Dona Onete cantava na beira do rio para os botos e tornou-se sindicalista
Um perfil da cantora homenageada no WME 2023
Quem –como eu– acha Dona Onete uma cantora única é porque nunca a viu cozinhando. As apresentações dessa paraense de 84 anos em geral são acompanhadas por espetáculos culinários, nos quais ela coordena a confecção de pratos típicos, como peixada ao molho caboclo e pudim parauara.
Brincadeiras à parte, claro que é no palco em que ela reina soberana, com o melhor dos ritmos regionais do Pará, temperado por arranjos de novos músicos. Um talento que a fez ser reconhecida como patrimônio cultural imaterial do estado. Dona Onete será a artista homenageada pela edição deste ano do WME, o Women’s Music Event. O evento foi criado para incentivar e promover a presença feminina no mundo da música: das intérpretes àquelas que estão atrás dos palcos, nos bastidores e na produção. A premiação acontece em dezembro e fará tributo também a Rita Lee.
Em entrevista à Billboard Brasil, Dona Onete contou que está feliz em dividir as homenagens com a cantora paulistana morta em maio, a maior do pop/rock nacional. Ela afirma que vê um pouco do gênero em sua própria música: “A canção ‘Jamburana’ me levou para o Rock in Rio. Quando cheguei lá, perguntei por que estava ali. Nem rock eu canto”, relembrou. A produção do festival descreveu o single como um tanto quanto doido —da melhor maneira possível— e foi o suficiente para colocá-la no maior evento musical do país. “Foi uma loucura”, lembra.
Nascida em Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó, em 1939, Ionete da Silveira Gama começou a cantar aos 8 anos, quando se aproximava dos rios paraenses e soltava a voz para os botos que nadavam por ali. Ela os alimentava com flores de jambu rosa, sem imaginar que se transformaria em Dona Onete, cantora, compositora, sindicalista e poeta brasileira.
Uma tia que acompanhava curiosa e um tanto temerosa a cantoria diante dos botos, não deixava a menina chegar perto do rio, com medo de que ela se afogasse –ou se encantasse pelos animais, que inspiraram o folclore nacional. No imaginário popular, o boto se transforma em um belo homem, seduz mulheres, as engravida e desaparece.
“Eu nem consegui aprender a nadar quando era criança. Não podia entrar no rio, achavam que eu seguiria os botos. Mas eles foram a minha primeira plateia.”
Com o passar dos anos, os shows de Dona Onete para os botos deram lugar à sala de aula. Ela ensinava história na escola Aristóteles Emiliano de Castro, em Igarapé-Miri, no Pará, cidade onde passou boa parte da vida. Lá, debruçou-se no desafio de apresentar a cultura popular do estado para os alunos e lá também viveu até a aposentadoria como professora, aos 62 anos.
Depois de completar 250 horas de aulas lecionadas, Dona Onete passou a receber um salário suficiente para libertá-la de um casamento de 25 anos, que já não dava mais certo e impedia sua vida como ativista. Ela foi uma das responsáveis por fundar o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública, além de ter atuado na luta pelo cultivo sustentável de açaí na cidade onde nasceu, considerada a capital mundial do fruto.
“Eu achei que a luta dos sindicatos era mais importante do que o relacionamento”, avalia. Onete se descreve como “duas vezes sindicalista”.
Seu compromisso em difundir a cultura paraense a acompanhou desde o início de sua trajetória e cravou seu nome como figura importante para a região. Ela fundou, em 1989, o Grupo Folclórico Canarana, que promovia apresentações de benguê, lundu e carimbó —gênero que deu o tom à sua carreira artística. A paraense também atuou como secretária de cultura de Igarapé-Miri, na década de 1990.
Artista desde criança
Ainda na escola, Dona Onete mantinha contato com a música. Ela promovia semanas de artes para os alunos e professores, em que interpretava grandes cantoras da região Norte e Nordeste do país, como Núbia Lafayette e Ângela Maria. Nessa época, ela participava de serestas, gênero considerado a serenata brasileira.
“Já diziam que eu era artista, mas eu não levava muito a sério. Eu queria me aposentar como professora para ter meu dinheiro garantido, porque como cantora eu não sabia se seria certeiro.”
Seu primeiro álbum, “Feitiço Caboclo”, foi lançado em 2013, ano em que Dona Onete completou 74 anos. Nas músicas, ela leva o ouvinte a um passeio pelo Pará e lhe apresenta o que o estado tem de melhor, desde os botos namoradeiros de sua infância até o jambu que treme. “Cada música que eu canto é um texto. Eu não sei fazer um pedacinho, preciso contar uma história com princípio, meio e fim. Meu ritmo é diferente, é uma mistura, eu faço tudo.”
Na época do lançamento de “Feitiço”, ela chegou a ter medo de ser julgada pela forma como escolheu descrever a cultura paraense, principalmente por acadêmicos. “Apesar de tudo, eu não esperava sucesso”, confessa. “Eu canto um verso pobre, mas eu canto com tanta riqueza e prazer de cantar que as pessoas ficam com vontade de conhecer o Pará”. E quem não ficaria?
A sétima edição do WME terá apresentação de Preta Gil e contará com 17 categorias, todas voltadas para exaltar e premiar as mulheres que trabalham na indústria musical. “Quando me falaram sobre a homenagem na premiação, eu não acreditei. Só consigo agradecer”, completa Dona Onete, que deixou o rio dos botos para se tornar um tesouro nacional.