Quando João Gomes rompeu o pop brasileiro, em 2021, cantando que tinha uma tal de senha, algo mudou na música. Como de praxe, alguns lugares fora do eixo do forró demoraram a compreender o fenômeno. Mesmo assim, não demorou para que a voz macia, grave e tipicamente anasalada do menino nordestino, então com 20 anos, dominasse os corações do Brasil.
A chave que João trazia consigo era para abrir mais uma nova porta no forró. Primeiro, o gênero eternizou-se pela zabumba, triângulo e sanfona de Luiz Gonzaga. Depois, enraizou-se na música urbana popular, permeando a obra de artistas como Zé Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Elba Ramalho. A evolução ainda mais urbana veio nos anos 1990: evidenciou-se o teclado, os grupos passaram a ter mais de 10 pessoas (entre eles, backing vocals e dançarinos) e com um pé na música sertaneja romântica. Foi daí que surgiram Mastruz com Leite e Magníficos, pais de outros supergrupos como Aviões do Forró, Calcinha Preta, Garota Safada.
Quando o gênero parecia que ia embalar-se na onda ordinária do comercial (quando grupos viram escadas para carreiras solo, como no caso de Xand Avião e Wesley Safadão), o formato musical mudou mais uma vez, por volta do final da década de 2010: as grandes bandas dariam espaço para formações mais enxutas, com uma bateria eletrônica de médios acentuados, teclados e um vocal apenas. Era o começo de uma onda chamada piseiro.
O disco “Eu Tenho a Senha” é o principal expoente dessa virada. Tornou-se um marco recente do gênero porque o João lá do primeiro parágrafo era não só ótimo compositor e cantador, mas também trazia consigo, sem precisar explicar quase nada, a figura do patrono Luiz Gonzaga enquanto versava sobre romances, solidão, saudade e festas de vaquejadas. Como acontece sempre na música pop, todo mundo tentou ser João Gomes –e ninguém conseguiu.

Quem saiu na frente foi Xand Avião, não necessariamente como cantor. Àquela altura, o Brasil enfrentava a Covid-19 e tudo ali era um cenário devastador e impossível para festejar —imagine só então o piseiro, carente de suas reuniões em torno dos paredões. Por sua vez, Xand tentava estabelecer carreira solo após anos conturbados com sua parceira Solange Almeida no Aviões do Forró.
Com um álbum de estúdio em 2017 e dois ao vivo, o cantor viu-se obrigado a usar o ano pandêmico e sem música na rua de 2020 para empreender. “Eu acho que passei por todas as fases do forró. Tive que me adaptar, aprender a ser digital”, diz o cantor que, apesar de Boeing 747 do gênero, tem apenas 42 anos
Quando o forró abriu os olhos, ele estava “de boa”, mas também com uma resposta nas mãos em forma de revelação: de jeito tímido igual a João Gomes —mas que, diferente em timbre, postura, roupa e referências, também mudaria o ritmo das coisas no gênero. Era Zé Vaqueiro, outro que muitos tentariam, em vão, copiar.
“Zé é um vaqueiro pop. Faz um forró novo que a garotada de 17 anos está ouvindo. Ele faz o forró continuar vivo, longevo. Quando falei a primeira vez com o João, ele tremeu. Eles são fora do comum. Ambos vaqueiros, falam a linguagem do povo e, depois dele, vieram muitos copiando. Eles escutam de tudo. De Xamã à Liniker”, conta.
Ele e João seriam capitais, matrizes de um novo pop brasileiro –que, em 2025, surge, mais uma vez, fortíssimo entre os gêneros mais populares das paradas da Billboard Brasil.
“O forró tem se misturado com o sertanejo, com o funk. As pessoas são fruto do tempo delas”, começa analisando Rosualdo Rodrigues que, junto com Carlos Marcelo, escreveu “O Fole Roncou! Uma História do Forró” (Zahar, 2012). “O João Gomes nasceu em 2002. Neste ano, a gente estava na reta final do livro. Ele não viveu aquela história toda ali que embasa o livro”.
João Gomes é fã de rap e, por isso, soma colaborações com o carioca BK, regravou a brasiliense Flora Matos e seu próprio jeito de cantar, por vezes, é de um rapper da vaquejada. “O que também é curioso é que um jovem faça sucesso em uma época que é tão antivaquejada”, adiciona Rosualdo. Por outro lado, Zé Vaqueiro surge como um intérprete que não veste chapéu de cangaceiro como João: um de seus maiores sucessos forrozeiros tomou de assalto o hit “Take On Me”, do A-ha, por influência de Xand –a canção é parceria com o compositor DJ Ivis (promissor produtor que, no auge, viu-se em meio a acusações e consequente prisão em 2021 por violência doméstica).
Mas, veja só, para alegria dos puristas, ambos parecem focados na influência do velho Gonzagão —sem que isso pareça esforço de media-training ou coisa que valha. João, desde sempre, quando não estava de boné, vestia-se com o chapéu de cangaceiro. Zé, de nome real José Jacson, acostumou-se com o sucesso a partir de um forró chamegoso chamado “Vem me Amar”. Com médios acentuados e virada de piseiro, a canção tem uma sanfona que acompanha o cantador por quase três minutos de duração. E o amor cantado na letra acaba evidenciando o intérprete romântico que era Gonzagão em petardos-convites como “Vem Morena”. A diferença é que, enquanto o compositor José Fernandes pedia “Olha pro céu, meu amor / veja como ele está lindo”, o escriba João Gomes desenha uma vaquejada onírica, cheia de adrenalina, diversão, a morena e a sina deste trovador nordestino.
E sim, claro, são artistas frutos de seu tempo: cantam o amor em tempos de (novas) safadezas noturnas, boêmias, musicais e divertidas da vida. Um dos maiores sucessos de Zé Vaqueiro é “Letícia”, do refrão “Letícia! Letícia!? Pra onde você vai com aquele mototaxista?”; João Gomes canta com Pabllo Vittar sobre um homem vira-lata (que vira a noite, “só não vira homem”). Sobre o segundo, Rosualdo é ainda mais enfático: “Ele tem tantas camadas de Luiz Gonzaga, é uma coisa tão orgânica, que deve ser difícil para ele entender e expressar isso. Mas está tudo ali”.
E, nessa toada, ambos estenderam a história do forró, de Luiz Gonzaga e do Nordeste musical nos últimos cinco anos.
Os herdeiros da linhagem
“Eles foram uma ‘nova era’”, começa dizendo Natanzinho Lima, um dos artistas mais ouvidos do Brasil atualmente. Em 2024, ele bombou com “Pilantra e Meio” e a enfileirou no Billboard Brasil Hot 100 com a companhia de “Mentira Estampada” (com participação de Wesley Safadão) e a solo “Uma e Quinze da Manhã”. O sergipano de Itabaiana é uma fusão de tudo o que falamos anteriormente: é brega, piseiro, ora sacana, ora amoroso.
Quando perguntado se ele é uma extensão desse forró, ele concorda pontuando que, em termos de gênero, se classificaria como cantor de brega. “Mas eu concordo plenamente. Eles me ajudaram muito, inspiraram muito a gente. Quem está começando agora se espelha neles e eu sigo assim, me inspirando, até hoje”, reflete o também fã dos bregosos Pablo, Silvano Sales e Levy Viana.

Outro que enumerou hits em 2024 foi Léo Foguete. O hit “Última Noite” ficou em primeiro lugar como mais ouvida e ainda chegou às paradas internacionais no começo de 2025 –emplacou o 71º lugar no Billboard Global 200. Léo é natural da cidade de Petrolina (PE). Foi lá que ele descobriu-se vizinho de João Gomes —que, nascido em Serrita (PE), mudou-se na adolescência para a cidade pernambucana banhada pelas águas do Rio São Francisco.
“A gente era vizinho! O João morava na mesma rua que eu. Minha mãe sempre falou que ele vivia lá em casa. Eu não lembrava, era muito pequeno”, diz Léo que, tempos depois, passou a se comunicar com um ainda anônimo João por mensagens no Instagram. O laço petrolinense se restabeleceria em 2023: João gravou “Mais uma Noite”, canetada deste compositor de 20 anos e nome real Mayrllon de Castro Souza. “Mayrllon não é um nome comercial, né? Em uma reunião para decidir isso, a gente precisava de algo simples, sei lá, tipo um ‘Léo’. E aí, depois do ‘Léo’, eu só joguei o ‘Foguete’ e ficou assim”, explica soltando uma risada.
Em outra aba deste navegador está Juliana Linhares. Ela não é íntima das paradas, mas seu álbum “Nordeste Ficção” foi o que conseguiu juntar esforços que já vinham sido feitos pelo “lado B” do forró, mas com algo mais denso do que necessariamente boas canções. Ela reitera o gosto feminino pelo gênero que tem ápices em Marinês (1934-2007), Anastácia [autora, junto com Dominguinhos, de “Tenho Sede”, que a própria Marinês tornou sucesso] e chega pop em Mariana Aydar.
“A Juliana tem essa voz de Marinês que a Elba Ramalho já trazia consigo. Ela parece que desenterra algo em mim e a evoca. Ela é impressionante, muito nordestina, parece algo da terra”, diz Rosualdo que, inspirado no álbum de Juliana, coleciona canções desse novo forró em uma playlist chamada “Forró Futurista” que abarca de Furmiga Dub e Maga Bo (produtores que adicionam camadas eletrônicas ao forró) a Jéssica Caitano e Luiz Poderoso Chefão (ela, repentista de coco; ele, produtor, DJ e cantor de forró e piseiro) –e que você pode conferir em nosso site.