Fenômeno ‘lado b’ do RJ, Samba da Volta celebra popularidade com partidos autorais
Equilibrando-se entre ter 'fundamentos' e ser moda, o 'SDV' estreia autoral
Aos domingos, no centro do Rio de Janeiro, 2,3 milpessoas se juntam no Espaço Luis Gama para um ato espiritualmente louvável: cantar, bater na palma da mão, sambar, beijar na boca… O espaço, que já foi estacionamento, lava-jato e recebeu festas eletrônicas underground, desde 2022, abriga, sem luxo de balada, um marco do samba carioca pós-pandemia: o Samba da Volta. Sucesso nas rodas, o grupo chega confortável ao primeiro álbum autoral, apoiado por um público que também gosta de novidades.
Com shows lotados na quadra da Mangueira e uma apresentação marcada na tradicional Feijoada da Portela, o Samba da Volta se destaca entre as muitas rodas de samba da cidade, cujo repertório costuma ser muito parecido, por mesclarem músicas mais desconhecidas do samba com faixas autorais.
“Não que eu não goste do meu emprego ‘careta’, mas ver as pessoas reconhecendo o nosso trabalho autoral, cantando, fazendo coreografia… Isso dá um sentido maior para a minha vida, um propósito”, diz o engenheiro da computação Osmar Fernandes, cavaquinista, compositor e um dos fundadores do “ésse-dê-vê”.
“Era impensável ter rodas de samba com repertório autoral e interessante. Aconteceu em 1980, 1990, 2000 e, agora, temos orgulho de fazer parte”, completa o mineiro CH, vocalista que, de segunda a sexta, se fantasia de advogado.
Dividido em duas partes, o álbum “Esse É O Samba da Volta” marca também a ascensão de uma roda que revela sensações como Eryck Quirino, esse sim, percussionista em tempo integral, linha de frente da herança genética de Mestre Quirino e Quirininho da Cuíca na Mocidade Independente de Padre Miguel. Com Hudson Santana, ele integra a banda responsável pela cozinha no álbum e turnê “IBORU”, de Marcelo D2.
“As portas dos trabalhos como músico foram se abrindo a partir do SDV. Ele é a mudança de chave da minha vida. Fui levado a trabalhar com um ídolo, que é o D2, e ganhar os palcos do país e do mundo, tudo isso a partir de um samba feito com amigos”, diz Eryck, responsável pelo surdo e cuíca.
Um samba que se destaca pelo… samba
Apesar do ambiente propício para pecados vespertinos de um domingo, as atenções do SDV estão mesmo voltadas para o samba. Privilegiar composições menos exploradas em rodas frequentadas pelo público jovem foi uma tática que deu certo e angariou respeito. A exemplo do Poeira Pura, roda que surgiu pequena no quilombo Casa do Nando, também no Centro da cidade, o SDV também já chegou em São Paulo e com ingressos ansiosamente disputados.
Em abril, a roda fez-se plena na quadra da Estação Primeira de Mangueira, levando cerca de 4 mil pessoas para a verde e rosa com ingressos a R$15. Um marco para a história de uma grupo que já vinha, com cuidado raro, louvando a biografia do samba carioca e, em vida, homenageando quem escreve a história.
Antes disso, o SDV apresentou (ou reafirmou) nomes fortes e um tanto subestimados por outras rodas. O dono da caneta que escreveu o louvor “Ogum”, Marquinho PQD, comemorou lá os seus 40 anos de carreira. O mesmo se deu com o baiano Nelson Rufino (compositor, por exemplo, de “Todo Menino É Um Rei”) e Serginho Meriti (intérprete e autor de outros hinos como “Quando Eu Contar (Iaiá)” ou “Deixa a Vida Me Levar”).
Em “Esse É O Samba da Volta”, os músicos recebem dois integrantes do Fundo de Quintal, bastiões do samba carioca: Sereno participa de “Rei Almir”, homenagem ao amigo Almir Guineto que também se fundamentou nas rodas do Cacique de Ramos. Já Tiago Testa cola em “Fundamento”.
Esse diálogo, seja com a velha guarda ou com o próprio público, acabou sendo um dos trunfos de uma roda que nasceu íntima das discussões que permeiam as redes sociais.
“O Samba da Volta tem pautado muitas coisas na cidade e nas redes e isso aumenta nossa responsabilidade ao decidir qualquer ação nossa, além de nos colocar em um nível ainda mais alto de cobrança e responsabilidade”, reflete Juliana Joannou que, além de estrear como compositora, realiza a elogiada identidade visual. É dela a bandeira que foi hasteada como pavilhão oficial do Museu de Arte do Rio (MAR) após eleição popular, no ano passado.
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A queda por um ‘lado b’
Se a estratégia de lançar o disco em “lado a” e “lado b” tem mais relação com o comportamento disperso dos usuários de plataformas musicais, na roda, a divisão é ainda mais pertinente para um público fiel que anota, como aluno, o repertório, passeia por composições menos radiofônicas.
Essa direção menos ávida pelo comercial está naturalmente registrada em “Esse é o Samba da Volta”. Se o primeiro lado traz os primeiros singles inéditos “Maria, Cadê Teresa?” e “Essa Chama”, o lado b abre com piadas internas sobre o paradeiro do inquieto Eryck Quirino, versos de partido feito no improviso (em “Visita Aos Partideiros”) e segue com inspirações que vão de Luiz Carlos da Vila a Jorge Aragão (em “Sem Fronteiras” e “Até Que Tentei”, respectivamente).
“Aponto como xis dessa questão o valor da nossa amizade, a nossa pureza e a verdade desse encontro. Seria necessário muito mais do que só um grupo de bons músicos para alcançarmos as coisas que a gente vem alcançando. Nosso laço é forte e bem dado, depositamos muita fé uns nos outros e no samba feito por/com amor, o que fica claro nas mensagens que cantamos pro mundo”, reflete Hudson.
“Outro dia era apenas uma reunião de amigos pós-pandemia e, hoje, é uma reunião de muitos amigos gravando EP, lotando samba na quadra da Mangueira, entre tantas outras conquistas… Preocupação com os rumos que as coisas podem tomar é algo natural, no sentido de querer sempre atingir o melhor, mas sinto segurança porque penso que nossas raízes e alinhamento tão fortes vão nos levar sempre ao rumo certo e necessário. Espero que, como diz o samba do Aragão, a gente continue a chegar muito bem – sem desmerecer a ninguém.”, diz Carol Crespo, uma das fundadoras do samba, ironicamente citando “Moleque Atrevido”, baita de um lado a. A advogada é, fora da fantasia, figura conhecida por flanar pelos pagodes e mesas de bar da cidade, maneira como tornou-se figura seminal do SDV.
Integram a roda e o álbum, além de Eryck (voz, surdo, cuíca, repique de anel), Hudson (voz, repique de mão e caixa) e Osmar (voz e cavaco), os músicos Artur Jr. (voz e tantã), CH (voz), Igor Trindade (voz e banjo), Lucas Cardoso (voz e violão 7 cordas) e Thay Carvalho (voz, pandeiro e conga). A roda de samba acontece aos domingos, a cada três semanas e a entrada custa R$15.