‘Não quero mais viver de migalhas’, diz Ana Cañas, que lança ‘Vida Real’
O disco da cantora é baseado em fatos reais –inclusive de quando foi 'a outra'
Ana Paula Hipólito Cañas, 44 anos, levantou-se, caiu e levantou de novo tantas vezes que ninguém mais arrisca um prognóstico definitivo sobre o seu futuro.
A penúltima empreitada – essa, muito bem-sucedida – da cantora foi um show tributo ao cantor e compositor Belchior. Urdido em meio a lives durante a pandemia, ela não apenas jogou uma nova luz sobre a obra do autor de “Paralelas” e “Coração Selvagem”, como apresentou o canto rasgado de Ana para uma plateia que mal tinha ouvido falar dela.
2025 marca o início de uma outra reviravolta na vida dessa paulistana de canto e personalidade fortes. “Vida Real”, que chegou às plataformas de streaming no início de abril, é um trabalho de canções autorais. Produzido por Dudu Marote (Skank, IZA e Adriana Calcanhotto), ele traz canções que se alternam entre o folk e o funk melody e participação de gente estrelada como Ney Matogrosso, Ivete Sangalo e Roberta Miranda. Discípula do chamado “eu lírico”, Ana cria suas letras a partir de experiências pessoais – tem canção que conta dos tempos em que foi amante de um homem casado, outra dedicada ao irmão, que morreu afogado.
Em entrevista à Billboard Brasil, ela fala de Belchior, do disco novo e do desafio de se reinventar mais uma vez. Sobre isso, vale um conselho deste sujeito que conhece a cantora há mais de duas décadas: nunca duvide da capacidade dela em se reinventar. Ana Cañas enverga, mas não quebra.
Você tem uma carreira marcada por altos e baixos e agora renasceu artisticamente por conta de um tributo ao cantor e compositor Belchior. Como avalia isso?
Dá um frio na barriga porque eu nunca tinha vivido um sucesso, né? Você, que me acompanha há muito tempo, sabe bem disso. Tive muitos altos e baixos e de repente surge o Belchior, que foi uma coisa que deu supercerto. Fomos na raça, alugando teatros pelo Brasil, fazendo o show acontecer.
Hoje todo mundo que me encontra pergunta: E agora? O que você vai fazer?
O tributo a Belchior chamou a atenção de um público que não era teu. Como está preparada para apresentar a essa audiência algo completamente diferente?
Talvez exista um grupo de pessoas que espera que eu siga o caminho da grande intérprete –e estou super em paz com isso. Só que não gostaria de ser uma metáfora para o resto da vida. Essa decisão [o repertório autoral] foi muito pensada e muito abraçada. Porque tem uma música do Nando Reis e as outras todas eu escrevi, né? Estou preparada para isso, assim, tenho o sonho da caneta, sabe? De escrever canções, letras e quem sabe um dia um verso de algumas dessas canções ficar no coração das pessoas. Então, eu acho que a gente tem que perseguir nossos sonhos, né, meu querido? Ficar no lugar de intérprete é um pouco ser num lugar previsível, acomodado. Vou sair do Belchior e cantar quem? Cazuza? Rita Lee? Fazer o que todo mundo está fazendo?
Então, irei me reunir à curiosidade do público. E agora, o que você vai fazer?
Cara, tem uma frase do Bob Dylan que está comigo há uns dias e faz muito sentido: “Quantos mares uma gaivota deve sobrevoar/ Antes que ela possa dormir na areia…”. “Blowin’in the Wind”, sabe? “Vida Real” representa esse trajeto que a gaivota deve fazer. O disco demorou mais de um ano para ser finalizado. Os primeiros meses foram intensos, depois começou um trabalho de refinamento, arranjos. Houve músicas que apareceram nos últimos 15 dias antes da master, eu fiz uma música nova que entrou no disco. Tem uma canção que eu escrevi 11 anos atrás. Em 2013, escrevi uma composição para o meu irmão – que faleceu – e só agora está sendo lançada.
O que aprendeu com os teus erros do passado?
Aprendi a respeitar o público de uma forma radical. Que show precisa de roteiro, direção… Uma das canções, “Derreti”, tem participação do Ney Matogrosso, um colaborador de longa data.
Me explica a importância que ele tem para a tua carreira.
Um grande amor assim, uma figura meio paterna, uma espécie de xamã. O Ney é um mistério: uma pessoa reservada e ao mesmo tempo é Leão com ascendente em Leão, ou seja, nasceu para brilhar. A latinidade do arranjo de “Derreti” me lembrou do Ney Matogrosso de Secos & Molhados, aquele Ney que balança o quadril. Ele tem um compromisso autêntico com a arte. Você pode oferecer um milhão de reais para ele para gravar algo ou se apresentar. Se ele não gostar, não vai aceitar. E eu considero isso uma maravilha, sabe? Hoje em dia, em 2025, você tem uma pessoa comprometida com a arte, 100%? Tudo bem que acredito que financeiramente ele deve estar superbem, né? E tem de estar. Mas eu acho que isso é da essência dele.
Você tinha um pai alcoólatra e enfrentou problemas com a bebida. Como ela surgiu na tua vida?
Até os 27 anos, nunca tinha experimentado uma gota de álcool sequer. Porque filhos de dependentes costumam ter aversão ao vício dos pais, certo? Quando meu pai morreu, comecei a beber para viver o luto dele. Eu era muito apegada ao meu pai. E eu estava meio que passando dos limites e passando vergonha. O Ney foi a pessoa que se aproximou para conversar comigo, com muito carinho. Ele me chamou de canto e disse: “Você é muito talentosa. Será um grande desperdício se você continuar nesse caminho.” Cara, voltei para casa e eu parei completamente assim. Hoje eu bebo socialmente, mas eu bebo muito pouco. Fodi minha carreira total: perdi o empresário, perdi a banda, perdi a gravadora, fiquei dois anos sem fazer show. E aí fui voltando aos poucos, né? Sou meio fênix.
Você chegou a ser apelidada de Ana “Canas”. Não ficou machucada com esse tipo de brincadeira?
Não incomodava porque era verdade. Porque eu bebi para caralho, entendeu? Era uma consequência do que eu estava fazendo, na minha cabeça não era maldade das pessoas. Era tipo, mano, foi uma consequência do momento que eu passei, né? E é preciso mais coisa para me machucar.
Você chegou a experimentar drogas mais pesadas do que o álcool?
Não. Nunca cheirei cocaína, por exemplo. Tem um célebre momento onde eu quase experimentei. O [produtor) Liminha que tava comigo me puxou e falou: “Não, você não vai. Comigo não, você está sob minha responsabilidade. O Liminha tem um lado muito legal, muito divertido assim. De vez em quando, fumo um baseado. Mas sou muito fraca. Eu dou um trago e já explodo. Eu amo usar para transar, cara. Maconha para transar é um negócio assim, divino. Porque ela te abre, sabe? Ela te relaxa e, para a mulher, é muito libertador. Faz de tudo e é maravilhoso. Mas, pensando bem, foda mesmo é encarar a vida sóbria.
“Vida Real” tem Ivete Sangalo na canção “Brigadeiro e Café”. Como isso aconteceu?
Cara, a minha admiração pela Ivete é muito grande. Seja pelo carisma, pela conexão que ela tem com as pessoas… Ivete é vida real como poucas. No patamar que ela se encontra, ela consegue manter uma autenticidade ali, com os fãs e nos bastidores, sabe? Pô, uma vez eu a vi subir num palco assim para receber um prêmio e foi ajeitando a calcinha. Pensei: “Essa mulher é muito foda.” A Ivete é uma mestre de cerimônias do povo brasileiro e tenho muito respeito pelo que ela faz. A gente gravou uma música que é uma música superpop do disco, que tem umas raízes meio Claudinho & Buchecha. Lembrei da minha adolescência, minha primeira paixonite, que foi ao som de Cláudio e Buchecha. Então, eu falei: “Dudu [Marote, produtor], eu quero uma música Claudinho & Buchecha no meu disco. Realizei dois sonhos: cantar com Ivete e fazer um funk melody.
Uma das canções do álbum, “Amiga, se Liga”, fala sobre uma mulher que namora um sujeito casado. Ela foi inspirada em alguma pessoa que você conhece?
“Amiga, se Liga” eu fiz porque eu fui amante de um cara casado. Aí consegui sair e escrevi. A ideia era gravar com a Marília Mendonça, mas depois surgiu a Roberta Miranda. Que deu início ao que Marília desenvolveu, né? A ideia é falar com as mulheres que estão numa situação de amante: falar para as minhas colegas que estão na mesma situação de viver de migalhas, que é horrível ser amante de alguém. A tua autoestima vai para baixo. Imaginei que ele estava numa relação aberta. E aí descubro que não era uma relação aberta. Só que aí o estrago já tava feito, eu já tinha me apaixonado. Tentei sair várias vezes e quando eu saí, ele vinha para São Paulo. Depois de eu ter terminado, tipo, pegou o avião e veio para cá três vezes pedindo para eu voltar, pedindo para eu voltar a ser amante dele. Falei: “Amigo, não dá. Entendeu? Para a gente continuar junto, tem que separar. E ele separou. Separou, finalmente separou, tá separado. Mas a separação para um homem ou para mulher, não sei, é uma coisa que leva um tempo, né? Eu já me separei de um casamento de 10 anos. Leva tempo, entendeu? Não é uma coisa de você parar aí em uma semana você separa.
Quem é que terminou, você ou ele?
Eu. Foi muito violenta essa paixão, um trauma para mim. A única vez que eu perdi o controle de tudo. A paixão mais intensa, mais dilacerante da minha existência. Foi onde eu perdi o chão, o teto e as paredes. Eu nunca tinha passado por isso. Porque você se apaixonar por uma pessoa a ponto de perder o freio é um negócio complicado, cara. Estava indo mudar para o Rio de Janeiro sem saber o que que eu ia fazer da vida. No dia que eu terminei, eu terminei de manhã, à noite eu peguei outro cara para evitar de ter uma recaída. Terminei recentemente.
Existe algum ensinamento que você tirou disso?
Foi maravilhoso como manancial de experiência humana. A minha iluminadora falava para mim: “Como você pretende ser uma grande intérprete? Ou ser uma grande compositora, escrever boas canções? Se você não vive isso, que todo mundo passa por isso na vida?” Eu entendi o que ela quis dizer. Elis Regina deve ter vivido isso, Maria Bethânia deve ter vivido isso, Gal Costa também. E chegou a minha vez. Enquanto eu estava no palco cantando “Coração Selvagem” e “Paralelas”, eu me debulhava em lágrimas, porque eu tinha acabado a relação.
Você foi muito ativa politicamente. Como está sua militância hoje e que tipo de patrulhamento sofreu?
Foi muito pesado, fiquei adoecida e bastante vulnerável. Eu saía para fazer show, minha mãe ficava rezando, achando que ia tomar um tiro, sabe? Uma vez me jogaram um ovo. Hoje estou menos aguerrida por causa do sofrimento que tive. E Belchior também foi importante na minha vida. Figurativamente, ele me pegou na mão e disse: “Teu lugar é aqui, é cantando, é na arte”. Porque através da arte você pode dizer coisas muito importantes, que vão impactar as pessoas muito mais do que panfletagem e militância. Belchior era um anarquista. Dizia: “Desconfio de esquerda e de direita. O poder corrompe o homem.” Nos tempos de militância eu recebi até convite para sair como vereadora. Prefiro cantar.