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Festival de Parintins: a mistura da rivalidade do bem com cultura regional

Festival de Parintins: a mistura da rivalidade do bem com cultura regional

Em 2024, a tradicional festa acontece nos dias 28, 29 e 30 de junho

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São 369 quilômetros que separam Manaus, capital do Amazonas, de Parintins. O município, de 120 mil habitantes, entrou para o mapa cultural do país ao se tornar palco do festival que leva o nome da região. São 57 anos de história, tradição e, acima de tudo, rivalidade. De um lado, o vermelho radiante do Boi Garantido, vencedor de 32 títulos. Do outro, o azul celeste do Boi Caprichoso, que ganhou os outros 25.

As cores características de cada um iluminam a Arena do Bumbódromo durante todo o mês de junho, estampam camisetas e até separam os bairros de Parintins. De um lado, os torcedores de um boi, do contrário, torcedores do outro. O termo “contrário”, inclusive, não é um artifício literário desta reportagem. Quem torce pelo Garantido não fala o nome do Caprichoso. E vice-versa. “É o boi contrário”, disseram todos os entrevistados.

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O início do festival, em 1965, era simples e puramente popular. As alegorias gigantes que dominam a festa hoje em dia não existiam. Eram apenas bumbas-meu-boi desfilando pelas ruas de Parintins. Nas primeiras edições, inclusive, o vencedor era decidido na base do “palmômetro”. Isso mesmo que você está pensando. O lado que recebia mais palmas da plateia era o grande vencedor. O jogo virou a partir dos anos 1970, quando Jair Mendes viajou ao Rio de Janeiro. O pintor (de paredes mesmo) se encantou com os carros alegóricos das escolas de samba e, na volta para casa, decidiu replicá-los no festival. “Ele não trouxe só o desejo de colocar alegorias, mas também identificou que o fator surpresa causado por elas era importante”, conta o jornalista Allan Rodrigues, autor do livro “Boi-bumbá Evolução”. O estudioso, que descreve a festa como uma “ópera a céu aberto”, diz que esse elemento capaz de surpreender o público veio, justamente, com as alegorias que se movimentam —diferentemente do que era feito no Carnaval carioca até então. A princípio, o trabalho repleto de surpresas de Mestre Jair, como já está eternizado, era apenas para aprimorar o Boi Garantido. “A primeira contribuição dele foi transformar a fantasia do boi, que é o personagem central da agremiação, para que se movesse como o animal. E isso influenciou no grandioso espetáculo que temos hoje”, contextualiza Rodrigues. Porque, claro, o “contrário”, Garantido, tratou de replicar a tecnologia. Hoje, as alegorias do Festival de Parintins chegam a 22 metros de altura, o equivalente a um prédio de sete andares.

Além da evolução estética da festa, também mudaram os quesitos para decidir o vitorioso da vez. A salva de palmas deu lugar a uma lista de 21 itens a serem cumpridos por cada uma das agremiações. Em todos eles, a música, aqui chamada de toadas, tornou-se um dos componentes centrais. As primeiras que surgiram tinham um olhar bucólico sobre lendas amazônicas e a própria exaltação ao boi. Também eram usados instrumentos, em sua maioria, de percussão como matracas, surdos e caixas. Nos anos 1980, a influência da música andina, levada pelo compositor Fred Góes, que já foi presidente do Garantido, passou a mudar o ritmo das toadas. Ele foi o responsável por introduzir o charango, uma espécie de violão, às composições. “O charango vem da música andina. Fred ensinou os parintinenses a tocá-lo, e aí esse som passou a fazer parte das toadas de ambos os bois”, explica Rodrigues. Essa troca, inclusive, é a prova de que a rivalidade entre os dois bois tem um limite. “Artisticamente, não existe isso”, garante.

Outro elemento que marcou o fortalecimento do aspecto musical do festival foram as chamadas “toadas de desafio”. Tanto o Garantido como o Caprichoso nasceram de promessas que seus mestres criadores fizeram a entidades religiosas. Para cumpri-las, eles saem às ruas de Parintins todo 24 de junho. Em determinado momento do cortejo, encontraram – -se entre becos e vielas da cidade e aí entra o tal desafio. “A primeira disputa acontecia na forma de versos, algo parecido com os repentes ou com as batalhas de rimas do rap”, explica Rodrigues.

Não demorou para que os bois passassem a gravar álbuns para divulgar as toadas que concorreriam a cada ano. Os álbuns eram reproduzidos em fitas cassete, que, por sua vez, eram tocadas nas quadras onde os torcedores de cada boi se reuniam – conhecidas como currais. Daí para a ponta da língua era um pulo. Tudo para chegar ao Bumbódromo com as músicas no coração da torcida.

Para reunir essas toadas, a organização do evento abre um edital para que qualquer pessoa –do ramo da música ou não, torcedora do Caprichoso ou do Garantido, submeta sua composição. A canção, claro, precisa estar dentro do tema, do enredo escolhido pelos bois para o desfile da vez. Anualmente, cada agremiação recebe mais de cem faixas. Apenas 22 são escolhidas no total.

Esses enredos, divulgados com antecedência, também são usados para confundir o contrário. Sabe aquela lista de 21 requisitos? Nela não consta que os bois são obrigados a se ater ao tema sob o risco de perder pontos, como acontece com os enredos das escolas de samba do Carnaval do Rio e de São Paulo. Tudo porque a festa se estende ao longo de três dias, o que permite a cada agremiação desmembrar o tema em três atos distintos. E é claro que isso vira uma carta na manga tanto de um lado, quanto do outro. “O contrário nunca sabe exatamente o que estamos fazendo”, conta Neil Armstrong, produtor artístico do Caprichoso. “A composição do álbum de cada boi acontece de forma estratégica, pensada nos itens que garantem a vitória. Mas não tem como fazer um disco só com elas, óbvio. Precisamos das faixas para incentivar o torcedor, para reforçar que o Caprichoso é melhor do que o contrário, essas coisas. A toada precisa ter uma boa melodia e uma verbalização.”

As toadas são pensadas para momentos específicos da festa. Há as que cantam lendas indígenas, questões ambientais, sociais e também as chamadas toadas de galera. São verdadeiros hinos de exaltação ao boi, compostos de maneira que grudam como chiclete, e o público canta a plenos pulmões. Vez ou outra, as toadas de galera extrapolam as paredes do Bumbódromo de Parintins e ganham o Brasil (e até o mundo), como foi o caso de “Vermelho”, de 1996, e que mereceu uma popular regravação de Fafá de Belém.

Para Adriano Aguiar, essas diferenças também impactam a forma de escrever. Ele é um dos compositores do Caprichoso desde 2007 e já assinou 80 faixas. “As toadas temáticas, que falam sobre os rituais e as figuras típicas, precisam de um apoio literário, de mais pesquisa. Nas de galera, retratamos uma experiência mais empírica, de torcedor mesmo”, explica.

Na arena, as músicas são apresentadas pelos levantadores de toadas. São os responsáveis por interpretar as canções feitas para aquele ano. No Garantido, há a figura de Márcia Siqueira. Participante da festa há 24 anos, a cantora é a primeira mulher levantadora de toadas em toda a história do Festival de Parintins. “Não é fácil a gente conseguir galgar esses degraus. Para nós, existem barreiras. Essa conquista de espaço e o protagonismo da mulher na arena aconteceram da mesma forma.” E ela exalta o papel de Fafá de Belém e o sucesso de “Vermelho” para isso se tornar possível. “Ela pavimentou o caminho para nós.”

Márcia divide o espaço no Bumbódromo com Israel Paulain, apresentador do Garantido. Ele é a voz que comanda a passagem do boi pela arena. É quem dá o tom para a chegada das alegorias, da porta-estandarte e da cunhã-poranga –papel que cabe a Isabelle Nogueira, que ajudou a espalhar a palavra do festival no “BBB 24”. Israel conta que, quando nasceu, a primeira roupa que vestiu foi vermelha, como se o seu destino fosse o boi Garantido. “Eu sou muito espiritualista. O destino já traçou o meu caminho”, brincou. “O festival é um teatro a céu aberto, e eu sou o anfitrião do espetáculo. Minha função é apresentar esse show em duas horas e meia, como um mestre de cerimônias. Tudo o que acontece lá dentro eu destaco, exalto, narro as histórias para os jurados e para a plateia.”

Em termos de composição, a presença feminina também é escassa. Assim como a de indígenas. Apesar de existirem toadas que falam sobre tradições, lendas e figuras desses povos, são os brancos que assinam a maioria delas. A história está mudando a pequenos passos, iniciados por Thais Kokama, do Caprichoso. “O boi tem um vínculo muito forte com a luta indígena. O festival acontece por causa de nós, os povos originários. Quando eu conheci o Caprichoso, eu percebi essa proximidade. Me apaixonei, mas vi a necessidade de termos voz e vez naquele festival.”

Foi quando ela decidiu se inscrever no edital para as toadas, e seu trabalho foi selecionado. É dela a faixa “Vidas Indígenas Importam”, que fez parte do álbum de 2023 do boi azul. Na letra, ela exalta a própria existência e usa o espaço para ressaltar seu ativismo. “Sou o clamor da natureza/ Sou a força/ Que ecoa a grandeza de um povo/ Que não se cansa de lutar.” Em 2024, ela foi responsável por compor três toadas para o festival.

Apesar de defenderem bois adversários, Thais e Márcia concordam que o espaço da mulher dentro do Festival de Parintins ainda precisa ser expandido, principalmente nos papéis de compositora e levantadora. “Para tudo tem uma primeira vez”, torce Thais. “Quando a gente vê alguém próximo a nós levando um prêmio de ativismo, a gente se sente representado. O mesmo vale para a chegada de outras mulheres ao festival. Sinto que preciso chegar lá para inspirar outras pessoas.”

Márcia já vê esse lugar sendo reivindicado por mulheres. “Nós estamos tentando aproveitar as oportunidades que aparecem.” Neil faz coro. Apesar de acreditar que não exista discriminação dentro do festival, ele sente que falta incentivo. “A gente já percebe um movimento. Há mulheres fazendo backing vocal dentro da arena, mas é raro vê-las, por exemplo, tocando instrumentos nas bandas. Falta esse despertar.”

Mas não se engane. Existem papéis dentro da dinâmica do festival que são desempenhados exclusivamente por mulheres, como é o caso da cunhã-poranga Isabelle Nogueira. Ela realiza a função de uma espécie de rainha de bateria bovina. Do lado do Caprichoso, esse papel é interpretado por Marciele Albuquerque desde 2017. O momento da entrada delas no Bumbódromo também é acompanhado por uma toada, feita especialmente para exaltar a beleza e a força das representantes femininas.

“Eu me aproximei do Caprichoso quando comecei a dançar. E acho que o sonho de toda dançarina daqui é se tornar cunhã. Eu achava que seria algo muito distante, mas acabei conseguindo realizar esse sonho”, conta Marciele. Para ela, seu papel na arena é comandar a festa através da música e da dança. “A minha toada me instiga, me faz querer me entregar para a apresentação.” Confinada no reality show da TV Globo, Isabelle mostrou para o Brasil inteiro a coreografia que apresenta no Bumbódromo. Além disso, sua toada já foi tocada nas famosas festas da casa mais vigiada do Brasil. A organização do Garantido espera que, terminada a edição do programa, Isabelle volte ao posto de cunhã-poranga –nem que seja pela última vez.

Em 2024, o Festival de Parintins acontece nos dias 28, 29 e 30 de junho. O boi Garantido vai para a arena com o tema “Segredos do Coração”, enquanto o Caprichoso defende o enredo “Cultura, o Triunfo do Povo”. Os ingressos para todos os dias já estão esgotados, e a expectativa da organização do festival é receber mais de 100 mil pessoas em Parintins.

Apesar da rivalidade, todos os entrevistados concordam que a presença da cunhã do Garantido no programa da Globo, bem como a transmissão do festival pela emissora, será um motor para alavancar ainda mais a fama do festival pelo restante do Brasil.

 

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