A poeira, fumaça e bandeiras azuis e brancas na Marquês de Sapucaí sofreram algum baque na virada do dia 20 para o dia 21 de fevereiro de 2023. A Portela, essa escola que é um dom, uma certa magia, comemorava seu primeiro século de glórias com êxtase nos dias anteriores ao desfile quando sua terceira alegoria enroscou-se na grade lateral e interrompeu sua evolução na avenida. Houve um anticlímax.
Dois anos depois, o azul e branco parecem um pouco mais fortes. A Portela levará Milton Nascimento pela avenida em procissão que pode confirmar a sintonia com o ídolo apelidado de divino em homenagem à sua voz. Para ambos, o futuro é sorridente. É como se baila neste lugar chamado palco, portanto, vida.
Naquela noite que abre este texto, muitos portelenses assistiram incrédulos ao desfile de 2023 —e, ao contrário do verso de “Maria, Maria”, choraram quando deviam… chorar. Nas arquibancadas, a azul e branca Carol Crespo, de 30 anos, vertia lágrimas. “Foi uma sensação de tristeza, mesmo. Tudo indo por água abaixo. No centenário da Portela, você imagina algo à altura”, reflete ela dois anos depois. O vice-presidente Junior Escafura concorda: “Não foi tudo o que a gente esperava”. A escola entendeu que precisava de mudanças. Às vezes, a gente não vive, apenas aguenta.
Mas o som, a cor e o suor reafirmaram a fé que há de se ter na maior vitoriosa do Carnaval carioca. Em 2024, debruçada sobre a obra da escritora Ana Maria Gonçalves e seu “Um Defeito de Cor”, a águia homenageou as mães negras brasileiras que, vestidas com camisas de saudade, trouxeram um Estandarte de Ouro de melhor escola e uma quinta colocação que, consoladora, chancelava as mudanças que a tristeza do centenário havia provocado e que obrigou a fazer transformações na estrutura da escola. Nesse ínterim, ainda, a agremiação daria adeus à carnavalesca Márcia Lage (1960-2025). E, então, em 2025, vem o apelidado Bituca. E essas duas instituições, Portela e Milton, são parecidas porque possuem gosto pelo renascimento.

Mas a história dele com o Carnaval em nada tem a ver com o Rio de Janeiro ou com o bairro de Madureira. Vem de Três Pontas (MG). E ele nem curtia desfilar, nem nada. “Só observar os carros e as fantasias riquíssimas”, diz a biógrafa do cantor e trespontana Maria Dolores. “Também não torcia. Até que, anos depois, ele foi homenageado pela Estudantes do Samba”.
A escola disputa a folia de Três Pontas com a Acadêmicos do Serrote, fazendo uma rivalidade na cidade — esta que ele e seus amigos de Clube da Esquina ajudaram a pôr no mapa como um dos mais importantes locais da história da música. Anos depois de ser homenageado pela escola, em 1977 e em ato recíproco, ele presenteou a agremiação com o samba-enredo “Reis e Rainhas do Maracatu” —que, posteriormente, estaria também em “Clube da Esquina 2”, de 1978, continuação do clássico álbum feito com Lô Borges, cinco anos antes.
“Eu sempre tive o sonho de escrever um samba para essa escola. Até que fizemos. Nelson Angelo, Novelli, Fran e eu. De uma só vez, todos compondo juntos, na mesma hora, num apartamento que eu morei durante muitos anos na Barra da Tijuca”, relembra Milton à Billboard Brasil.
Dez anos antes do convite, o compositor não esteve bem: ele sequer encostava em seus instrumentos. A depressão havia apertado o cerco —e, além disso, Milton disse adeus ao amigo e poeta Fernando Brant (1946-2015), fundador do Clube e compositor de “Paisagem da Janela”, “Ponta de Areia”, “Encontros e Despedidas”.
Por isso, aceitou o convite do filho Augusto Nascimento e retirou-se na cidade mineira (e, como ele, um pouco carioca) Juiz de Fora.
No Rio, a escola de Madureira também parecia sem força pelos anos 2000. Foram anos amargos e sem títulos —a escola ficou de 1984 a 2017 sem consagrar-se campeã. Ao que parece, os dois gigantes se reconheceram também pelo gosto de fel.
“Curiosamente, antes do convite da escola, a gente viu o Carnaval de 2024 no próprio camarote da Portela que é conduzido por alguns amigos meus”, introduz Augusto — também produtor, empresário e responsável, desde 2017, pela condução da carreira do pai também compositor, arranjador, boa praça, fã de Beatles, “a voz de Deus”, carioca radicado em Minas Gerais e, enfim, obra viva e forte da coleção da música brasileira.
Filho adotivo de um filho adotivo (Milton foi adotado ainda bebê pelo casal Josino e Lílian), Augusto é peça importante que conecta a obra do pai a novos ouvidos nos últimos anos. Mas não só. Ele foi fundamental em mais um renascimento do pai. “É, eu tava terminando a faculdade de Direito e meu pai havia parado a carreira por um período”, assinala.
Foi nessa época que Augusto abrigou o pai. “Foi uma depressão bem, bem severa. Então, levei-o para morar comigo”, explica. Um dia, voltando das aulas, Augusto encontrou Milton ao piano. A mudança parecia ter surtido efeitos; estar com o filho, idem.
Augusto virou, de repente, empresário de um dos maiores artistas do mundo. E havia muito trabalho: organizar direitos autorais e outras burocracias de uma obra que nunca morreu, mas que o mercado passou a considerar desinteressante. “Fui ridicularizado. Era o ‘filhinho do Milton’. Mas ele confiou em mim. ‘Você está bem com isso?’, ele me perguntou. Eu disse que estava. E, aí, pronto”, conta o agora também responsável pelas carreiras de artistas como Criolo e Samuel Rosa.
Quem traz na pele essa marca / Possui a estranha mania de ter fé na vida
Antes da depressão, Milton sofreu com a diabetes mellitus tipo 2, ficou magro, magrinho, magérrimo. Chegou a pesar 40 quilos. E, por isso, em suas próprias palavras, foi “caçado” pela imprensa. Com desinformação (e maldade), periódicos especulavam que o cantor podia ter contraído HIV. “Fizeram um trabalho muito feio, terrível. Urubu caçando carniça. Foi tanta perseguição que fiquei doente de verdade”, disse em 1997 durante o programa de Jô Soares, no SBT.
Nesta entrevista, Milton está bem-humorado —ainda que magoado. Quando Jô cita a anorexia, por exemplo, e a rotula como “doença de modelo”, ele se estende ereto, bem de supetão, pega o apresentador de surpresa e desfila gracioso, arrancando aplausos da plateia. “O que eu mais sofri foi porque muita gente sofreu. E isso não é coisa que se faça”, diz ele ao voltar para o papel de entrevistado. Logo após, confirma a mágoa: “Nas manifestações contra a ditadura, a minha cara estava sempre lá na frente. Inclusive a favor da liberdade de imprensa. Mas aí eu penso: ‘foi pra isso!?’”. Jô, então, pergunta: “Você ficou muito magoado?”. Milton diz que sim. E a vida seguiu.
É do mesmo ano da entrevista o disco “Nascimento” —você, então, agora, compreende o título ser algo a mais do que referência ao sobrenome. Antes da preocupação com a diabetes, ele passou um bom tempo duelando também contra a saúde financeira. No livro “Travessia: a vida de Milton Nascimento” (Editora Record, 2011), Maria Dolores conta que, cinco anos após a estreia no disco “Travessia”, de 1967, casas cheias no Brasil e carreira internacional, o patrimônio de Milton se resumia a um fusca — carinhosamente chamado Tótó.
“Passava semanas sem um tostão no bolso. Não raras vezes sofria calotes”, descreve ele, citando mais uma característica de Milton, um certo desapego material que culminava nesta desorganização do erário.
Foi após o clássico “Clube da Esquina” e do censurado “Milagre dos Peixes” que a situação se acalmaria um pouco. “Um pouco”, talvez, não sejam as melhores palavras. Perseguido pela ditadura, Milton abandonou tudo o que tinha, inclusive a família, e passou a beber mais. Experimentou, de vez, os bolsos muito vazios.
O fundo do poço seria um lar, não fossem uns amigos recém-chegados. “Novos amigos foram surgindo de todos os cantos”, conta Maria Dolores. Chico Buarque, Caetano Veloso, Francis e Olívia Hime, Maria Bethânia, entre outros, se juntaram a amizades fortes que ele tinha em Três Pontas.
Bituca superou e resistiu —e não seria a primeira vez. Poderíamos contar de quando foi reprovado na aula de canto: o aluno Milton Nascimento, sim, ele, ao fim do primeiro ano de ginásio, teve seu canto pouco apreciado pelos professores. Houve também o racismo —que, por exemplo, o impediu de frequentar os bailes de Três Pontas.
Quando se formou no ginásio, em 1958, sendo o melhor aluno (e único negro) da turma, foi escolhido como orador. Ao fim da formatura, enquanto todos iam para o baile, ele isolou-se em casa: sabia que seria barrado. Na mesma cidade de sua adolescência, viu os pais de uma jovem branca proibirem o relacionamento entre eles.
“A vida dele foi dura desde o início. Órfão com 2 anos, vai pra Juiz de Fora morar com a avó, depois Três Pontas como [filho] adotivo, não podia entrar no clube porque era preto. Ele sempre foi muito roubado, explorado, cercado de pessoas que estavam em torno dele só por interesse. Ele tem os traumas dele”, reflete Augusto. “Meu pai é a pessoa mais bonita que eu conheço. Bondosa. Uma entrevista que me marcou muito é uma do Tulio Mourão [pianista que acompanhou Milton por quase 20 anos]. Ele diz: ‘Eu nunca vi o Milton ter uma atitude filha da puta com ninguém’. Sabe? Eu não consigo ter outra imagem senão de uma vida de quase 83 anos pura e eterna”, complementa.
Como se não bastasse, Milton foi desrespeitado na edição mais recente do Grammy, no início de 2025. Concorrendo com seu álbum feito junto à contrabaixista e cantora norte-americana Esperanza Spalding, viu a tal “academia”, a tal da “indústria” negar-lhe um assento no local em que sua parceira estava instalada. “Esses lugares são só para quem a gente quer no vídeo”, ouviu Augusto um dia antes da cerimônia, em Los Angeles. “Eu não ia diminuir meu pai a isso. O Quincy Jones era o homenageado da edição e, provavelmente, dos que estavam ali, meu pai era o mais próximo dele. Mais do que a Beyoncé, com todo respeito a ela. Pô, o Thundercat [baixista, autor de ‘Drunk’, de 2017], um monstro da música, foi todos os dias em nossa casa para ver novela com meu pai”. O baixista confessou que o disco “Minas”, de 1975, mudou toda a forma dele de pensar música. “Isso só comprova como esse prêmio não é mais sobre música. Para mim, meu pai tinha que ter um trono no palco”, desabafa Augusto. A ausência ficou marcada pela divulgação de uma foto em que Esperanza está ao lado de um Milton de papel, protestando com os dizeres: “Esta lenda viva deveria estar sentada aqui”.
Ao contrário de uma contemporânea-datada indústria musical, muitas pessoas souberam como celebrar esses 80 anos e um pouquinho de vida e 60 de carreira de Milton Nascimento. Ideia do filho, a turnê “A Última Sessão de Música” marcou a despedida dos palcos em 2022. Os shows enfileiraram sucessos, mas também canções menos conhecidas como “Pai Grande”, do álbum “Milton”, de 1970, um xodó recente na vida do filho.
“Ainda tenho muita vida pra viver”, diz a canção. “Dei um jeito de enfiar no show porque eu acho que representa muito a obra, é letra e música dele”, explica Augusto que, com o pai, só escuta Beatles e… Milton Nascimento. “Meu pai deve ser o único artista que gosta de se ouvir. Esses dias estávamos ouvindo o ‘Yauaretê’ [de 1987, que traz o pianista Herbie Hancock e o saxofonista Wayne Shorter, amigos de longa data]. A gente faz churrasco, os amigos veem, e ele pede os discos dele. Ou Beatles”.
No cinema, Bituca ganhou um road movie. “Milton Bituca Nascimento”, da diretora Flávia Moraes, acompanha o cantor durante a parte internacional da turnê “A Última Sessão de Música”. Com 42 depoimentos, o documentário preserva a personalidade discreta do cantor ao mesmo tempo em que encanta justamente por flagrar Milton em momento de intimidade e relaxamento. Para tal, Flávia se preparou. “Nós fomos delicados. O tempo todo estou por trás dele, seguindo-o. Eu só escancaro o close quando eu falo da ancestralidade, da questão racial”, conta.
O filme não passeia pela biografia de Milton, deixando o espectador entender a grandiosidade da obra pelos relatos dos supracitados Wayne e Herbie, mas também Gilberto Gil, Mano Brown, Pat Metheny, Spike Lee, Dora Morelenbaum, entre outros.
Foi da diretora a ideia de uma das cenas comoventes do filme —Augusto não queria gravá-la, por achar demasiadamente montada. “Eu sentei-os ali e, em dado momento, peço pro Milton perguntar para o Augusto como é ser o filho adotivo dele. E ele fez. Mesmo montada, foi uma cena de ‘meninos’. O Augusto responde de forma que eu não esperava. ‘Eu sou a pessoa mais amada do mundo’, ele diz. E, aí, sem termos combinado, o Augusto pergunta: ‘E você?’”. Arrebatadora, a cena termina com Milton dizendo “que nunca foi tão feliz assim”.
Essas histórias todas serão contadas em forma de procissão (de fé) na Marquês de Sapucaí. Para muitos portelenses, 2025 é um ano em que ninguém está apostando muito na escola, esta que será a última do Grupo Especial a desfilar, por volta das duas da manhã. Independentemente da apuração dos resultados, o cortejo que partirá da Madureira da Portela à Três Pontas miltoneana quer, pelos olhos dos carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga, contar a história poética, cultural e espiritual desde cantor que, seguindo os versos de “Bailes da Vida”, estará no lugar certo, mais uma vez: onde o povo está.