Nic Dias: rapper de Belém quer vingança da violência que ela e a mãe sofreram
Uma skatista evangélica que virou filha de Oxum e fã de Pink Floyd
Nic Dias quer celebrar uma vingança que há tempos elabora contra uma estrutura violenta. A rapper e também DJ incorpora a personagem “Bad Bitch” —que protagoniza e intitula o seu primeiro álbum depois do EP “1999”, lançado há dois anos. Toda de branco, a filha de Oxum e Iansã conta como o ódio a ajudou a focar na busca da paz em meio a uma luta para vingar a violência sofrida pelas gerações da família Silva.
Dividido em três atos, o álbum é um escape da ansiedade e depressão que a atacaram de forma tão brutal quanto três homens que a agrediram fisicamente no bairro onde nasceu, em Icoaraci, na periferia de Belém.
“Isso aí me f… Eu envelheci uns dez anos, mudei do meu bairro, me isolei, não saía…”, relata expondo o pano de fundo que ilustrou em “ADAGA (mamãe Oxum)”. Nic foi vítima de um crime ocorrido em 2021, obrigando-a frequentar delegacias da mulher para tentar, em vão, pelos meios oficiais, assegurar sua integridade.
Com isso, a estabilidade emocional se foi e o pesadelo de viver num mundo muito real de dor e violência parecia ainda mais palpável. Não é surpreendente que, armada com a adaga de Oxum, Nic tenha conseguido respirar e se refazer.
“O candomblé me trouxe vontade de estar viva. Então são essas duas ‘Nicoles’, uma introspectiva vinda dos traumas, mas que sabe dizer não, sem medo de ser a preta arrogante; e a outra é esperançosa. Me tornei outra pessoa depois da feitura de santo”, explica. Nicole, na verdade, economiza. São muitas pessoas acumuladas em seus 24 anos.
Skatista evangélica é vista pirando o cabeção ao escutar Pink Floyd
“Tive que me tornar uma outra pessoa, ter outra postura. Principalmente pelas demarcações: mulher, negra, bi, do Norte. O fato de ser daqui já me coloca em outro lugar. Você veio de moto, né? Mas de ônibus é f… Então tô cobrando o que é nosso. P…, cansei. Vocês devem a gente em dobro, estou indo buscar isso”, explica a rapper que, tal como o álbum, transita entre os sentimentos de ódio, renascimento e alegria. “A minha adolescência foi trash. O que me salvou foi o funk, o melody, o mid back e o Pink Floyd”.
O rock progressivo levou Nic ao antifascismo e fez pirar o cabeção de uma jovem de 16 anos. Um contato que, tijolo por tijolo, a fez entender as questões estruturais do seu dia a dia e também chegar ao candomblé.
“Eu sou a primeira filha de santo de uma família meio evangélica. Eu frequentava a Igreja Batista porque queria aprender música. Chegava de skate para tocar violão no culto de meio-dia. Eu vi muitas contradições”, analisa a dona de um projeto sócio-educativo chamado “Olhar Invisível”, focado em crianças e adolescente de comunidades.
“O pastor nem ligava. E eu lá falando de cestas básicas. Foi quando eu saí da igreja”, relembra a rapper, que também cursou Ciências Sociais, trampou com pesquisa para o IBGE e vendeu bolo de pote. Agora, ela parece fazer questão de expandir sua música pelos gêneros que sacudiam Belém quando DJ antes de incursionar na produção de “Bad Bitch”.
“Sempre fui muito da rua, de pichar, andar de skate, desbocada.” E isso ressoa em sua música, o que transforma a narrativa do novo álbum em um lançamento singular dentro de gêneros que sofrem com a dominância masculina, com os clichês de sexo, armas e substâncias recreativas.
Já quando fala da matriarca, que sofreu violência doméstica, a rapper estremece o olhar.
“Com 18 anos, fiz minha primeira faixa, ‘Degrau’, para ela. É minha melhor amiga. A minha vingança é histórica, familiar, estrutural. Minha família é muito pobre, tem vários problemas de álcool, droga, várias coisas”. Na parede da casa de vila em que mora, Nic pendura um pequeno pôster d’Os Simpsons, um retrato de Frida Kahlo e um quadro estilizado com a frase “Mãe, você é uma inspiração, minha estrela, meu exemplo para a vida. Te amo muito”.