Maui: o cantor de ‘R&B safado’ treinado desde pequeno pela mãe cristã
Criado no 'fogo sagrado' da Assembléia, ele tem curtido mesmo é cantar o 'ácido'
Durante a adolescência, Gabriel dos Santos Silva, o Maui, gastou o DVD “Ousadia e Alegria”, de Thiaguinho. Apontado há algum tempo como revelação de um R&B com sotaque carioca da Baixada Fluminense, ele foi talhado em audições de DVDs ao vivo —de Luan Santana a Usher. Quando surgiu a vontade de cantar, viu sua mãe Denise surgir tal qual uma produtora de algum reality show que revela talentos vocais.
“Eu não cantava muito bem, não. Nunca fui um calouro do Raul Gil. Era um drama meu, achava que não tinha talento. Mas aí minha mãe comprou dois DVDs de karaokê: um de MPB e um de gospel para que eu ficasse praticando”, relembra Maui que, na infância, era um “varãozinho” da Assembléia de Deus e viu o apoio para ser cantor vir da mãe que, mais tarde, migraria para uma denominação cristã-restauracionista —que Maui prefere não revelar para preservar a matriarca.
Mas isso não fez de Denise uma mãe conservadora com o filho. “Ela não gosta de cantar no dia-a-dia dela, mas é uma das melhores ouvintes. Quando eu estava entrando na ‘caverna escura do rock and roll’, de querer só ouvir rock, ela me deu uma dica de milhões e me pediu que eu sempre escutasse, mesmo que não gostasse. Foi ela que me disse que meu canto estava ficando ‘nasal’. Eu nem sabia que alguém poderia cantar anasalado. Ela me deu essa atenção, me lapidou naquele momento”. Agora, Maui lança o DVD “Faxinalove”, cheio de melismas, uma banda tocando drill e letras com “coisinhas mais pra frente”, como costumam dizer os MCs que cantam sobre sexo.
“Eu comecei a dar atenção ao canto negro do soul, do R&B. E isso me levou à parte ácida do funk e do rock para a minha caneta. Eu gosto muito de falar de sexo, de fugir do óbvio quando faço uma ‘love song’, fugir do ‘você é tudo pra mim’, do ‘eu te quero pra sempre'”, analisa o autor de “Rubi”, EP de 2023 que, para além do sexo, valorizava as jóias da família Santos Silva e as muitas outras espalhadas por Parada Angélica, bairro periférico de um município já periférico que é Duque de Caxias.
A jóia das jóias que gravava a voz durante turnos na segurança de um hospital
Fotógrafo, videomaker, agitador cultural e tentando ser “um Sean Paul” da própria área, Maui tomou um susto que se converteria em bonança mas, ainda assim, um susto. Há dois anos, nascia Mali, primeira filha de um cantor que já não tinha muita coisa e, a partir de então, teria que correr dobrado para assumir as responsabilidades de pai.
“Eu tirava 300 reais para fazer um videoclipe. Só que na Pandemia não tinha artista independente querendo gastar dinheiro. Então, procurei um emprego mais estável, e consegui uma vaga de operador de CFTV [circuito fechado de televisão]. Ficava naquela sala onde tem todas as câmeras de um prédio que, no meu caso, era de um hospital”, conta. Quando Mali nasceu, ele trabalhava em uma unidade sossegada da rede de hospitais e era daquela sala que saiam as guias de canto para os produtores que requisitavam sua voz. “2:55”, do produtor Pedro Chediak, por exemplo, tomou emprestado não só a gravação crua que Maui fez pelo celular, mas também o horário em que o arquivo foi enviado.
“Eu colocava o fone de ouvido de um lado e virava de costa para que a câmera não me pegasse”, detalha o cantor que, se ainda não foi percebido pelo mainstream como voz para refrãos, já fez presença em álbuns de Luccas Carlos (em “Dois”, 2023), Ogoin & Linguini (em “TV Show”, 2023) e de André Miquelotti, P.L.K. e Ruas MC (em “Picaretas de Fachada”, 2024).
Ao mesmo tempo em que embarca nas ondas de gêneros como o drill e o ragga e se vira para pagar as contas, Maui coordena oficinas em escolas públicas com a ONG Rio Memórias. “Eu já trabalhei com muita coisa. Eu organizei o primeiro slam periódico de Caxias [o ‘Slam BXD’]. Como eu sou fascinado por história, eu fui demonstrando interesse e, além de poeta, passei a ser um ‘oficineiro’. Visito escolas, ajudo alunos a realizarem trabalhos sobre as próprias comunidades. Meu talento é comunicação, entender as pessoas e criar uma mensagem que seja possível para as pessoas. Quando eu saí da minha favela e fui estudar em Petrópolis, percebi que não era tão comum ser comunicativo como eu era dentro da casa da minha família. Eu achava que todo mundo era assim. E entendi que eu e minha galera, ali de Parada Angélica, éramos rubis, joias precisosas”.
Esse senso familiar e comunitário do cantor, não à toa, foi parar no título do DVD e, apesar da leveza em “Faxinalove”, Maui é denso quando reflete sobre sua carreira. “A gente que é artista se distancia muito da realidade. Se eu fosse pedreiro ou designer eu também não iria rececber os bônus do meu trabalho. Não me apego ao ‘tamanho que eu deveria ter’, apesar dos elogios. O sistema é injusto. Um gênio como o Chediak elogiar meu trabalho para mim já é um prêmio —e hoje ele é meu amigo. Eu quero fazer algo que minha mãe escute. Quero trazer inovação, mas quero que seja algo confortável, que agregue. Quero que minha galera, da minha área, que ouve pagode, trap, consigam assimilar minhas influências”, conceitua Maui, citando as eleições de 2018 como um divisor de água também na sua maneira de se comunicar como músico.
“Quando o ‘safado’ [o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro] ganhou, ele ganhou com a gente tentando falar algo que, teoricamente, era melhor do que aquilo. E isso me fez questionar. Responsabilizar menos quem escuta e responsabilizar mais quem está falando. Meu trabalho é sobre valorização do território, é sobre unidade, sobre reconhecimento, tanto racial, quanto comunitário e eu podia vir falando isso cheio de ‘blábláblá’ [faz voz como que imitando alguém soberbo]. Mas será que essa é a melhor forma de comunicar? A gente está em um momento de encontrar maneiras de comunicar, para além da palavra, essas mensagens poderosas.”, finaliza.