O titã da atuação: Paulo Miklos dá vida ao sambista Adoniran Barbosa
Em ‘Saudosa Maloca’, cantor combina a música e o cinema de modo magistral
Um capricho mitológico une as trajetórias de Paulo Miklos com a do deus grego Zeus. A divindade, que era conhecida pelo epíteto de “deus dos deuses”, nasceu da união dos titãs Cronos e Reia e possuía, entre outros poderes, o de se transmutar em qualquer animal ou fenômeno meteorológico que lhe desse na veneta. Ele se transmutou num cisne, num touro e até numa chuva de gotas douradas.
Miklos, por seu turno, também possui Titãs na sua origem –nesse caso, uma das bandas mais importantes do rock nacional em todos os tempos– e concentra seu poder de transformação na carreira de ator. Em duas décadas nas telas, foi de assassino de aluguel a roqueiro decadente, de pistoleiro do Velho Oeste a ídolo americano do jazz. E tem ainda uma grande vantagem em relação ao grego: enquanto Zeus usava essa habilidade para alimentar seus hábitos lascivos, o poder de sedução de Miklos se concentra no público.
A mais recente encarnação do roqueiro é Adoniran Barbosa (1910-1982), sambista de sotaque paulistano e autor de clássicos como “Trem das Onze”, “Samba do Arnesto” e muitos outros. Com estreia prevista para o dia 21 de março, “Saudosa Maloca” (título de outro sucesso do compositor) faz uma licença poética sobre a biografia do sujeito que veio ao mundo com o nome de João Rubinato. “É um grande desafio, porque o próprio Adoniran é um personagem, né? Foi criado pelo Rubinato e tem voz e dialeto característicos. E eu não sou um ator de caracterizações”, diz Miklos em entrevista para a revista da Billboard Brasil de fevereiro.
Munido de objetos pessoais do sambista, como a gravata, o chapéu e os óculos, Miklos faz um Adoniram do seu jeito: evita, por exemplo, a voz rouca ou qualquer maneirismo que daria ao personagem um tom de imitação barata. “Paulo tem traços marcantes que caíram como uma luva para a interpretação de um clown como Adoniran”, diz Pedro Serrano, diretor do longa. Os Titãs sempre tiveram um quê de performáticos no palco.
E Paulo está entre os cantores que mais souberam usar essa liberdade em cena. Um talento que não passou despercebido pelo cineasta Beto Brant, que o convidou para viver o assassino Anísio no longa “O Invasor”, de 2001, seu primeiro papel no cinema. “Ele tinha uma ferocidade no palco que achava que funcionaria no personagem”, diz Brant. Um detalhe curioso é que Paulo ia para a filmagem “virado”, ou seja, direto dos shows para a locação. “Ele vinha exausto pelo show, pela viagem. Não tinha a cabeça limpa, racional, então se jogava em cena na intuição, desarmado, entregue ao processo”, elogia Brant.
Outro grande momento foi o espetáculo teatral “Chet Baker, Apenas um Sopro”, de 2016, no qual viveu o trompetista americano, morto em 1988. Ali, buscou inspiração no próprio inferno pessoal para viver o músico, que era viciado em heroína. “Paulo fez um personagem absolutamente crível, com toda a tortura interior e o amor pela música”, diz Anna Toledo, atriz que dividiu o palco com o titã.
No ano passado, Paulo Miklos se reuniu com os amigos dos Titãs para uma megaturnê. Batizada de “Encontro”, a série de shows percorreu dez capitais brasileiras, além de cidades nos Estados Unidos e Portugal, num total de 46 apresentações. “Uma das coisas mais bacanas desse encontro é a alegria da gente, como nos divertimos uns com os outros”, confessa. “Dessa vez a minha experiência como ator ajudou muito.”
“Saudosa Maloca” foi filmado em meio à exaustiva turnê dos Titãs. No mesmo período, Paulo encontrou tempo para gravar um disco ao vivo no Blue Note, em São Paulo, onde reuniu o repertório de seus últimos discos solo, “A Gente Mora no Agora”, de 2017, e “Do Amor Não Vai Sobrar Ninguém”, de 2022. E mais: em 15 dias encontrou tempo para outra filmagem, dessa vez de “Carcaça”, de André Borelli, no qual contracena ao lado da atriz Carol Brezolin. “É um suspense psicológico que se passa durante a pandemia”, diz Paulo. Pensando bem… Nem Zeus teria o pique de Paulo Miklos.