Como o pagode se tornou um porto seguro para Gloria Groove?
A drag queen se jogou no gênero com o projeto 'Serenata da GG'
Corillo é uma gíria de um dos muitos dialetos do espanhol que significa um grupo de amigos ou até mesmo uma família. Mas também pode fazer referência a algo (ou alguém) onde se encontra amparo. Em março de 2024, Gloria Groove se voltou ao seu corillo ao anunciar que pararia tudo o que estava fazendo para se dedicar a um novo projeto. A ideia era pesquisar referências e resgatar suas origens para reencontrar sua glória no pagode, no que viria a se tornar o recém-lançado “Serenata da GG”.
Após passear pelo rap, pop, R&B e funk, Daniel Garcia Felicione Napoleão, que dá vida à drag queen Gloria Groove, decidiu voltar ao momento mais frágil de sua vida, quando ainda era bebê e escutava o cavaquinho e o pandeiro “desde a barriga da mãe”. Sem exagero. Gina Garcia viajou Brasil e o mundo como backing vocal do grupo de pagode Raça Negra. Por 29 anos, dividiu palco com o vocalista Luiz Carlos e seus companheiros de grupo.
O resgate de memórias afetivas foi além da família e dos amigos ouvindo um pagodinho. Foi despertado também pelas parcerias que Gloria vinha fazendo em cima dos palcos. A primeira vez que se aventurou no gênero havia sido ao lado de Thiaguinho, em 2021. Os dois gravaram “Presente do Céu”, versão do sucesso “Best Part”, de Daniel Caesar e H.E.R. A experiência, segundo ela, foi “catártica”.
Aos poucos, foi percebendo que deveria se render ao som do pandeiro e do cavaquinho. Foi quando surgiram mais convites para participações em projetos de outros cantores e grupos do gênero.
“Essas experiências me marcaram muito pelas sensações causadas no meu corpo, como artista, mesmo. A paz de estar ali, apenas cantando sobre sentimento… Eu venho de uma construção artística de shows pop, em que você precisa cantar, dançar, trocar de roupa, lidar com telão, balé.”
Em busca desse porto seguro, em 2021 GG gravou com Ludmilla o medley “Modo Avião/ A Tua Voz/ 700 Por Hora/ Radar / A Música Mais Triste do Ano”, uma de suas faixas mais ouvidas no Spotify.
Seu primeiro pagode autoral, “Tua Indecisão”, foi gravado no ano seguinte, com o grupo Sorriso Maroto. Deu certo. “Como posso retribuir o amor que esse estilo tem por mim?”, indagou, na época. A resposta encontrou o match perfeito no antigo desejo de gravar um DVD ao vivo, algo que sempre cai bem no pagode. Nascia ali a “Serenata da GG”.
Para conceituar o trabalho, mergulhou no pagode dos anos 1990 e 2000. Fã de grupos como Katinguelê, Só Pra Contrariar e Raça Negra, a cantora revisitou grandes sucessos para estudar sua nova era, que mescla regravações e faixas inéditas.
“Tive que abrir o meu coração para fazer um processo muito terapêutico na composição das músicas. Me propus a criar faixas com muito sentimento.” A musa inspiradora do projeto é sua tia Soraia, mulher que, segundo Gloria, teve inúmeros namorados e vive o amor em toda a sua intensidade
Outra das inspirações foi estudar o álbum de estreia de Belo, “Desafio” lançado no início dos anos 2000 com o hit “Tua Boca”. O cantor, referência no pagode romântico, era um dos nomes mais citados durante a criação de “Serenata”, especialmente por não adotar uma identidade de gênero em seus versos, cantando o amor do ponto de vista do sentimento, e não de um homem ou de uma mulher.
“Sempre achei isso genial nas composições do Belo e tentei trazer o mesmo tom para ‘Serenata’. Até por ser uma drag queen, é bonito colocar a composição nesse lugar não-binário e indefinido.”
Belo é tão importante na concepção do projeto que foi nomeado padrinho da “Serenata da GG”. “É incrível ver novas vozes no pagode, principalmente quando ela é linda como a da Gloria Groove. Fico muito feliz de acompanhar de pertinho e ainda poder ter participado. É um projeto incrível”, diz o cantor.
Além da sonoridade, a cantora também revisitou todas as “breguices amorosas” da época, a fim de compor a estética do DVD. Os programas “Beija Sapo”, da MTV, “Vai Dar Namoro”, da Record, e “Em Nome do Amor”, do SBT, foram alguns dos estudados por ela. Além de voltar ao passado, Gloria também procurou entender como a geração atual fala de amor –quando fala! Porque, para alguns, ser emocionado pode ser um problema.
“Percebi que [demonstrar sentimentos] requer muita coragem, hoje em dia. Na verdade, o emocionado é uma pessoa que tem a honestidade de se permitir sentir tudo o que quer sentir”, reflete GG, que não cansa de expressar o amor por sua família, pelos amigos e pelo marido, o artesão Pedro Lopes, com quem está há quase dez anos.
Como Cazuza (1958-1990), ela sentia a necessidade de falar do amor em sua maior instância. “Eu entendi que precisava ser o amor exagerado. Elevar tudo à máxima potência.”
O resultado já tem sido sentido. “A ‘Serenata’ tem me devolvido a autoestima, mas também me lembra como ser drag queen ainda é controverso e transformador, por desafiar as barreiras de gênero, identidade, corpo e história.”
Conceito pronto, Gloria reuniu amigos da vida e da música para a gravação do DVD, que aconteceu em maio, no Rio. Com a bênção de nomes fortes do estilo, como Mumuzinho, Alcione, e Menos É Mais, convocou também a ala da MPB, representada por Ana Carolina, e acrescentou o pop de Thiago Pantaleão.
A mais recente porta-voz do pagode, Ludmilla não participou diretamente, mas Gloria Groove reconhece a importância da amiga para que sua “Serenata” ganhasse o mundo.
“Ela é um farol para mim nesse projeto. O que ela construiu com o ‘Numanice’ foi um espaço seguro para nós, pessoas LGBTQIA+, curtirmos o pagode numa boa. Lembro de me emocionar com isso várias vezes, estando ali, cantando ou apenas assistindo.”
Antes do lançamento oficial, dividido em duas partes, o projeto causou barulho, com a viralização da faixa “Nosso Primeiro Beijo”. Mas também vieram as críticas por uma diva pop não convencional se jogar no pagode.
“A primeira fase foi triste. Escancarou o vira-latismo que a minha comunidade tem quando uma de nós tenta fazer algo diferente. Fiquei muito decepcionada com comentários que li, pessoas desprezando o que ‘Serenata da GG’ poderia ser antes mesmo de conhecerem o projeto.”
“Ouvi diversas vezes, dentro da minha comunidade, que estou fazendo um conteúdo ‘para o público hétero’”, diz Gloria, pronta para dar cara a tapa mais uma vez.
“Sempre fiz música para todos e não é de hoje que eu não me encaixo perfeitamente nos moldes. Sou uma drag queen que vem do rap, que vem da zona leste, que fala de funk e vivência de quebrada. Não seria novidade eu não ser aceita por todo mundo”, encerra.