Matuê é um fenômeno inalcançável, hoje, na música popular urbana brasileira.
Cria de Fortaleza (a “4tal” presente nas letras desde a estreia), ele estabeleceu novos parâmetros no trap do país após o disco de estreia (“Máquina do Tempo”, de 2020) e enfileirou 11 das 12 faixas do novo álbum, “333”, no Billboard Hot 100, a parada das mais ouvidas do Brasil. Mas foi nessa transição de um álbum para o outro que o trapper perdeu o tesão pelo som e a bad bateu.
“Ô, mano”, começa ele, de fala sempre mansa, pausada e, por vezes, dosada por um sorriso tímido, mas presente. “Eu sempre fui um cara muito motivado e bem abençoado, talentoso. Mas, em dado momento, eu sinto que isso se voltou contra mim.” Depois de 2020, ele viu a popularidade explodir e, para desespero do próprio ego, enfileirou, como mago do trap, hits soltos como “Vampiro” e, principalmente, “Quer Voar”, feitos em gozadas abruptas no estúdio.
A mente, então, viciou no método: sabia que entraria no estúdio e sairia satisfeito com mais uma daquelas para fazer geral chapar. Mas a dopamina cobra. “Eu tinha muita dificuldade de ser um cara consistente. Me lembro de falar para mim mesmo: ‘Ah, todo dia eu faço uma coisa diferente!’. Eu achava isso o máximo”, conta, retratando esse momento em que foi “bom em tudo, mas mestre de nada”.
Agora, Matuê está forte –e a observação é literal. Apegou-se às barras de ferro, adotou novo corpo. Faz parte de um tipo de maconheiro mais comum por aí do que pensa o zé povinho: acorda cedo, reza, alimenta-se bem, malha, entra no estúdio. Regueiro desde moleque, ele finalmente enraizou, aterrou. Não é um trapstar às avessas, mas é um novo trapstar.
“A família aqui de Fortaleza já estava marcando comemoração para quando eu chegasse. Cheguei aqui e… Fui dormir cedo. No primeiro dia, eu estava treinando no estúdio, fazendo reuniões, como se fosse um dia qualquer”, desenha o prata-da-casa, que precisou criar seu próprio festival na cidade natal para convencer os produtores cearenses de que havia, sim, espaço para o trap ao lado do forró.
Foi a mais de 2.000 quilômetros dali que “333” estreou recém-lançado em uma tarde ensolarada de Rock in Rio. Quando Samuel Batista (amigo, guitarrista e coprodutor do álbum) fez a contagem, Tuê se viu abraçado por um festival lotado, cantando e festejando o triste ato de abertura, “Crack com Mussilon” –a molecada pulando contrastava com os primeiros momentos do disco, em que o trap é usado para conquistar fãs do gênero, enquanto narra a saga de um triste eu-lírico impotente, derrotado pelo ego.
Fez-se ali um rito de passagem. “O disco carrega muito mais elementos ao vivo, instrumentos. Deixamos um pouco mais cru”, explica o cantor, que subiu de branco e azul celeste ao palco, acompanhado de um sol e de uma pirâmide que remetiam à trindade espírito-corpo-mente da qual o novo rapper é agora devoto.
Ele toca no festival Rock the Mountain 2024 no dia 16 de novembro.
A disciplina fez os caminhos de “333” mais abertos. “Tinha dias no estúdio em que a gente precisava destravar alguma coisa, e sabia que ia vir. De fato, vinha”, conta.
Confiante no caminho e no processo como destino, “333” impõe-se indie-rock e, às vezes, até acid-jazz, conquistando ouvintes menos acostumados com o tal do Tuê.
“Esses comentários me surpreenderam positivamente. Não que seja sempre mil maravilhas lidar com críticas, mas acho que consegui servir como um ponto de transição para o futuro e inspirar outros músicos e a cena toda a mudar um pouco, sem abandonar as raízes e sem fazer algo que ninguém entenda”, desenrola. “Durante as gravações, via que nem todos possuíam tanto essa fé na tentativa quanto eu”, define. O processo e a autoestima do autor mostraram aos parceiros Samuel e Brandão (rapper e outro coprodutor do álbum) que, se o som não era bem o “top 50” da moda, tinha um destino maior: o processo.
“Tinha dia em que o objetivo era só samplear”, conta. Em uma dessas sessões, ele debulhou o YouTube em busca de uma do Djavan. Se encantou com uma versão ao vivo do hit “Oceano”, de 1989, gravada durante a turnê “Rua dos Amores”, de 2012. “De repente, ele começa a fazer uma série de melismas com a voz”, explica. Pensou em tentar autorização para usar a música. “Fiquei sabendo que ele gosta de tudo detalhadinho: nome da música, explicação da letra. Aí eu pensei fu…”, se diverte.
Depois de arregimentar palavras mais sóbrias e jurídicas, Tuê viu o pedido ser aceito, e “Crack com Muçilon” ganhava a poesia na qual o eu-lírico sofre em um deserto da solidão e implora pelo oceano do amor. Exatamente o que o requerente enfrentou entre 2022 e 2024. “[Quando recebemos a notícia] Foi uma gritaria e um dos dias mais felizes da minha vida”, comemora aliviado, sabido de que, quando a onda bate, é preciso crescer com ela.
Esta reportagem matéria foi originalmente publicada na edição #11 da revista Billboard Brasil, cujas capas são estampada por Caetano Veloso e Maria Bethânia, Mariah Carey e Xamã. Saiba mais sobre esta edição.