Como o rádio faz diferença na propagação da cultura brasileira
É necessário valorizar a diversidade da música no Brasil

A música, entre todas as formas de arte, talvez seja a mais acessível. Está no ar. Com sorte, você mesmo toca um instrumento, é um amador no sentido jobiniano e até canta um pouquinho. A música também nos assalta, chega de surpresa ou mesmo no susto. Atrapalha a concentração de Chico Buarque que já contou nas redes que não ouve nada em casa ou teria que parar para isso, porque ouvir música não é contar piada. Música também é uma forma de oração.
Dito isso, entro num tema muito querido para mim: a música no rádio. A primeira plataforma de difusão em larga escala. Ondas curtas, médias, frequên- cia modulada. De qualquer lugar para o mundo todo. Toda semelhança com a difusão digital.
O sistema de radiodifusão no Brasil tem história complexa e polêmica. Da força do meio ninguém duvida, tanto que grupos que precisam, buscam ou querem poder político e religioso são os principais detentores das concessões. Se no princípio a música dominava, em 2024 um passeio pelo dial de uma cida- de imensa como São Paulo é desolador. Pregação, notícias falsas, manipulação e, nas emissoras que ainda tocam música, uma vontade de ser muzak, de fazer aquele sonzinho de fundo que não atrapalha ninguém.
Visitando estes dias uma nova emissora FM ainda em fase de definição de seu propósito, lembrei-me do maravilhoso “Programa do Casé”, que nas décadas de 1930 e 1940 foi o primeiro a colocar propaganda no ar com fundo musical. Era transmitido para todo o país via ondas curtas, e uma das maiores maravilhas era o modelo de negócio. Ele vendia os aparelhos de rádio, os anúncios das lojas que vendiam o aparelho e tinha no casting os músicos mais populares do Brasil. Todos ganhavam, inclusive o público que se formava ouvindo rádio. É notória a influência de Orlando Silva no canto de João Gilberto e de João no canto e na arte de Caetano Veloso. Todos ouvintes de rádio. Esse ciclo se perpetua. Luiz Melodia desceu o morro do Estácio com muito samba nas veias, mas também com blues e jazz que ouvia nas rádios. Uma escuta que resultou num dos repertórios mais interessantes e originais deste país.
Com a massificação do discurso musical perdemos muito como sociedade. Não discuto os gêneros, mas a massificação, esse empastelamento de corações e mentes com a repetição de estilos, de versos, de temática. É violento não ouvir no rádio a realidade diversa da música feita no Brasil. É doloroso e assustador pensar que as gerações que se formam agora no século 21 não têm acesso a essa riqueza.
O jabá é uma prática de troca comercial que pode ajudar, mas também corromper. Durante a ditadura, foi útil para promover os artistas que vendiam menos com o dinheiro que os mais populares conseguiam. Mas o grande, o imenso problema é a política de concessões. Com raríssimas exceções, não interessa ao dono de rádio atuar culturalmente, na formação, na educação mesmo da sua audiência a partir da informação criteriosa e instigante. Interessa vender o que todo mundo vende e propagar ideologias.
A ideia de que a música instrumental não tem público é uma mentira. Ou que a música brasileira, a canção, só pode ser tocada ao meio-dia, na hora do almoço. Repare nas grades das programações: é nesse horário que os programas se encaixam quando fazem parte. Busco as exceções. Ouço rádios públicas, universitárias, as poucas emissoras que transmitem música brasileira, clássica, rádios de nicho.
Nas plataformas digitais, encontro as públicas e associativas da Europa, rádios que transmitem 24 horas só de jazz, só de canção francesa, música contempo- rânea, de países africanos e até música brasileira. E sonho com a democratiza- ção do acesso a essas concessões. So- nho com as rádios comunitárias fazendo uma grande rede de boa educação,
de cultura, de informação relevante e construtiva.
Música é entretenimento, mas também é formação de caráter. É ferramenta para lidar com a vida, é amor e filosofia. O poder da palavra tão sabiamente conhecida pelas mais diversas religiões e filosofias tem feito estragos neste Brasil. Imagine esse país diverso representado no ar. Imagine ouvir Tom Jobim no rádio e suas loas à Mata Atlântica, aos veios d’água, ao amor que faz esquecer até do futebol… Imagine ouvir Zé Manoel e seu piano de corredeiras do São Francisco…
A arte é construtora. O papel do rádio enquanto veículo de formação está corrompido. A repetição emburrece e traz resultados horrorosos. A falta que faz a diferença, o inovador, o que intriga e estimula é além do gosto. Fica a lacuna, o buraco, e esse é o caminho para a cria- ção de uma massa manipulável. Tristes nós todos que perdemos a capacidade de ouvir com tempo e cuidado.
Como profissional de rádio fico pen- sando se ainda é possível mudar esse quadro ou se é mais um ecossistema em colapso. Tão corroído e maltratado que não tem mais ponto de retorno. Quando você escolhe o que ouvir e compartilha essa escolha, você dá poder ao discurso, dá poder à palavra. Já que somos todos formadores de opinião neste mundo maluco das redes sociais para quem você dá poder? O que é que você ouve?