Um diálogo com Ventura Profana sobre ser pastora, rebanho, Exu, corpo dissidente
'Todo Cuidado é Pouco' é tentativa de entender os prazeres de se estar vivíssima
Ventura Profana precisa de uma pergunta para responder outras que ainda nem foram enunciadas pelo entrevistador. Ela tem muita história e tudo começou na boleia de um caminhão aos oito anos, partindo de Camaçari, . Seu pai achou que o destino seria a casa da avó, no norte do Espírito Santo, mas aquela baby Ventura tava já era tomando gosto pela paisagem transitória das estradas.
Ela tem raízes em Catu —uma das bandeiras mais hipnotizantes da geografia mundial; linda, diga-se. Daqui a alguns anos, é possível que algum boato catuense dê conta de que foi Profana a responsável pela consagrada. Não seria um engano impossível de estar na obra de Ventura —nascida em Salvador, em 1993. Sua trajetória expositiva é dedicada à libertação: das travas, principalmente —o que, por si só, já nos liberta como um todo. E, então, de repente, ela quer um helicóptero para filmar um take aéreo por cima do Cristo Redentor —e ela consegue, e filma e, em “A Maior Obra de Saneamento do Mundo”, ela retira a imagem imaculada-francesa da topografia carioca-brasileira-católica. Sua obra audiovisual calca-se em uma “Teologia da Transmutação”.
“Como toda teologia cristã, ela está extremamente vinculada a uma luta pela libertação dos oprimidos, por justiça social, política, econômica”, ela diz em conversa de 2024 gravada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Masp, onde expôs quatro vídeos inéditos —um deles aquele que capava o Morro do Corcovado, mas todos também sobre uma estrutura imposta a corpos dissidentes.
Ventura é pastora forjada na Igreja Batista e, agora, uma abiã no Candomblé. “Exu sempre esteve comigo”, ela diz. E é Exu nela o anseio por liberdade e também o provocador de uma dúvida que ela tem consigo: ela é pastora, mas admite que um rebanho deve não ter um pastor. Ou melhor, nas palavras dela, “o pastor precisa morrer. E, por um tempo, fiquei pensando nisso. O rebanho precisa matar o pastor para poder ser livre. É o pastor que, de certa forma, elabora o cerco, reforça os limites”.
O diálogo, na íntegra, segue abaixo —e você também pode escutar partes da entrevista —e músicas de “Todo Cuidado É Pouco” juntas com outras escolhidas pelo repórter e pela entrevistada.
Uma hora e meia de papo com Ventura Profana
Parte um: “Não vou morrer” x a responsabilidade com o prazer de estar viva
Que alegria falar contigo, Ventura. Você tá bem?
Ventura Profana: Eu tô bem, eu tô ótima, obrigada. E você?
Tô ótimo também. Um prazer falar contigo. Como é que tem sido desde o lançamento? Como tá o seu coração nesse momento? Como é ver esse trabalho na rua?
Olha, tá sendo engraçado porque a gente lançou e eu já engatei num processo de cuidado espiritual logo em seguida. Então eu sinto que isso acaba reforçando um pouco da ideia do que o próprio trabalho já sugere, enfim.
Como é esse cuidado espiritual?
Eu tô uma abiã no Candomblé. Isso quer dizer que sou alguém que está para nascer ainda, ou seja, é o primeiro estágio na hierarquia da religião. A gente trabalha nas funções de cuidado dos nossos irmãos. A família é coletiva, trabalha pela saúde espiritual da comunidade. Acabei de sair da roça para falar contigo.
Esse projeto foi gestado por muitos anos. É o resultado de muitos aprendizados, assimilados ao longo de uma caminhada de três anos. Desde o começo, pensava muito nesse momento, e quando ele chegou, minha preocupação era conseguir celebrar com dignidade, mas também lidar com o cansaço. Porque é um parto, sabe? Dar à luz tem dor, tem o cansaço, mas também tem alegria, tem um laço que é para a vida toda. Quando penso em arte, sinto que a gente cria para brincar com a eternidade das coisas. A grande contradição é a gente habitar uma indústria tão acelerada, tão descartável, tão desesperada. Mas, ao mesmo tempo, estamos fazendo músicas que, em 10 anos, podem permanecer frescas, atuais.
O cuidado é um tema eterno. A busca por paz, plenitude, uma vida melhor… tudo isso é constante. E o disco é sobre isso.
Tem algo no disco que indica uma outra Ventura daquela que vi catártica em Recife.
No “Traquejos”, meu primeiro EP [lançado em 2020], eu tinha o desafio de se firmar na vida. E, aí, obviamente, expondo uma realidade que persegue pessoas estranhas, que violenta pessoas negras. Era eu falando assim “Olha, eu sei que há um plano, eu sei que eu vivo num contexto de perseguição, há um plano orquestrado contra a minha vida. E EU NÃO VOU MORRER.”. Esse trabalho, ele é direcionado não mais pelo desejo ou pela recusa a essa morte brutal da colonialidade; mas a escolha de como que se vive.
E não só a escolha de viver. Mas a constatação de que a vida é uma possibilidade, também, quais são as responsabilidades que vêm junto com esse processo .Ou seja, “beleza, não vou morrer. Como eu vivo agora? O que faço para viver melhor?”.
Parte dois: a viagem de caminhão aos oito anos e a estrada como paisagem perfeita de transição
O disco transita do denso à tranquilidade. Não quero dizer que a tranquilidade não é densa. Mas, na metade, já estamos ali num reggae solto, leve. Eu estive em novembro, em Recife, em um show seu. Absurdo. Todas as pessoas em transe absoluto, inclusive você no palco. O som dando problema, você louvando, pulando, pedindo que lhe deixassem em paz. De lá pra cá, como foi esse caminho?
De lá pra cá eu quase não estive em casa. Fiz uma viagem de 30 horas na véspera do lançamento. No caminho, gravei um story dizendo “Nunca mais canto sobre a estrada”. Porque estar em trânsito é parte desse trabalho.
Quando eu tinha 8 anos, meu pai me botou num caminhão pra ir sozinha para a casa da minha avó no norte do Espírito Santo.
Que!
Então, eu saí de Camaçari, aqui na Bahia pra São Mateus. E eu tava lá agora e eu fiz exatamente o caminho oposto. Eu vim de São Mateus para Salvador.
E você tem memórias vivas disso na sua cabeça, dessa carona?
Sempre tive essa memória. Por isso, o caminhão aparece muito nesse álbum. Ele aparece em “Keep Going Girl”, por exemplo. Essa memória foi muito fundamental, mas chegou um ponto da vida que eu comecei a duvidar um pouco dessa lembrança. Eu achava tão absurda que pensei que eu talvez estivesse inventando um pouco. Perguntei para o meu pai, na casa dele: “Pai, o senhor realmente me colocou no caminhão para viajar para minha avó quando eu tinha tal idade?”. Aí, ele: “Aham”, na maior naturalidade.
Ele falou que o mais engraçado tinha sido a resposta do caminhoneiro quando ele perguntou se eu tinha me comportado —eu não tinha esse dado, eu nunca tinha escutado meu pai me dar esse feedback. “Minha filha deu muito problema?”, ele perguntou. O caminhoneiro respondeu: “Não. A única coisa é que sua filha é um sabiá. Foi cantando do começo ao fim da viagem”.
Quando eu ouvi isso, fiquei tão emocionada. Porque eu acho que isso foi a confirmação de que eu estava lá, de que era realmente eu. Eu lembro do rádio e de ouvir muito Mariah Carey, Whitney. Saxofones. Kenny G, Toni Braxton. Era essa a energia da viagem.
Eu acho que é por isso que eu canto “Solta a porra do meu saxofone!” lá em “Resplandescentes”.
Então, de lá pra cá, a estrada tem sido uma constante. Eu fui ao Polo Norte e voltei pra Salvador com uma mala de frio, então…
Polo norte? O “polo norte” mesmo?
Fui montar uma instalação em Bergen [Noruega], a cidade mais chuvosa da Europa em janeiro. Era uma instalação que falava muito sobre o mar. Enfim, era um altar. Minha mala foi extraviada, até hoje não voltou. Meu trabalho foi junto. E eu precisei me virar ali na Noruega e aprender a trabalhar com o que eu tinha.
Gente.
Então, tem uma coisa da peregrina, essa figura cigana, nômade, que tá em busca de si, da sua melhor versão. Que caminha pelo seu próprio corpo, tendo… quer dizer, o mapa é o corpo. Porque precisa se conhecer melhor. Porque precisa aprender a se amar.
Então, esses são os meus desafios enquanto uma pessoa. Não enquanto uma pastora. Não enquanto uma instituição. Não enquanto… Eu sinto que as músicas desse álbum trataram de acessar ou são fruto dos meus próprios incômodos, das minhas próprias inseguranças, dos meus próprios medos. Eu precisava ouvir o que é cantado.
Então eu não tive tanto desejo de falar pro outro ou de oferecer alimento ou cura pros outros. Porque eu precisava ser curada. Eu precisava ser alimentada. Eu precisava aprender a falar sobre amor. Porque por muito tempo eu só pensava em falar sobre guerra. E é por isso que lá em “Me Deixa em Paz” eu falo: “Não só pra guerra, Eu vivo também pra sentir prazer.”
São lembretes. São formas de me reeducar.
E a estrada vai te mostrando diferentes versões, assim. Você vai sendo moldada, porque as geografias vão te provocando respostas rápidas. Isso pode ser ótimo no processo de autodescoberta ou de autorreconhecimento, mas isso também confunde. E, aí, acho que é a espiritualidade que vai mediando essa dinâmica.
Mas. de fato, eu fico feliz de saber que você sentiu essa tranquilidade. Porque eu acho chocante o que acontece nos shows.
Parte três: as contradições de uma pastora
E esse novo show surge numa igreja.
Na Barroquinha [Espaço Cultural da Barroquinha], que é o lugar onde o primeiro terreiro de Candomblé existiu. É uma igreja, e atrás, ali no terreno, se organizou o primeiro terreiro de Candomblé, o que eu acho que tem a ver com a própria contradição da minha fé e do que eu sou. Eu sempre pensei e sempre defendi muito a importância de ser igreja. De disputar o espaço de formação e de desenvolvimento de uma igreja. Eu acho o modelo de igreja importante. É importante disputar isso.
Mas eu também sempre pensei na igreja como uma camuflagem. Como uma casca. Como um modelo que não necessariamente é o miolo, mas é a… a casca. E quando eu falo que é a casca ou que é uma camuflagem, eu não estou desmerecendo. Eu não estou subestimando. Porque na casca de uma fruta o que não falta é informação nutricional, assim. Tem muita riqueza nutricional nessa casca.
Mas porque sempre fez sentido que dentro, que o miolo fosse uma roda. Fosse um… um barracão, assim. Como um lugar onde a gira pudesse acontecer. E inclusive porque os principais eventos cristãos, históricos — como Pentecostes — são eventos marcados pela incorporação. São eventos marcados pelo relacionamento com a alma. Com a Santa Alma de Jesus, que já tinha desencarnado.
Então, no meio de todas essas contradições, eu me encontro. E a gente lança esse álbum nesse terreno, nesse território super sagrado —que eu acho que consagra essa pesquisa.
Que bom que você tava lá em Recife [o repórter acompanhou a perfomance da artista no Coquetel Molotov].
Tava. Eu fiquei muito impressionado, assim. Eu nunca tinha te visto ao vivo. Eu sempre escutei por áudio, né? Nunca tinha tido a experiência de te ver ao vivo. E esse dia especialmente… o festival tinha uma curadoria excelente. E te ver assim foi um troço… porque me levou para muitos lugares. A tua própria presença no palco como pregadora me tocou muito.
Isso tem a ver com a minha pergunta… Ser pastora, líder desse rebanho, servir como um certo farol ecumênico e tal.
Considerando que estamos falando de transição, de uma estrada que tá sempre sem esse final, dessa busca que nem sempre tem um mapa tão certo quanto é, de fato, navegar por uma rodovia em que você sabe onde termina, você sabe onde começa. Essa estrada mais metafórica que a gente tá falando muitas vezes tem um GPS meio quebrado, meio indefinido, né?
Como foi pra você começar a se dizer pastora? E a reboque disso, começar a liderar ou servir de farol pra outras pessoas? Como foi esse impacto pra você, sendo que você tá me dizendo que ao mesmo tempo nessa autoafirmação, nesse autorreconhecimento, tem também um grande trabalho de desconstrução de si própria — e talvez não querer ser essa líder, não querer ser esse farol. Como é que é?
Muito obrigada por essa pergunta. Eu acho que essa é a pergunta da minha vida. E essa pergunta tem sido muito recorrente.
Em Exu em Mim, eu tive muita dificuldade de aceitar essa faixa no álbum. Eu acho que uma grande parcela vinha pela minha confissão de ser um rebanho sem pastor. Quando eu falo “no deserto batizada, sou um rebanho sem pastor”, pra mim era o conflito de ser uma pastora que admitia ser um rebanho sem pastor.
Mexeu muito comigo ter chegado nesse lugar. Eu resisti muito em ter essa faixa no álbum até o momento em que eu entendi e abracei essa contradição.
Eu comecei a entender que eu havia sido direcionada pela minha família, pelas mulheres da minha família, para ser uma pastora. Quando percebi que eu não tinha um corpo ou uma formação ou… eu não era desenhada necessariamente para ser artista.
Quando eu entendi o mercado de arte contemporânea, quem tem acesso, quem tem condições, canais, veículos, para viver de arte de uma forma confortável. Quando fui nas feiras de arte, eu entendi que eu performava, mas não era remunerada. Ao mesmo tempo que os trabalhos estavam sendo vendidos por milhões de reais.
Isso me fez chegar à conclusão de que eu não tinha um corpo compatível com o padrão de um artista. Eu pensei: “O mundo não tá desenhado de uma forma que eu posso ser artista. O que é que eu posso ser?”
Fui estudar a minha história de forma muito rápida e pensei: “Bem, ninguém vai poder deslegitimar a minha história, o meu preparo, pra ser pastora. Desde criança, minha avó, minha mãe, a minha congregação, minha família me instrui pra isso.”
Fui um pouco ingênua, porque veja, eu sou constantemente deslegitimada enquanto pastora. Mas, naquele momento — meados de 2017, 2018 — eu entendi que eu tinha uma bagagem que me preparava pra assumir uma responsabilidade em relação às pessoas que eu amava.
Era uma comunidade que de alguma forma tinha me acolhido. E que era uma comunidade majoritariamente formada por travestis. Travestis socializadas. Esse trabalho foi me moldando de maneira que muita coisa foi sendo cortada.
A primeira música que eu compus foi Eu Não Vou Morrer. E nessa época, era só um mantra. Não tinha ainda o manifesto. Ela era um mantra:
“Eu não vou morrer viva em pleno mar morto.”
E eu tinha passado por algumas situações de violência. E eu ouvi de uma amiga que se eu morresse naquele momento eu era burra. Porque eu ainda não era ninguém. Ninguém sabia quem eu era. Eu não tinha feito nada no mundo.
Porque eu cresci num mundo em que a ideia de ser um mártir… tinha valor. Quase uma sedução em torno disso. E por muito tempo eu acreditei nisso. Até que me vi com a cara toda quebrada. E essa minha amiga falou:
“Se você morrer, você é burra. Você não ajuda ninguém morta.”
Quando eu entendi isso, eu falei: “Nossa, de fato. Eu preciso aprender a viver. Eu preciso estar viva pra cumprir uma missão. Pra ser relevante. Pra ser útil.”
Parte quatro: o pastor precisa morrer
Quando a gente lança “Resplandescente”, eu começo a entender que foi algo surgido dos encontros, dos cultos, das performances. Ele foi sendo elaborado no encontro, nas viagens. No olho no olho. Me dei conta da responsabilidade que eu tinha com a minha comunidade. A princípio, isso foi me gerando também um certo adestramento. Eu assimilava isso com pudor, e eu comecei a ficar meio atribulada.
Porque… Bem, aí na terapia, em determinado momento eu vou ouvir: “Que tipo de pastora você quer ser? Você precisa escolher.”
E ao mesmo tempo eu pensei: “Qual é a função do pastor? É conduzir o rebanho ao abate?” Se você tem um rebanho de ovelhas, um galinheiro, um gado — sem cabeças de gado — e você é o pastor desse conjunto: qual é o objetivo final? É extrair tudo que tem de leite pra gerar riqueza, manteiga, queijo…? Qual é a função dessa figura?
E, aí, eu logo pensei: então, o pastor precisa morrer.
E por um tempo eu fiquei pensando nisso: o pastor precisa morrer. O rebanho precisa matar o pastor. Para poder ser livre. Porque é o pastor quem, de certa forma, elabora o cerco. É o pastor que reforça os limites. Precisamos matar o pastor.
Porque antes de ser pastora, eu sou vaca. Eu sou “Profana”, por conta de “Vaca Profana” [música e letra de Caetano Veloso, sucesso em 1984 na voz de Gal Costa]. Soa até piegas falando assim. Mas quando eu escutei essa letra, eu vi essa música… e ela começa falando:
“Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada.”
Eu pensei: “Yes, yes. É sobre.” E várias outras incidências assim: “Bahia, onipresentemente”; Rio, Belo Horizonte e depois São Paulo —como o mundo todo.
Dona de divinas tetas. Eu sempre tive peito. Mesmo antes da minha transição. E antes de transacionar. o peito era um grande incômodo. Tinha um conflito: como é que eu vou ser menino se eu tenho peito? E todo mundo sempre perguntava: “Menina ou menino?” “Vai botar o seu sutiã?”
Era o meu maior terror. Eu botava fita-crepe pra ir pra igreja, pra esconder o peito. E ouvindo: “Ai, tem que quebrar a pedra desse peito.” Desde criança. A minha vida toda.
Quando eu ouvi e entendi que as tetas eram divinas, eu acho que isso me fez me relembrar… trazer de volta a memória de que eu era divina. De que eu era uma criatura divina. De que as minhas próprias tetas eram uma característica que reforçava o caráter divino da minha existência.
E foi assim que eu adotei esse nome. Então antes de ser pastora, eu fui vaca. Eu era vaca sagrada.
E como é que você se safou dessa arapuca?
Eu fui pensar em figuras como Harriet Tubman [abolicionista e ativista americana], nos Estados Unidos, que foi uma figura responsável pela libertação de mais de 70 pessoas em estado de cativeiro. E existe algo que eu, Ventura, chamo de “malandragem teológica”, que tá alinhada a um cristianismo não-eurocêntrico. Tá muito mais vinculado ao próprio fundamento Rastafari.
Ou seja, um Jesus que é libertador. Um Jesus que é o leão que liberta. Um Jesus guerreiro. Um Jesus que se preocupa com as opressões que sofremos — e que se mobiliza para elas.
Porque também, quando a gente pensa em Jesus, ele com menos de 2 anos de idade já era um refugiado político. Já havia saído da sua terra natal e ido pro Egito por conta de uma perseguição.
E por isso eu comecei a me apaixonar pelo reggae, também de certa forma. Porque eu pensei: “De que maneira eu posso continuar falando sobre Jesus? De que maneira eu posso continuar vivendo o meu amor por Jesus sem ter que ser escrava — ou sem ter que ser refém daquilo que eu mesma criei?”
Aí eu fui ouvir Dezarie [cantora nascida em St. Croix, nas Ilhas Virgens Americanas], eu fui ouvir Judy Mowatt [cantora jamaicana, anteriormente backing vocal de Bob Marley], a própria Rita [Marley, cantora, irmã de Bob], as grandes damas do reggae… Mas obviamente também Peter Tosh, Bob Marley, Edson Gomes… Toda uma escola de reggae do recôncavo baiano.
Parte cinco: Exu pediu ‘Me Deixe em Paz’
Deixa eu te perguntar uma coisa: você falou de Exu. Qual foi a tua dificuldade em aceitar Exu?
Eu sinto que Exu esteve comigo o tempo todo. Desde sempre. Desde o princípio. No princípio estava Exu. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele. E sem ele, nada do que foi feito teria sido feito. Exu é o Verbo. Ele é a nutrição. Ele é o que conecta. Ele é o que nos liga. Nos religa, de certa forma.
Então, eu sinto que a minha trajetória aconteceu e acontece muito por conta da mediação de Exu. Ela é até meio… tem até um caráter de fantasia. Eu falava de às vezes duvidar inclusive das minhas memórias. Porque elas são tão fantásticas, de certa forma, ou tão fora da curva, que eu acho que tem a ver com essa brincadeira de Exu.
Mas de fato, quando a gente vem de uma formação cristã tradicional, há um estigma, um medo, um preconceito gigantesco em torno daquilo que Exu é.
E por muito tempo eu tive medo. Mas ao mesmo tempo, fui sendo apresentada. E isso foi se apresentando com muita doçura, com muita graça. E me fazendo olhar pro mundo por perspectivas muito distintas.
Então, por exemplo, certa vez Exu me disse:
“Me deixa em paz.”
E eu fiquei apavorada. Pensei: “Bom, eu tô fazendo alguma coisa de muito errado.” E eu fui dormir com esse barulho. E depois de um tempo, essa palavra foi sendo amaciada. E eu pensei: “Nossa, é um gesto de confiança.” Quando você fala pra alguém: “Me deixa em paz”, tem uma certa confiança sendo depositada. E eu acho que é algo tão nobre proporcionar paz a alguém.
A paz é tão cara. Tão rica. Tão rara. Tão preciosa.
Quando eu entendi isso, eu olhei e pensei: “Bem, não é sobre o que eu tava pensando. É sobre uma outra dinâmica. Eu preciso trabalhar por outro viés.”
Eu testemunhei a possibilidade de uma vida que permanece. Ou seja, foi Exu que me ensinou que a morte não é o fim. Que não existe fim. Que existem recomeços. Que existem transformações. Que existe um fundamento onde a principal base dessa vida é a transmutação.
Exu sempre esteve comigo. E eu sinto que não tem como pensar em evangelho sem pensar em Exu. Não tem como pensar na própria trajetória de Jesus Cristo sem pensar em Exu. Eu sinto que Jesus foi alguém que teve intimidade com Exu. Jesus, pra caminhar o que caminhou, pra viver o que viveu… eu sinto que ele desenvolveu um relacionamento com Exu.
Exu ter falado “Me deixa em paz” contigo me faz lembrar que você estava no palco, exatamente dizendo isso, e o som falhou. E você estava gritando no palco… não sei se gritando ou só verbalizando. Tô falando “gritando”, mas eu não lembro se era um grito. Mas você estava repetindo: “Me deixa em paz.” Você repetia isso no palco. O que aparentemente me soou como uma certa simbiose com o fato do som ter parado no momento em que você estava criando uma espécie de louvor.
Mas agora, você me contando isso, a história fecha. Esse seu entendimento do “Me Deixa em Paz”…
Então, total. Foi muito curioso esse momento. Porque foi justamente na introdução de “Me Deixa em Paz”. Eu falei alguma coisa ali sobre a importância de estar em paz. E assim que a música começou — que era uma música nova, as pessoas não conheciam até aquele momento — o som começou a pipocar.
E a minha resposta foi muito rápida, porque tudo acontece muito rápido quando a gente tá em cima do palco:
“É só começar a falar de paz que o inferno começa. Ninguém… esse mundo não aceita a possibilidade de que nós tenhamos paz.”
E aí eu puxei “Poder e Glória”, accapela. Foi um dos momentos mais emocionantes, porque “Poder e Glória” não estava no repertório.
A gente não tinha conseguido colocar e rearranjar, porque a gente rearranjou todas as músicas de antes do Todo Cuidado É Pouco, e não deu tempo de rearranjar Poder e Glória, então ela não entrou. Mas eu tava assim, conversando com Jorginho, meu diretor musical: “A gente precisa cantar essa música.”
Eu sentia que havia uma necessidade coletiva, das meninas também, de que essa música fosse tocada. Porque é uma música muito importante.
E aí todo mundo: “Ah, não vai dar. Não vai dar…”
E eu: “Meu nome é Katy Spero” [brincadeira com o nome Katy Perry e “Cá Te Espero”, Ventura gargalha]
E, aí, sabe… Sabe quando você olha e entende? É uma coisa bem de Exu mesmo.A gente precisa estar sempre atenta pra pensar rápido.
E fluiu.
Parte seis: meditar a vida como possibilidade
E isso volta lá no começo da nossa entrevista. Para guerrear também é preciso meditar a paz, ou algo assim, não?
Sim. Lutar contra a opressão, sim. Derrubar todos que estão nos atacando, sim. Porém, paz. Porém, união. Porém, meditação. “Vamos estar juntos, meus irmãos, minha família”, né?
Olha, eu fui compor o álbum e meu primeiro gesto foi “Eu quero estar em paz pra compor. Quero estar na beira do mar. Quero estar na beira do rio. Quero… maravilhosa… e é isso aí, vamos pagar por isso, né?” Porque custa caro o bom viver. Carolina Maria de Jesus já dizia, lá em 1950, 1940: “O custo de vida é altíssimo.” Então, eu bati o pé. A gente foi moldando e fazendo um desenho pra conseguir acessar isso — nem que fosse efemeramente. Abrir um portal, ali, rápido.
Eu queria me isolar. Eu queria ir pra um canto onde eu tivesse acesso a coisas que são caras.
Por exemplo: acesso a um rio banhável.
Eu vim pro interior, pro litoral da Bahia.
E eu percebi que as pessoas… que era incompatível ser uma… sabe? Não era um lugar…
As pessoas pretas, nativas, foram sendo expulsas do litoral. Foram afastadas.
Quando você pensa, por exemplo, nos proprietários de casas na beira do mar no litoral da Bahia, são majoritariamente pessoas de fora do Brasil.
Eu aluguei duas casas: uma era de uma espanhola. A outra, de um italiano. No meu estado.
E aí eu fui percebendo que as pessoas se incomodavam.
A minha presença — o fato de ter uma travesti morando numa casa na beira do mar, acessando aqueles lugares — gerava desconforto.
Porque o meu corpo, pra essas pessoas, era a própria representação da agressão. Da violência.
E a resposta era uma resposta de violência.
Então, pra mim, a grande contradição tava ali.
Quer dizer: eu tava em busca de paz, mas mesmo para estar em paz, uma guerra estava sendo travada.
Entende?
Parte sete: a aula de surf e a terra prometida que é o próprio corpo
Eu fiz aula de surf no meio desse processo.
Eu comecei a surfar.
E eu achava assim… eu nunca imaginei:
“Nossa, eu tenho um corpo de surfista. Eu posso surfar.”
Pra mim não era uma possibilidade.
Mas chegou o momento em que minha produtora falou:
“Ah, eu vou fazer uma aula de surf que tem aqui perto.”
Aí eu falei:
“Ai, vai lá.”
Meio tipo… ok.
Quando ela foi, eu falei:
“Quer saber? Eu vou também.”
Fui.
Fui lutando contra essas euforias, lutando contra o estigma de ser uma pessoa gorda, de ser uma pessoa que não tá necessariamente no padrão daquilo que se espera de alguém que tá com uma prancha de surf.
E foi uma das situações mais mágicas da minha vida.
Foi transformador.
Quando o vento se afinou com o movimento das águas, e com o movimento da minha remada…
Quando a gente entrou em sintonia e fluiu…
Eu fui embora.
Eu não quis nem subir.
Porque eu já tava satisfeita, assim. Sabe?
Quando o povo diz:
“Ah, você tem que levantar.”
Eu:
“Não. Eu vou até o fim deitada. Mas eu quero frutar esse sentimento mágico.”
Isso que é incompatível.
Essa convergência de movimentos.
É mágico.
Foi sagrado.
Aquilo foi um delay.
E eu trago no meu corpo a memória disso.
Pra mim, esse foi o gostoso do processo.
Mas houve uma disputa.
Uma guerra que estava acontecendo no mundo — mas também dentro da minha própria cabeça.
Por isso que em Tranquila eu falo:
“Na minha mente, sobre o meu corpo,
o cativeiro vou incendiar.”
O cativeiro tá no mundo.
Mas ele tá dentro de mim.
É um processo individual.
É um processo de libertação coletiva e individual.
É conjunto.
Uma coisa vai colaborando pra outra.
Porque eu sou o todo.
Eu sou junto.
Mas, ao mesmo tempo, tem uma hora que eu sou aqui.
Então tem esse processo de quebrar esse cativeiro.
De incendiar esse cativeiro dentro da minha própria cabeça.
A terra prometida é o meu próprio corpo.
Eu caminho no deserto em busca da terra que sou eu.