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Carlinhos Brown: ‘Discursos contemporâneos combinam rancor com ativismo’

Carlinhos Brown: ‘Discursos contemporâneos combinam rancor com ativismo’

À Billboard Brasil, Brown fala das influências africanas, trabalho social e mais

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Antônio Carlos Santos de Freitas é fruto do Candeal, bairro de Salvador com forte influência africana, que nasceu pelas mãos de dona Josefa de Santana. Ela foi uma negra liberta da Costa do Marfim, que, no século 18, criou a comunidade Roça Candeal Pequeno, onde comprava e acolhia escravos ou dava abrigo a fugitivos.

O nome artístico de Freitas Carlinhos Brown– faz referência também a figuras históricas da negritude: o cantor James Brown, pai do funk, e o ativista dos direitos civis H. Rap Brown, ambos dos EUA. Carlinhos Brown é um dos principais nomes da música brasileira da segunda metade do século 20.

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Foi um dos articuladores da axé music, no início dos anos 1980, tocou ao lado de Caetano Veloso e, na década seguinte, criou a Timbalada, que unia música a ações de cunho social.

No círculo da MPB, tem parceiros importantes como Nando Reis, Arnaldo Antunes e Marisa Monte –com os dois últimos, aliás, criou o grupo Os Tribalistas. Ele também se arriscou pelo terreno do rock pesado. Em 2022, lançou o disco da banda Mar Revolto, que faz o chamado “som pauleira” da Bahia, com participação da cantora de metal melódico Tarja Turunen e de integrantes do grupo brasileiro de heavy metal Angra. Mais recentemente, participou do tributo à bossa nova, realizado no Carnegie Hall, em Nova York, nos EUA.

Em entrevista para a Billboard Brasil, Brown fala das influências africanas em sua vida, do seu trabalho social realizado ao lado da Timbalada e da escalada de intolerância e violência policial que toma as ruas de Salvador.

Novembro é o mês da Consciência Negra. Como essa africanidade se manifesta em você?
Na atitude de aparecer o menos possível. É o mês em que estou mais sossegado, porque o que aparece de líder de cultura negra… Pessoalmente, acho que os discursos contemporâneos se baseiam na combinação de rancor com ativismo. E uma das coisas mais importantes no movimento de reafricanização baiano foi justamente vencer o rancor, além do racismo e do preconceito. Nunca se pensou numa separação, porque o legado de miscigenação também é africano. Mas a gente precisa se encontrar em algum lugar. Até porque senão vai ser o cachorro mordendo o rabo ali o tempo inteiro, né? Além disso, todo mundo tem o direito de pensar e liderar. Penso que o ativismo com o candomblé, com a umbanda, termina embasando esse caminho, sabe?

Por quê?
Porque é onde está todo o manancial da estrutura do pensamento e da liderança negra. Como falar de ancestralidade e meio ambiente sem saber o que Ossain está dizendo? O candomblé não é uma religião. É uma organização social com espiritualidade. Às vezes, a pessoa entra numa casa e vê um assentamento de Xangô, de Ogum… A única diferença é que na África isso funcionava de modo territorial. Traduzindo para o Brasil, seria mais ou menos assim: São Paulo é de Xangô; Rio de Janeiro, de Iemanjá, por causa das águas; Bahia, de Oxalá ou Ogum; Aracaju, de Ossain, e assim por diante. As etnias e os orixás vieram para o Brasil formatar o novo Olimpo. E olha que nós somos rechaçados em vários quesitos.

Por falar em ser rechaçado, nos últimos tempos houve um aumento da violência em relação a figuras importantes dos cultos afro-brasileiros. Como você analisa este momento?
A violência não tem espaço na nossa convivência. Mas ela tem sido exercida e até chancelada por esse desejo de dominação religiosa. O candomblé não é religião, ele não concorre com ninguém. Já a umbanda é religião e termina sendo mais perigosa. Porque ela juntou tudo, porque ela fez o ecumenismo. E o ecumênico é perigoso, porque ele não prega separação. Ali, todo mundo pode vir: o padre, o pastor, os babalorixás, os pretos velhos…Todos se encontram na umbanda. E hoje ela está até na música.

Como ela se manifesta na música?
Quando a gente ouve o funk, está ouvindo umbanda. Aquela batida é o terreiro eletrônico se manifestando. Quando você ouve Timbalada, ouve umbanda. A rítmica é tão poderosa que chega a cegar qualquer líder espiritual. Por exemplo, as igrejas estão cheias de timbau [o instrumento de percussão de onde a Timbalada tirou seu nome]. Quer dizer que a igreja timbalou? Timbalou, sim! E até ela timbalou, ela precisa respeitar um pouco a nossa postura. Que é uma postura libertadora, uma postura de Deus. Ou seja, faça o seu e deixe eu fazer o meu, né? Quando eles deixam, surge uma figura como padre Marcelo Rossi, que é o primeiro axé music da espiritualidade. Ele canta, manda colocar a mão para cima, ele é um símbolo de animação. Pena que hoje essa postura de tirar a animação se confunde com a ideia de exorcizar.

Você vem de uma comunidade, que é o Candeal, e hoje existe um aumento da violência policial nas regiões menos assistidas de Salvador. Como tem encarado essa situação?
Quem é o policial? Ele é Ogum fardado. Certa vez, ao me deparar com uma manifestação, eu tive a inspiração para criar os seguintes versos: “Foi-se o machado/ Na gama de um fogo/ De um pneu queimado/ Seu pai soldado/ No fundo, no fundo/ Um Ogum fardado…” Foi uma das primeiras manifestações na Bahia sobre algo que, infelizmente, se normalizou –balas perdidas, confusões. Hoje estamos vivenciando um momento daltônico e perigoso do mocinho contra o bandido. E quer saber? Hoje eu não culpo nem o mocinho nem o bandido. Eu culpo o Estado, a autoridade. Porque o sujeito chamado de bandido sonhou ter bens que não teve, sonhou ir para a escola que não foi. O crime é a única saída para o rancor social pelo qual ele passa. E o que é o policial? É o pai que não quis aquilo para o filho. E que, de certo modo, encontra no estado social uma forma de defender a honra familiar, a honra da paternidade, daquele jeito. Mas é dor para ambos os lados.

A educação seria uma forma de salvação?
Eu diria melhor: precisamos de uma reeducação universal. Não importa se você é advogado letrado ou o fera total das mídias sociais, o mundo está precisando se reeducar. A primeira matéria curricular seria convivência, porque as crianças estão voltando de casa com as mesmas queixas que nós tínhamos 20, 30 anos atrás. E mais: levando ódio e preconceito. A gente tem de trabalhar uma matéria chamada urgentileza, para que as convivências sejam o primeiro ato da educação. E aí, sim, a gente vai compreender a miscigenação como uma situação brasileira, porque a aula está antiga. Essa ideia de separar “Você é preto, você é branco, você não sei mais o quê”… A gente não chega à postura real do Brasil da convivência, que é uma postura de miscigenação. Não tem volta. Nós somos escolhidos para isso. Somos um país novo, de 500 anos. Os brasileiros precisam olhar para si como o cara do controle de passaporte. Porque a gente parece o mundo inteiro.

Como foi receber o time do Manchester City, campeão da Europa, com um trio elétrico?
Rapazzzzz! Foi um grande acontecimento. Ferran Soriano, CEO do Manchester City, me conhecia desde os tempos em que trabalhava com o Barcelona. Ele se casou com uma brasileira e ama bossa nova. Tempos atrás, foi me visitar
no Candeal, e falei que eu iria animar um Carnaval na Inglaterra. O Ferran disse, então, que queria que as pessoas conhecessem a cultura baiana. Primeiro, pensei em entrar com um trio elétrico no estádio. Mas acabei colocando parado, na frente do estádio, para receber os torcedores, os jogadores e, depois, cantar duas músicas no intervalo. E aí ele pediu para que eu dublasse “Blue Moon”, uma canção gravada por Sarah Vaughan e Elvis Presley. Fui receber os jogadores com pétalas de flores e pipoca. Porque queriam que fosse uma coisa que lembrasse a Bahia. Mas sabe o que foi mais bonito? Foi cantar aquele “Blue Moon” para 54 mil pessoas. Teve gente até que chorou. E quando eu saí do estádio, me reconheciam na rua… Fiquei famoso em Manchester! E sabe que coincidência? As cores da Bahia são as mesmas da bandeira da Inglaterra, estava em casa. Teremos outro momento desse em 2024.

Published by Mynd8 under license from Billboard Media, LLC, a subsidiary of Penske Media Corporation.
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