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Bia Ferreira: ‘Eu quero ser a liberdade que eu queria ver’

Bia Ferreira: ‘Eu quero ser a liberdade que eu queria ver’

Cantora fala do sucesso no exterior e questiona espaço para lésbicas na música

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Bia Ferreira por Pedro Barros TAUMKAOSAKI 1 scaled

Foram mais de 50 shows fora do Brasil –principalmente na Europa– só no ano passado. Por onde passa, Bia Ferreira, 30 anos, encanta e mobiliza. Quem não sabe as letras de suas músicas, ou mesmo não fala português, é contagiado pela energia de seus shows. Muitos deles apenas com voz e violão.

A cantora credita o fenômeno em cima do palco à infância. A mãe é pianista e regente de coral. O pai, pastor evangélico. Os dois sempre se dedicaram em tempo integral a ser missionários –e sonharam que os seis filhos seguissem o mesmo caminho. Todo mundo aprendeu a cantar, todo mundo sabe tocar ao menos dois instrumentos. “Eu fui criada para ser pastora, como o meu pai. Então, fui educada para falar e mexer com o seu coração”, conta Bia. São as ferramentas que usa até hoje.

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A trajetória de Bia, no entanto, sofreu um desvio quando ela se entendeu lésbica. A família, original de uma cidadezinha rural de Minas Gerais, insistiu na cura gay. Ela pediu a Deus, em forma de música, que não deixasse de amá-la. Entendeu que, de acordo com as crenças da religião, isso não aconteceria. Criou então, numa grande brincadeira, a igreja lesbiteriana. Por meio de suas canções, acolhe e leva inspiração para tantas meninas e mulheres como ela. Hoje, roda o mundo falando sobre questões sociais, em especial o racismo.

“Eu sinto que o mercado brasileiro não me aceita e tem a intenção de silenciar o que eu digo. O Djonga pode cantar ‘fogo nos racistas, e todo mundo bate palma. Eu, quando lancei uma música falando isso, o Instagram tirou do ar três vezes seguidas o vídeo por discurso de ódio. Se fosse um homem falando as coisas que eu digo seria altamente revolucionário.”

Bia esteve no SXSW (South by Southwest), em Austin, no Texas, onde fez diversas apresentações, em março. Lá, conversou com a Billboard Brasil nesta entrevista exclusiva. Confira trechos.

‘Acho que eu gosto de menina’

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Bia Ferreira só conhecia a comunidade da igreja (Ellen Faria/Divulgação)

“A música desde sempre fez parte da minha vida. E, quando eu me mudei de Minas Gerais para Piracicaba [interior de SP], durante a adolescência, foi a primeira vez que ouvi música que não era da igreja. Era uma cidade grande, meus pais não conseguiam mais controlar. Eu fazia aula de idiomas, de digitação, a gente tinha contato com coisas externas, e eu comecei a andar de skate. Ouvia Charlie Brown Jr., que para mim era a coisa mais revolucionária do rolê. Tinha um radinho de pilha escondido e, na hora de dormir, eu ficava ouvindo música aleatórias. Esse foi o ápice da desobediência para mim. Depois, passei a baixar discografias inteiras na internet. Comecei a ouvir Bezerra da Silva, Leci Brandão, Ana Carolina. E aí foi a primeira vez que eu vi uma sapatão. Lá na roça não tinha sapatão. Eu não fazia ideia do que se tratava. E aí foi quando meu olho abriu, eu cheguei para a minha mãe e falei: ‘Acho que eu gosto de menina’.”

Música para Deus

“Minha mãe me fez confiar nela, veio com aquela conversa: ‘Conta para a mamãe, está tudo bem’. Aí eu falei que era lésbica e foi uma ruptura muito grande na minha família. Não tinha namorada, não tinha nada, eu era novinha. Eu só entendi que era eu era daquele jeito. Aí eu passei por todo o processo de cura gay,. ‘Vamos orar, vamos fazer jejum’. E a primeira música que eu escrevi conscientemente foi nessa época, se chama ‘A Little Pray’. Na letra eu peço a Deus para não ser sapatona. Pensa que a única comunidade que eu conhecia era a da igreja. E quando eu falo ‘sou sapatão’, e Deus para de gostar de mim, pô, a única coisa que eu queria era não ser sapatão. Foi um processo bem traumático, até que eu falei: ‘Se esse Deus não gosta de mim, eu também não vou ficar me esforçando para gostar dele. Então, um beijo, vou embora’. Entrei na faculdade e saí de casa, essa foi a minha escapatória.”

Um corpo preto na sociedade

“Na faculdade eu comecei a entender quem era o meu corpo preto na sociedade. Comecei a entender o processo de escravização e de clareamento da população. Estava no meio do movimento estudantil. Sempre soube que eu sou preta, sempre sofri racismo, mas acho que a consciência social veio daí. E eu queria contar para os meus amigos da rampa de skate o que eu estava aprendendo. E eles não me ouviam. Mas quando eu levava meu violão, sim. Foi quando eu entendi que se eu tocasse violão e falasse aquelas coisas, as pessoas me ouviriam. Comecei a tocar em bar, em festas da faculdade… E a galera pagava, sei lá 300 conto. Às vezes me falavam que não tinham dinheiro e me pagavam com um engradado de cerveja. Não bebo há dez anos, mas já toquei muito por caixa de cerveja.”

Maluca de BR

“Quanto eu tinha meus 20 anos, comecei a rodar o Brasil de carona de caminhão. Virei maluca de BR, fiz mais de 30 mil quilômetros pelo país, rodando meu chapéu. Eu queria conhecer o Brasil e não tinha dinheiro. Quando ficava rouca, fazia malabares, ou outra coisa, mas vivia de arte. Foi a minha maior escola. Eu entrava no caminhão e falava: ‘Eu sou sapatona. Se quiser companhia, eu nem durmo, eu troco a maior ideia. Então, eu ia conversando. Tem um rádio pelo qual os caminhoneiros se comunicam, eu ia fazendo um som dentro do caminhão. Quando parava para comer, vendia meu CD que eu fazia na lan house por R$ 10. Eu nunca sofri assédio de nenhum caminhoneiro, e eu gosto de falar isso, porque é uma classe muito estereotipada. Sempre viajei muito segura. E eu tive experiências incríveis, memórias lindas da estrada. Encontrei no meu caminho pessoas muito legais.”

Viralizou

“Uma vez, fui de carona de caminhão da Chapada Diamantina até Curitiba, para assistir a um show de uma cantora chamada Michele Mara, que ganhou um prêmio no Faustão de melhor imitadora de Aretha Franklin. Cheguei lá, sentei no chão e comecei a rodar meu chapéu, antes de o show começar. Cantei ‘Cota Não É Esmola’, e foi a primeira vez que mostrei em público uma música autoral. Depois do show, fui falar com a Michele, me apresentei, e ela disse que tinha um show no dia seguinte de uma cantora chamada Janine Mathias e que achava que eu devia conhecê-la. Aí fui no show dela e, na cara de pau, pedi se podia fazer uma música. Cantei à capela. No final, ela disse que tinha adorado e falou: ‘Eu tenho um show para fazer amanhã que não tem cachê, mas apareceu um casamento para eu fazer com cachê. Preciso desse dinheiro para pagar minhas contas, você não quer me substituir nesse show sem cachê? Pelo menos você ganha um vídeo. Era o Sofar Sounds [programa internacional que promove shows intimistas]. Eu não era convidada, e hoje o meu show é o mais assistido da América Latina. Viralizou, e as pessoas começaram a me procurar. Foi quando entendi a necessidade de profissionalizar o meu trabalho. Hoje, ‘Cota Não É Esmola’ é leitura obrigatória para o vestibular da UnB [Universidade de Brasília].”

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Bia Ferreira encanta o público quando sobe ao palco (Pedro Barros/Divulgação)

‘Todo show ainda me choca’

“Eu fui criada para ser pastora, como o meu pai. Fui educada e treinada para falar e mexer com o coração das pessoas. E, quando eu entendi que aquele espaço [da religião] não me cabia, comecei a brincar de igreja ‘lesbiteriana’ –que é uma brincadeira mesmo–, a minha comunicação com o público foi essa… Usava as tecnologias que eu tinha para me comunicar. Nesse meu processo de rodar chapéu e viajar, eu fui entendendo: ‘Ah, se eu falar assim a pessoa ri, mas se eu falar assim, ela chora. Se eu fizer assim, ela presta a atenção’. Então, não é uma parada aleatória e também não é um dom que caiu do céu. Eu construo as letras das minhas canções de uma forma que gere identificação. Às vezes, não é a sua história, mas sempre vai ter uma memória afetiva de alguém que se conecte com aquilo. E aí, mudei um pouco a forma de fazer quando eu comecei a me apresentar para pessoas que não falavam português. Como é que eu vou atravessar o coração de uma pessoa que não fala meu idioma? Fazendo arte. Comecei a entender sinais artísticos, fui aprender a falar inglês. Mas é um fenômeno, mesmo.

Todo show ainda me choca. Fico nervosa, sempre acho que não vai ter gente, que as pessoas não vão me entender. E sempre acontece de as pessoas chorarem, elas ficam muito impactadas. Acho que é também pelo propósito, por não fugir do que eu acredito e por não querer fazer nada diferente para me encaixar.

Eu não quero ser igual a todo mundo. Eu não quero mudar a forma do que eu faço arte para caber num mercado que não me aceita. Eu quero que esse mercado entenda a qualidade do que eu estou me propondo a fazer.”

‘Não tem mulheres lésbicas no mainstream’

“Eu sinto que o mercado brasileiro não me aceita. Eu sinto que o mercado brasileiro me ignora. E sinto que o mercado brasileiro tem a intenção de silenciar o que eu digo. Posso fazer um exercício com você: pensa numa cantora negra lésbica brasileira de muito sucesso. Ludmilla, que é a nossa maior representante, é uma pessoa bissexual e não pode ocupar esse lugar de sapatona, porque ela não é. Então, você não tem mulheres lésbicas no mainstream da música brasileira nem mulheres negras, principalmente. Você vai lembrar Leci Brandão, Ellen Oléria, Sandra Sá e Mart’nália. É esse lugar da mulher negra lésbica que não cumpre o fetiche da hipersexualização. Porque quem investe são homens, e isso é um problema também. Os investidores da música no mercado brasileiro são homens, normalmente homens brancos. Eles enxergam o corpo da mulher negra no lugar necessariamente da hipersexualização e, quando aparece uma sapatona que não vai hipersexualizar o corpo dela, não está a fim de mostrar a bunda –e nada contra quem mostra–, não vão investir em você. E aí o que eu falo fere muito. As pessoas têm medo de me contratar por medo de bancar aquilo que eu falo em cima do palco, porque faço questionamentos que geram desconforto.”

‘Se fosse um homem, seria revolucionário’

“Não estou no line up de nenhum festival no Brasil. No ano passado, fiz Primavera na Cidade [evento paralelo ao Primavera Sound], foi incrível, mas foi o primeiro festival em que eu toquei em anos. Mas, também em 2023, eu fiz quatro dos cinco maiores festivais de world music da Europa. Toquei no mesmo palco que Black Eyed Peas. No North Sea Jazz Festival, me apresentei depois da Esperanza Spalding. Tenho um reconhecimento e um respeito muito bonitos fora do Brasil. Dentro, o que eu digo incomoda demais. Se você vai cantar sobre amor, sobre o céu azul, sobre a vida boa e bonita, vamos dançar e rebolar a nossa bunda, tudo bem. Mas se você vai falar sobre coisas um pouquinho mais sérias, não é interessante, porque pessoas que pensam fazem revolução. Então, vamos silenciar. E te faço um outro convite que é pensar: existem vários homens negros falando o que eu estou falando. E eles têm bastante reconhecimento. O Djonga pode cantar ‘fogo nos racistas’, e todo mundo bate palmas. Eu, quando lancei uma música falando isso, o Instagram tirou do ar três vezes seguidas o vídeo por discurso de ódio. Obviamente Mano Brown escreve para caramba, Djonga, pelo amor de Deus, sou fã mesmo! Se fosse qualquer um deles falando as coisas que eu digo seria altamente revolucionário. Mas não cabe uma mulher negra falando esse tipo de coisa num país que ainda mostra Anastácia [mulher escravizada] com uma mordaça na boca.”

Família lésbica

“Não tenho ambição de ser referência para ninguém. Mas eu queria ser a pessoa que eu não vi. Eu queria que as meninas negras lésbicas que querem viver de arte não precisassem escrever uma música pedindo para Deus para elas não serem assim. Eu não conheço mulheres negras, lésbicas, com filhos, com netos. Não é um imaginário possível para mim. Eu quero viver o imaginário que eu queria ter visto, então é mais sobre a minha realização pessoal, sobre eu conseguir ser aquilo que eu queria muito ter visto e que nunca vi.

Quero ter uma família, quero poder casar, quero ser uma cantora bem-sucedida falando abertamente sobre a minha lesbianidade. Acho que existem muitas cantoras que não falam sobre isso pelas portas que se fecham. E entre as que falam [esse assunto] sempre está nas entrelinhas, sempre no lugar de descrever um afeto, mas usar um eu-lírico masculino, porque se encaixa melhor do que falar sobre duas mulheres se amando. Eu quero ser a liberdade que eu queria ver.

Show em NY, disco novo

“Estou trabalhando direto desde o início do ano. Em 14 de janeiro, eu estava no Lincoln Center, em Nova York, fazendo show. Foi a minha primeira apresentação do ano, com ingressos esgotados e parte da programação do Global Fest. Foi incrível. Tem meu último disco, que já vai fazer dois anos, e já já vou lançar outro. Mas é um disco que as pessoas podiam ouvir mais, porque é das coisas mais bonitas que eu já me propus a fazer como arte. O disco se chama ‘Faminta’, é um álbum duplo. A primeira parte fala sobre a fome de afeto e sobre como o afeto é tecnologia de sobrevivência. A segunda parte são 13 canções de rap trazendo uma análise da conjuntura política dos últimos quatro anos de governo e de tudo o que a gente passou, falando sobre a volta do Brasil para o mapa da fome. E também sobre a nossa fome de respeito, a nossa fome de políticas públicas de qualidade e sobre genocídio originário. Agora estou vindo com dois projetos diferentes de álbum: um só de rap, e outro de reggae, todos com canções autorais inéditas. Estou nessa busca para mostrar que é possível fazer arte de qualidade independentemente do gênero musical que a gente se proponha fazer.”

Meu bem viver

“Entendi que nos meus dois últimos discos eu me dispus a falar sobre o problema e nem tanto sobre a solução. Os dois próximos álbuns são sobre autoconhecimento e bem viver. É experimentar esse imaginário, que eu nunca vivi, de qualidade de vida, de prosperidade, de poder pensar como seria se não houvesse racismo. Eu vivo num país que a cada 23 minutos mata um jovem negro. Poder pensar no futuro é revolucionário para mim. Eu já morei na rua, então eu quero poder falar sobre o que eu estou vivendo, inclusive porque meu trabalho é baseado num conceito de Conceição Evaristo que se chama ‘Vivência’. Conceição Evaristo, que é das maiores que a gente tem, fala da ‘escrivência’, que é a gente contar a própria história. Assumir autonomia dessa narrativa é muito importante pra mim. O tempo todo tomo enquadro na rua, eles acham que eu sou homem, mas quero poder falar sobre chegar na minha casa e tocar o piano que eu tenho na sala. Eu quero falar para a galera que se parece comigo que a arte liberta, transforma, que eu consegui chegar a um lugar que eu almejo e que a gente pode sonhar viver. A gente pode ser só quem a gente é, acreditando na verdade que a gente acredita. Quem precisa ter o coração tocado vai ter, e eu acho que é nesse lugar que eu estou agora: de gratidão, de poder usufruir o bem viver.”

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