cabelo duro/ Que não gosta de pentear.” No Carnaval de 1985, não havia um brasileiro que não conhecesse os versos de “Fricote”, de Luiz Caldas e Paulinho Camafeu. A música inaugurou uma nova forma de fazer pop, batizada anos depois como axé music.

E quem nunca pulou ao som de “Cabeleira do Zezé”, de João Roberto Kelly, cujas trovas traziam o seguinte questionamento: “Será que ele é bossa nova?/ Será que ele é Maomé?/ Parece que é transviado/ Mas isso eu não sei se ele é…”?.

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Composta em 1963, ela tocou nos bailes por no mínimo quatro décadas. Hoje, a audição dessas canções gera mais desconforto do que diversão. Com a –justíssima– discussão de pautas progressistas e identitárias, o que era considerado apropriado para tocar na rádio, nas ruas e nos bailes, demanda uma segunda opinião. Mas até que ponto uma letra que trazia o recorte de um período da história pode ou não ser tachada como ofensiva?

Os “proibidões” do Carnaval entraram na pauta de compositores e intérpretes. Questionado pela Billboard Brasil, Luiz Caldas declinou de dar qualquer declaração. Carlinhos Brown, que integrava a banda do cantor e guitarrista nos anos 1980, faz uso de uma tese fantasiosa –e um tanto estapafúrdia– para defender a letra de “Fricote”. “É uma ideia de que precisamos cuidar mais das mulheres, darmos a elas perfumes e roupas. Se hoje está difícil para elas, imagina 50 anos atrás?”.

Wilson Batista e Haroldo Lobo escreveram, em 1941, “Emília”, que tem os versos: “Eu quero uma mulher / Que saiba lavar e cozinhar / Que de manhã cedo / Me acorde na hora de trabalhar”. Naquela época, as mulheres eram os principais alvos das canções politicamente incorretas dos sambistas. E o que dizer de “Dinheiro Não Há”, samba que a Portela entoou na primeira vez que desfilou na Praça 11, em 1932: “Lá vem ela, chorando / O que ela quer? / Pancada não é, já dei / Mulher da orgia quando começa a chorar / Quer dinheiro, dinheiro não há”. Não por acaso, 1932 também marcou uma grande vitória feminina na sociedade. No governo de Getúlio Vargas, foi instituída a lei que deu às mulheres o direito ao voto.

Elas, contudo, continuaram a sofrer pelas canetadas dos compositores do gênero, muitos deles aclamados. Como no caso de “Nega Velha”, de Padeirinho, que diz: “Eu só espero / Que você não perca a linha / Não vai descuidar da cozinha /Não deixe a panela queimar /Porque a outra /Queimou a panela / E eu mandei logo andar”.

Embora moralmente discutível, “Dinheiro Não Há” ganhou uma releitura de Beth Carvalho. Ela registrou a canção no disco “Nos Botequins da Vida”, de 1980 (época em que o feminismo não era discutido como hoje). Isso leva a outra discussão: até que ponto a mensagem de uma canção pode ser ignorada em favorecimento à sua importância histórica?

Em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, em 2021, Teresa Cristina falou sobre o já citado samba da Portela e como é, para uma cantora, interpretar essas músicas no contexto atual. “Eu não sou obrigada a cantar [músicas machistas], já cantei como papagaio, mas quando minha ficha caiu e comecei a entender o que estava cantando, o que faço é evitá-las. Quando essas pessoas fizeram essas letras, era aceito. Não defendo essas canções, mas, antes, esses versos não chocavam”.

“Na subida do morro me contaram / Que você bateu na minha nêga / Isso não é direito / Bater numa mulher que não é sua”, dizia a letra de “Na Subida do Morro”, de Geraldo Pereira, Moreira da Silva e Ribeiro Cunha, gravada em 1952. Ou seja, 20 anos depois de conquistarem o direito ao voto, as mulheres seguiam sendo alvo de violência dentro e fora da música. Além disso, demorou mais de três décadas para que tivessem direito a ser votadas no samba. Dona Ivone Lara (1921-2018) compôs diversos sambas-enredo para o Império Serrano. Porém, por conta de uma proibição às mulheres, as composições eram assinadas por seu primo, Fuleiro. Seu primeiro samba “oficial” veio em 1965, com “Os Cinco Bailes da História do Rio”, que a tornou a primeira mulher a integrar a ala de compositores de uma escola do Rio de Janeiro. No mesmo ano, as mulheres tiveram a imposição do voto obrigatório, equiparado ao direito de voto masculino.

“O teu cabelo não nega, mulata/ Porque és mulata na cor/ Mas como a cor não pega, mulata/ Mulata eu quero o teu amor”, de Lamartine Babo e Irmãos Valença, ou “Se veste de baiana / Pra fingir que é mulher /Vai ver que é, Vai ver que é”, de Carvalhinho e Paulo Gracindo, são exemplos de marchinhas que há anos são alvo de debate por questões de raça e de orientação sexual.

Mas sejam grandes clássicos do samba e marchinhas de Carnaval, esses registros se dão como uma documentação oral de uma época. O pesquisador e músico Rodrigo Faour acrescenta como grandes intérpretes e compositores podem ter no seu acervo canções que não condizem com os tempos atuais, mas têm uma grande importância histórica.

“A canção não é um estandarte, é uma crônica de costumes. Às vezes, fala-se num personagem, mas não significa que o que aquele personagem diz ou vive seja apologia a um comportamento a ser seguido. A música popular, para sobreviver, é um milagre. Ela é feita para o momento –algumas palavras são até esquecidas. O “preto”, no passado, dependendo de como fosse usado, poderia soar preconceituoso. Na época, se usava mulato[a], até mesmo porque era fácil de rimar. Claro que cada um sabe de sua sensibilidade, mas as pessoas não podem esquecer o contexto histórico.”

No entanto, os artistas incumbidos de fazer o povo feliz por meio da música também se veem numa situação delicada, pois, com o aumento da vigilância inerente aos nossos tempos, aumentam as críticas. “Vivemos numa época onde o revisionismo histórico está em alta. Isso não quer dizer que não se deva ter uma reflexão importante sobre racismo ou misoginia na música. Essas questões devem ser debatidas. Mas, muitas vezes, não há discussão. A censura interdita o debate”, diz o jornalista e pesquisador Julio Cesar de Barros.

A própria “Cabeleira do Zezé” é uma crônica precisa que remonta aos anos 1960. Com o debate atual tendo avançado sobre questões de gênero e orientação sexual, intérpretes escolheram, de forma deliberada, não cantar mais a célebre marchinha. “Soa ofensivo eu cantar ‘Cabeleira do Zezé’. Mas sou contra interditar discussões”, diz a sambista Fabiana Cozza. O próprio autor da marchinha explicou à Billboard Brasil como surgiu a ideia. “Eu trabalhava na TV Excelsior [extinta em 1970] e depois ia para o bar São Jorge, em Copacabana. Um dia, apareceu um garçom muito engraçado, parecia dos Beatles. No terceiro ou quarto chope, eu disse: ‘Se eu fosse desenhista, faria uma caricatura. Mas vou te fazer uma música’. Foi assim que nasceu ‘Cabeleira do Zezé’”, diz João Roberto.

Porém, com o passar dos anos, o refrão da canção com os versos “será que ele é”, ganhou uma palavra ofensiva adicional, idealizada pelos frequentadores de bailes, ficando: “Será que ele é… Bicha!”, escancarando de vez o que antes se escondia atrás da barreira do duplo sentido. O autor não só rejeita tal adereço, como faz questão de marcar posição no debate proibicionista.

“Eu não gosto do xingamento, não tem nada a ver. A característica da música de Carnaval é ser irônica. Nunca tive intenção de ser preconceituoso ou pornográfico. A maldade está na cabeça dos outros. Chacrinha gravou ‘Maria Sapatão’, também da minha autoria. A gente fala que de dia é Maria, de noite é João. Mas no segundo verso diz que ‘o mundo aplaudiu… É um barato, é um sucesso, dentro e fora do Brasil”, defende.

É inegável que discussões acaloradas como essa, que tratam de temas em ebulição, causem certo desconforto em todos os envolvidos. Mas é também por meio desse debate que os resultados práticos são vistos. João Roberto Kelly é um exemplo. Neste ano de 2024, ele compôs “Romeu ou Julieta”, marchinha interpretada por Maria Alcina com os seguintes versos: “Adivinha quem quiser/ Se sou homem ou mulher/ Eu sou mistura de Romeu com Julieta/ Eu sou a cara do futuro do Planeta”.

O próprio autor de “Cabeleira do Zezé” é um personagem importante na construção do imaginário empoderado da comunidade LGBTQIA+. Foi Kelly quem criou canções para o primeiro musical de travestis no Brasil, “Les Girls”, em 1964. A criação se deu após pedido da saudosa Rogéria (1943-2017). Um grande exemplo de que o Carnaval não é preto ou branco. Ele é colorido e feito para confundir, não para explicar.

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