A saga do brega funk para se tornar filho pródigo do Recife
Antes rejeitado, o gênero agora é patrimônio cultural e imaterial
Reginaldo Rossi saiu da vida para entrar para a história como o eterno Rei do Brega em 21 de janeiro de 2018 –dois meses antes de Paloma Roberta dos Santos, a MC Loma, fazer a palavra bluetooth soar como “cebrutius”. Vitimado aos 70 anos por um câncer no pulmão, Reginaldo começou tocando jovem guarda, relutou em aceitar o título de patrono do brega, mas consolidou sua carreira narrando o homem como protagonista de desilusões amorosas e traições.
Sua trajetória, influência e obra culminaram em “Envolvimento”, hit pernambucano de MC Loma e as Gêmeas Lacração. Em pouco tempo, a faixa do grupo liderado por Paloma e adornado pelo tal “cebrutius” se tornaria porta de entrada para muitos brasileiros conhecerem um brega que, mais agressivo, também era funk —mas um funk sem ser funk, com teclados de reggae, metais sintetizados inspirados no Carnaval e uma pancada aguda que soa como um clique.
“Antigamente, a gente curtia Furacão 2000, porque é do funk de favela. Os bailes do Recife eram de muita curtição, pareciam com os do Rio”, relembra MC Elloco que, com MC Shevchenko, compõe uma das duplas mais famosas do gênero. “No brega, mas o brega mesmo, aquele do Reginaldo Rossi, da sofrência, o cara ficava solteiro e ia pro bar beber. A gente pegou mais a parte feliz do funk e depois colocou algumas letras mais ‘de passinho’.”
Essa evolução se iniciou de 2008 para 2009 e, aos poucos, foi alterando a paisagem da região metropolitana do Recife. A simbiose entre o funk do Rio de Janeiro e o brega local contagiou as periferias da capital pernambucana. Jovens uniformizados e em coreografias embrazadas causaram uma revolução no cenário da cidade.
A semente foi plantada por MC Leozinho ao gravar “Dois Corações” com o DJ Serginho. Com o mercado de funk, que vinha perdendo fôlego no fim dos anos 2010 após muito soco e chute trocados pelas galeras nos “bailes de corredor”, a gravação de um brega na voz de um funkeiro catalisou a fórmula que resultaria no brega funk. Um ritmo que combina a genética boêmia e romântica do Recife, com a potência dos bailes da década de 1990.
Poucos anos depois, o drama etílico eternizado em “Garçom”, maior sucesso de Reginaldo, daria lugar ao novo estilo “para a menina mexer a bunda, para o cara lançar passinho com os amigos”, como complementa Elloco. Com Shevchenko, ele criou “Gera Bactéria”, uma segunda semente (após “Dois Corações”) que juntou ritmo e dança com letra de baile, fazendo mãos irem em direção à virilha, criando a tradicional sarrada, um dos passos clássicos estabelecidos ali.
“Pernambuco é muito caracterizado por essa música que deriva da seresta. Ao longo do tempo, o brega sofre o processo de jovialização que é o classificado como brega funk: com a batida, o ‘passinho dos malokas’ nas danças, a temática sexual e a ambiguidade nas letras”, explica Thiago Soares, autor do livro “Ninguém É Perfeito e a Vida É Assim: A música Brega em Pernambuco” (Outros Críticos), e professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). “É um fenômeno razoavelmente recente. Acontece desde 2009 e passa a ser agendado nacionalmente em 2018”, completa.
No entanto, como que revivendo a história de todos os ritmos nascidos nos guetos, o brega funk não virou um filho pródigo da cidade. Pelo contrário: o tal “passinho dos malokas”, dança que está para o brega funk como o passinho está para o funk carioca, atraiu olhares e ações violentas. Toda uma cadeia de produção –formada por MCs, produtores musicais e audiovisuais e novos influenciadores– não estava nos planos geográficos e políticos da cidade.
“Há toda uma rede produtiva desconsiderada que não consegue, por exemplo, dialogar com uma truculenta Polícia Militar. No geral, o brega e o brega funk são reconhecidos como patrimônio cultural e imaterial, mas não há políticas públicas efetivas para o movimento, para além de shows centralizados e um diálogo com um nicho muito pequeno do gênero”, analisa Tássia Seabra, diretora da Frente de Cultura Periférica de Pernambuco, citando a lei nº 01/2021, que declara o movimento brega como patrimônio cultural e imaterial do Recife.
À baila dessas reflexões, o brega funk —a exemplo de seus primos de paredão do Rio, de São Paulo, e de Belém— alcançou novos palcos. Recentemente, artistas, pesquisadores e produtores estiveram na Câmara dos Deputados, em Brasília, para protocolar o projeto de lei nº 4725/2023, que pretende instituir o Dia Nacional do Brega. A data? Quatorze de fevereiro, que marca o nascimento de Reginaldo Rossi.
“Até 2017, o brega não podia tocar no Carnaval ou pleitear verba pública, porque não era considerado uma expressão cultural de Pernambuco. E aí acontece uma disputa interna dentro do gênero: qual brega vai ser subsidiado pelo Estado? Nesse sentido, há uma crítica pertinente dos MCs do brega funk porque, inicialmente, houve um movimento estatal exaltando os artistas do brega romântico”, explica Thiago Soares, que esteve presente na sessão em Brasília para defender a data comemorativa, citando a lei nº 14.679, que considera o brega expressão cultural.
“Só que, a partir disso, os então excluídos artistas do brega funk, por conta do grande capital nas redes sociais, atraíram a atenção dos políticos locais”, acrescenta.
Expoentes do gênero, como o MC Anderson Neiff, de 22 anos, também são influenciadores, com seguidores na casa dos milhões. Por essas e outras, de hostilizado num primeiro momento (mesmo com uma lei o protegendo), o gênero, então visto como vulgar e sexualizado, passou a ser reconhecido também como um importante braço de mobilização. Isso desencadeou uma aproximação política considerada, por aqueles que estão dentro do circuito, eleitoreira e pouco plural..
Corta para 2023: esse fenômeno Anderson Neiff, uma mistura debochada de MC com humorista está em cima do palco montado no Marco Zero de Recife com sua mãe, dona Erivone Espindola, e com mais 300 mil pessoas em uma mistura de sentimentos: choram, protestam e, mais importante, embrazam. “Eita, p…, coroa do c…”, exclama o filho ao lado da mãe adotiva. Criado no bairro do Ibura, considerado o mais violento de Recife, Neiff ao lado do DJ John Johnis, do MC Elvis e do MC Sheldon, entre outros, cravou ali um novo momento histórico, uma espécie de renascimento.
“A gente é muito discriminado. Estar naquele palco foi histórico”, afirma o potiguar DJ John Johnis, de 26 anos, contando que chegou virado do tradicional bloco carnavalesco Galo da Madrugada e de um outro show direto para o palco montado no coração de sua cidade. “Não conseguimos passar o som direito, foi uma confusão. Mas depois foi muito lindo ver as pessoas chorando, dançando e ouvindo o que eu produzo, celebrando aquele momento.”
O DJ inaugurou a noite com o riff de guitarra de “Anunciação”, clássico de Alceu Valença, embalando um brega-manifesto (“respeite a minha cultura, assim como eu respeito a sua! O brega funk salva vidas!”, dizia uma voz ao fundo). Quando a voz de Alceu surgiu fundida com os médios acentuados do brega funk, a plateia já estava entregue (assista ao vídeo em billboard.com.br).
Foi durante essa efervescência que Anderson Neiff eclodiu no palco, cantando “Diferente da Minha Ex”. Minutos antes, o MC tinha um mantra na cabeça. “Eu vou dar a vida nesse palco”, repetia. “Eu venci, p…!”, desabafou. A sensação de vitória era comum a todo um movimento que se sentia, de forma inédita, representado no local de fundação da capital pernambucana. Sem perseguição e sem spray de pimenta, parecia que, finalmente, havia um progresso na relação entre o poder público e aqueles filhos pródigos presentes. “Nunca imaginei estar aqui. Vim do Ibura mostrar que o brega funk salva vidas, que não vai ter briga e que somos pais de família e cidadãos”, disse o MC antes de estourar o hit “Seu Gostoso”.
No Ibura, agora, as crianças enxergam os vizinhos VT da Quebradeira, outro expoente do gênero, e o ídolo-mor Anderson Neiff como referências. Contudo, no terceiro maior bairro da cidade, ainda existem o fantasma do analfabetismo (86,5% na população acima de 15 anos) e a violência. Foi lá que o jovem William da Silva, de 19 anos, recém-formado em mecânica, presenciou dois PMs agredindo um motociclista que havia fugido de uma abordagem.
Testemunha da má-conduta, ele tentou argumentar com os policiais, sendo alvejado por um tiro letal. “Na visão do filósofo camaronês Achille Mbembe, isso é necropolítica. Como o poder público não nos protege, nós mesmos precisamos criar estratégias de defesa e sobrevivência”, ressalta Juliane Lima, mestre em desenvolvimento urbano pela UFPE, ao analisar o bordão “o brega funk salva vidas” repetido inúmeras vezes durante as apresentações no histórico Carnaval de 2023.
Para salvar mais vidas, o brega funk não deveria correr sozinho. Em 2012, o então governador de Pernambuco pelo PSB, Eduardo Campos (1965-2014), parecia disposto a criar políticas públicas para fazer companhia aos MCs nessa missão. O PAC (Programa Aluno Conectado) colocou tablets e laptops nas mãos de milhares de estudantes.
Só no primeiro ano, contemplou 156 mil crianças e jovens. Essa aproximação com a tecnologia e a permissão de levar os aparelhos para casa atiçou a curiosidade por softwares e aplicativos, alguns desses musicais. “Foi aí que eu tive meu primeiro contato com um computador e com o FL Studio [software de produção musical, usado no grime, trap, funk e no brega funk]. E aí fui aprendendo na marra”, diz o, agora, produtor Marley no Beat, de 28 anos. Não surpreendentemente, o programa foi descontinuado ao final do mandato de Eduardo Campos, em 2014.
“Era uma política pública que revelava, pelo menos no discurso, um comprometimento do governo da época com a necessidade de modernização das práticas de ensino nas escolas de nosso estado”, afirma Danilo Melo, mestre em Educação, Culturas e Identidades pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e pesquisador do PAC.
Voltando a 2023, as 300 mil pessoas que lotaram o Marco Zero no Carnaval imploravam por mais. De acordo com a Secretaria de Cultura, a programação da folia da capital do brega em 2024 inicia uma descentralização tida como necessária, espalhando palcos por toda a cidade. Mas parece pouco.
“Quando a gente fala de políticas públicas, a gente fala de programas como o PAC ou de iniciativas que permitam o desenvolvimento de novas habilidades, a potencialização desses artistas, desses jovens. A gente está vendo algumas iniciativas agora, porque 2024 é ano de eleição. Porém, durante o ano todo, não existiram projetos para incrementar essa cadeia produtiva que vai além dos MCs”, ressalta Tássia Seabra, diretora da Frente de Cultura Periférica de Pernambuco.
Apesar do reconhecimento como expressão cultural e patrimônio imaterial, o brega chega a 2024 se equilibrando entre o êxtase dos momentos vividos no Carnaval anterior e uma sensação agridoce de conquista tardia.