Urias estrela capa Over 30 da Billboard Brasil; leia a entrevista
Over 30 celebra a resistência e o sucesso de pessoas trans e travestis


“Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes/ Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência é roubar o pouco de bom que vivi”, canta Majur em “AmarElo”, hit com Emicida e Pabllo Vittar. É um recado duro e incômodo, que provoca e nos faz repensar muita coisa.
Estamos mais uma vez em janeiro, mês da visibilidade de pessoas trans e travestis. Os dados mais recentes mostram que a violência contra esse grupo não só permanece como aumentou. E o que é mais cruel: a maior parte dos 145 assassinatos de pessoas trans em 2023 foram contra pessoas que tinham até 29 anos.
Pelo segundo ano consecutivo, a Billboard Brasil lança o projeto Over 30, com as histórias de 30 pessoas trans com mais de 30 anos. Um convite para irmos além da sobrevivência e refletirmos sobre a vivência de personalidades que são destaque nas suas áreas por serem excelentes no que fazem. E que são, também, pessoas trans. São nomes como o da nossa personagem de capa: Urias – adquira a 13ª edição da Billboard Brasil aqui.
A cantora de exatos 30 anos é uma mulher de sonhos, muitos deles já realizados, como o sucesso da turnê “HER Mind” e um show no palco do Rock in Rio. Nesta entrevista, Urias fala sobre permitir se desafiar ainda mais e mirar mais longe, seja almejando um Grammy, seja querendo cantar no espaço. Ou, então, em mirar mais perto, nos sonhos terrenos de “uma cidadã normal”, que quer ter sua casa, seu carro e formar uma família. E que quer, também, não se ver mais sozinha nos lugares.
Furando essa bolha, a Billboard Brasil recrutou uma equipe de cinco consultores, todos pessoas trans que fizeram a curadoria e a seleção dos 30 nomes homenageados pela edição. Angel Natan, Kyem Ferreiro, Leonardo Peçanha, Neon Cunha e Sara Wagner York foram os responsáveis pela tarefa. Eu, a autora desta reportagem, sou uma mulher trans.
A lista Over 30 é uma relação que inclui mulheres trans, travestis, transmasculinos e pessoas não binárias. Uma lista diversa, com multiplicidade também de etnias e origens regionais, que permite abranger a pluralidade que há entre pessoas trans e travestis. Navegando pelas próximas páginas, você verá mais do que histórias de sobrevivência. Você lerá sobre vivências de pessoas de diversas frentes de atuação. Pessoas que são artistas, como Urias, pessoas que são ativistas e influenciadoras digitais, mas também nomes relevantes da academia e de áreas como Direito, Psicologia e Medicina.

A mente de Urias
Quem ouviu o álbum “HER Mind” não tem dúvidas: a mente de Urias vai longe. A cantora explode barreiras de estilos musicais, temas e idiomas, e faz um convite para uma viagem pela sua mente. Uma ideia que, ela conta, surgiu após contato com um estudo na Bélgica que identificou particularidades no cérebro de crianças trans.
“Isso me deu um clique de querer me naturalizar não só no social, mas também no biológico. Ver uma pesquisa, igual a gente vê nos livros de biologia sobre o corpo humano, me deu uma vontade de querer me naturalizar. Meu corpo faz parte da natureza. Ser travesti é natural, a natureza mandou a gente assim”, comenta, entre sorrisos.
Ao longo das 13 faixas, Urias passeia por diferentes sonoridades, em uma mistura tão organizada como um ótimo álbum pop quanto caótica, como a mente de qualquer um de nós. Ela expõe, provoca, desafia e mostra que sente intensamente. Na entrevista à Billboard Brasil, apropriada do título de diva pop, a cantora diz que nada é por acaso. “Quando eu estou nesse processo criativo, eu sei que conversa eu quero abrir, o que eu quero provocar. Eu sou filha de Lady Gaga”, diz.
A cantora se envolve com todo o processo. Na parte visual, chega a desenhar croquis com o que visualizou para cada projeto de modo que, ela espera, seja impossível que alguém não a entenda. E também coloca seus pitacos nas parcerias que faz, algo que tem sido mais comum nos últimos lançamentos. “Se eu participo, eu quero um pouco do meu trabalho dissolvido naquele projeto”, comenta, reconhecendo que isso também a levou a ser mais aberta ao número cada vez maior de profissionais que fazem parte da sua carreira.

Ao infinito e além
A retrospectiva das músicas mais ouvidas por Urias no ano poderia fazer você achar que tem mais de uma pessoa usando uma única conta. A amiga da cantora Pabllo Vittar é fã declarada de Alcione, dá plays na eterna Gal Costa e mergulhou no ano passado nas obras da rapper norte-americana Doechii e das cantoras Normani e Tinashe.
Esse mix de referências habita a artista que está na produção de seu novo álbum, que ainda não tem nome, mas que espera lançar ainda no primeiro semestre deste ano. De volta à criação, Urias confessa uma expectativa para saber como os fãs receberão as suas novas músicas. Sem dar tantos spoilers, a cantora adianta o que podemos esperar: “Uma grande mistura. Um jeitinho mais meu de fazer música brasileira”. Convites para parcerias foram feitos e aceitos.
Urias está criando, mas não imagine que esteja quieta e reclusa. Ela cria no rolê, na rua, nos shows, nas conversas. Se você encontrá-la por aí, saiba que está curtindo, mas que a cabeça não para. “Gosto de viver momentos. Não gosto de ficar trancada. Quando sento para escrever, sento e escrevo. Mas sou de sair, de viver. Teve uma época em que eu estava indo em vários shows, como no da Mariah Carey. Fico admirando a produção, o palco, tiro foto do que gosto. Não deixo de ser quem eu sou nesses momentos de lazer”, conta.
Urias brincou que quer cantar no espaço. Enquanto isso não é possível, o novo álbum pode ser mais um passo para algo que ela abertamente mira: a carreira internacional. Já começou, com uma série de apresentações lá fora. O fato de ter sido professora de inglês e cantar em várias línguas ajuda. “Eu canto minhas músicas em português, mas canto outras que as pessoas lá fora entendem. É uma porta aberta”, diz.

Os sonhos de Urias
Ao longo dos 50 minutos da nossa conversa, um assunto foi recorrente, por demanda das duas: naturalidade. A cantora sabe que representa muitas mulheres trans e travestis, e se orgulha disso, mas aborda a necessidade de poder falar apenas sobre a sua vida e a sua arte quando quer. “A gente quer a naturalização dos nossos corpos e apenas isso, por si só, já causa desconforto”, comenta. “Tudo na sociedade é montado para a gente não estar nesse lugar, do natural.”
Dentro dos planos dessa naturalidade, um que entrou recentemente na vida de Urias: a possibilidade de ser mãe. “Antes não era nem uma possibilidade. Foi algo que depois de ver que eu poderia, eu passei a pensar, daqui a cinco anos, talvez, um tempo indefinido. Você passa a ter uma mente apta a refletir a respeito”, diz.
A espiritualidade, outra vertente frequentemente negada às pessoas trans, também é algo presente na vida de Urias. Apesar de o nome dela (de família) retratar um personagem bíblico, Urias é do candomblé, o que tem sido para ela uma descoberta e um vetor de conexão com suas origens.
Sobre seu papel no ativismo, Urias avalia que “a representatividade tem essa parte boa, que é a de estimular outras pessoas de que é possível”. Por outro lado, ela acende o alerta de que “muitas vezes escolhem só uma pessoa desse recorte e acham que o desafio está cumprido”. “A cisgeneridade está sempre lançando novidades. Para nós não, querem resumir a transexualidade a partir de uma única pessoa”, diz.
Ela fala com amor da “geração que mostrou que a gente existe”, com Liniker, Linn da Quebrada, Majur e Ventura Profana, entre outras. “As pessoas achavam que a gente não existia. Ou, então, que a gente só existia em um determinado horário e um determinado lugar. Agora, não. Fizemos de um jeito que não dá para negar que a gente existe. Essa é a grande virada de chave.”
