O raio Ivete Sangalo: como a cantora superou barreiras e se tornou rainha do Brasil
Empresário relembra momentos marcantes do início da carreira de Ivete Sangalo
Jonga Cunha, ex-sócio da Banda Eva, se lembra de quando conheceu a cantora e de como a viu superar os preconceitos do mercado para se tornar referência do pop. Leia o depoimento exclusivo à Billboard Brasil.
“Um ditado popular bastante conhecido professa que um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. Porém, em mais de quatro décadas de carreira musical, me sinto confortável em afirmar que fui atingido tantas vezes que corri o risco de ficar radioativo. Numa dessas ocasiões, me deparei com um jovem fenômeno da natureza: U uma cantora talentosíssima chamada Ivete Maria Dias de Sangalo.
O ano era 1992. Eu tinha voltado de férias no Caribe, contratei o Asa de Águia para o meu bloco, o Eva, onde exercia a função de diretor artístico. O grupo liderado pelo cantor e guitarrista Durval Lelys era um sucesso e levaria essa alegria incomum para o trio elétrico do Eva pelos próximos três anos.
Ah, sim, eu também era integrante de uma banda, chamada Companhia Clic, na qual atuava como percussionista. A primeira vocalista era uma certa Daniela Mercury, que saiu para a carreira solo e posteriormente foi substituída pela cantora Carla Virgínia –que tempos depois assumiria a banda Cheiro de Amor com o nome de Carla Visi. Raios! Raios múltiplos!
Quando finalmente retornei a Salvador, fui logo saudado por uma ligação de Helinho, um velho amigo da faculdade de direito, parceiro de rodas de capoeira e de muitos bailes. ‘João, preciso de um favor teu’, disse ele, todo esbaforido. ‘O prefeito do município de Morro do Chapéu, que é meu amigo, contratou uma cantora daí de Salvador para se apresentar numa micareta. O problema é que a verba da prefeitura acabou e não temos dinheiro para bancar o transporte da banda para cá’, lamentou. Como a tal menina iria se apresentar no mesmo dia que a Companhia Clic, Helinho pediu para que a gente desse uma carona para eles.
Antes que eu continue essa narrativa, é preciso dar um contexto histórico do mercado musical baiano. O cenário daquele período era único e especial. Basicamente, a cidade fervia. Um dos motivos desse momento espetacular era o aumento da produção local.
E por que isso acontecia? Porque, no início dos anos 1980, um cara chamado Wesley Rangel (1950-2016) construiu e inaugurou o WR, primeiro estúdio de gravação profissional do Nordeste. Com isso, os cantores, as bandas e os blocos afro da Bahia não precisavam entrar na fila dos estúdios do Rio e de São Paulo –que parecia infindável– para gravar seus discos. E tome Luiz Caldas, Chiclete com Banana, Banda Mel, Olodum, Ara Ketu, Asa de Águia… Todos beneficiados pela visão de Rangel.
Da sala de três andares da rua Manoel Barreto, no bairro da Graça, as músicas saíam direto para as mãos dos programadores das rádios FM. O soteropolitano consumia a música do seu lugar, que falava do seu dia a dia e era tocada nos bailes que ele frequentava. A tal música “prapular” brasileira, como definiu bem Moraes Moreira. O aumento da produção local fez
com que o consumo disparasse: no relatório mensal das rádios, as primeiras 20 posições eram ocupadas por artistas baianos.
De volta ao pedido especial do meu amigo. O pessoal da Companhia Clic não curtiu muito a ideia de transportar uma banda desconhecida, ainda mais com uma cantora iniciante. Mas eu jamais diria não para Helinho. No início de uma sexta-feira do mês de abril de 1992, paramos o ônibus na esquina da rua Manoel Dias da Silva, no bairro da Pituba. A cantora, uma tal de Ivete, subiu no corredor com mais cinco músicos. Ela vestia um short jeans curto, uma camiseta Hering branca e calçava sandálias Havaianas. O cabelo estava amarrado num rabo de cavalo.
E chegou a hora da apresentação. O trio elétrico da Companhia Clic deu duas voltas no circuito do Morro do Chapéu, localizado na principal praça da cidade. A gente estava recolhendo a nossa aparelhagem quando vi, de cima do outro trio elétrico alugado pela prefeitura, a tal cantora que Helinho tanto me pediu para dar carona. Eu mandei uma saudação para ela, que por sua vez retribuiu com um simpático aceno.
Músico é bicho curioso… Gosta de ver se o cantor é de verdade ou não. No meu caso –e admito que era preconceito–, sempre tive um pé atrás com mulheres bonitas que se transformavam em cantoras. A duração de uma volta naquele circuito era de mais ou menos uma hora. Foi o tempo que eu, o guitarrista Rudnei Monteiro (que tocou com o violonista espanhol Paco de Lucia), o tecladista Sérgio Henriques (ex-integrante das bandas de Elis Regina e Jorge Ben Jor) gastamos na performance da Companhia Clic. Depois, fomos tomar umas cervejas numa barraca na praça da cidade. Aí, rapaz, o trio dela chegou…
O som estava abaixo do razoável, a banda abaixo do som, mas ela cantando… E cantando… E cantando… Nós paramos de falar e de beber quase que instantaneamente. Saímos para conferir a menina. Ao voltar para a mesa, eu disse: “Quando ela acabar a segunda volta e for recolher, eu vou atrás!”.
Eu fui… No mesmo ano, produzi e toquei num show no qual ela cantava clássicos da música preta brasileira. O espetáculo ganhou o Caymmi, uma das principais premiações do cenário das artes da Bahia. Em 1993, convenci meus sócios do Eva a retomar a banda com ela à frente. Ivete Sangalo é um fenômeno metereológico. Quebrou uma série de ideias e preconceitos que grassavam no cenário pop baiano daquele período. Para começar, foi de encontro à ideia de que intérprete de axé tinha de ter voz aguda, a exemplo de Daniela Mercury. Ivete é uma contralto, dona de uma voz grave e mais empostada.
A ascensão dela foi um choque de realidade nas gravadoras, que por anos viraram a cara para a cultura baiana. O primeiro disco da Eva foi lançado pela Sony Music e só saiu por insistência de Jorge Sampaio, sócio do bloco e empresário de Daniela Mercury. Embora tenha ido bem de vendas, o diretor artístico da gravadora se recusava a me atender. Decidi então bancar o segundo disco e entregá-lo pronto. Ele nem havia saído e as canções “Flores” e “Alô Paixão” estavam tocando direto nas rádios.
Viajei de Salvador para o Rio com as fitas do álbum. Cheguei à Sony e disse que só sairia dali depois de ser recebido pelo diretor. Eu e Jorge Sampaio –que estava na cidade por causa de compromissos com Daniela– nos reunimos com o sujeito. Ele então disse: “A cantora é de Juazeiro, terra de João Gilberto. Não nasceu para cantar essas músicas aceleradas, tem de fazer bossa nova”.
Falei que estávamos estourados nas rádios da Bahia. Não satisfeito, o sujeito ligou para Ivete, tentando fazê-la largar a Banda Eva. Ela então respondeu: “Se Jonga estiver aí com você, o que ele falar está falado”. O tal executivo rasgou o contrato e disse que a gente podia almoçar um peixinho.
Bem, as espinhas desse peixe devem estar até hoje entaladas na garganta dele. Quanto a Ivete, ela canta de tudo –até bossa. Só não precisa mais de carona para ir até Morro do Chapéu.”