Em 1985, a voz de Leci Brandão ecoou pelo Brasil com a canção “Zé do Caroço”, sobre o líder comunitário que se opunha às novelas e ao descaso público. Essa voz do morro do Pau da Bandeira se tornou hino no samba, juntando-se a outros que a compositora representou em 50 anos de carreira e 80 anos de vida.
Logo após a estreia fonográfica, já cantava pela liberdade do amor homossexual (“Ombro Amigo”), por um Carnaval menos predatório para as comunidades (“G.R.E. de Samba”, “Apenas um Bloco de Sujo”), pelo levante de um povo anestesiado (“Coisas do Meu Pessoal”) e pela demarcação de terras indígenas (“Nas Águas do Rio Negro”).
Filha de dona Lecy e de seu Antônio (e também de Ogum e Iansã), Leci foi vítima de racismo pela primeira vez aos 11 anos, quando lhe negaram um prêmio de escrita por ser a filha da servente da escola. Quase 70 anos depois, em 2022, cumpre o quarto mandato como deputada estadual em São Paulo (recebeu 90.496 votos em 2022) e é ídolo de outros “zés do caroço”, como Mano Brown, e de mulheres negras que cantam a necessidade de amores sinceros, como Luedji Luna e Liniker. Em entrevista à Billboard Brasil, ela fala sobre a depressão que a deixou cinco anos sem gravar e evita se vangloriar, permitindo que suas letras falem mais alto sobre amor, política e movimentos sociais —mas quer um samba com menos “meu benzinho” e mais ideias progressistas.
Você se considera uma jornalista musical, cronista. Qual foi a primeira vez em que se viu capaz de narrar o cotidiano de um país?
Num sofrimento, uma decepção amorosa. Não toco instrumentos de harmonia, mas quando a música vem, ela chega com letra e música —e isso é Deus e os meus orixás que me dão.
Como foi essa decepção amorosa?
Era 1965, e fui à casa do meu então namorado para levar uma lembrança para a mãe dele. Era semana do Dia das Mães. Ao chegar lá, fui atendida por uma moça. A mãe dele, então, com muito jeito, me disse que essa moça era a atual namorada e que estava grávida dele. “Eles vão se casar”, ela disse. Agradeci e quando, arrasada, cheguei em casa –uma das três escolas públicas onde morei, já que minha mãe era zeladora–, chorei muito. Aí fiz um samba, “Tema de Amor de Você”.
Pouco tempo depois, você participaria do programa “A Grande Chance”, da TV Tupi, como compositora, e acabou tendo de trabalhar numa fábrica de munição.
Fui anunciada pelo apresentador Flávio Cavalcanti [1923-1986] como “Leci Brandão da Silva, funcionária da CTB [Companhia Telefônica Brasileira]”. Tive a maior nota entre todos os candidatos nas duas primeiras etapas e, por isso, me disseram que eu seria promovida. Mas, como na terceira etapa eu fiquei em quarto lugar, a promessa foi esquecida. Fiquei muito indignada e me inscrevi num concurso para o setor burocrático dessa fábrica de munição em Realengo. Passei. Mas já não havia mais vagas disponíveis nos escritórios e, sim, na oficina de revisão. Como já havia pedido demissão, fui de uma mesa telefônica para lá, trabalhar com calos nas mãos.
E aí, entra em cena dona Lecy, sua mãe. Ela foi ao centro da cidade, e uma moça percebeu que o nome dela era igual ao da “menina da ‘Grande Chance’”. Fiquei muito conhecida na época. “Ela deve estar muito bem, o Flávio disse até que ela ia ser promovida”, ela falou. Minha mãe, então, contou que eu estava trabalhando na fábrica de munição. Surpresa, a atendente falou com seus superiores e trouxe um cartão, pedindo que procurássemos dona Paulina [filha de Luís da Gama Filho, fundador da Universidade Gama Filho]. Ao ver minhas mãos cheias de calos, dona Paulina chorou, incrédula. Foi então que passei de um salário de 70 para 300 cruzeiros trabalhando na secretaria da universidade.
Como você se tornou uma compositora que escreve e descreve outros tipos de amor, como o amor-próprio e a identidade negra?
Para mim, é espiritual. Cheguei à conclusão de que Deus me mandou ao mundo com a missão de exercer a arte de forma natural, intuitiva. Mas não sabia que essa arte iria fazer parte de tantas situações da sociedade brasileira. Sempre observei o comportamento humano por meio da poesia.
E isso faz você transitar pela música de uma forma muito interessante. Tem uma canção sua, “Pro Mano Brown”, de 1999… Como começou essa relação?
Dei entrevista numa rádio, e o locutor me informou que os Racionais tinham uma música com meu nome [“Voz Ativa”]. Eu falei: “Quem?”. Não sabia direito [quem eram]. Um belo dia, vejo o Mano Brown falando de forma muito forte e séria sobre o Lula. Pensei: “Vou fazer uma música para ele” [recita versos de “Pro Mano Brown”]. E eu queria fazer uma foto com ele.Todo mundo dizia que ele jamais apareceria. Quando cheguei ao estúdio, Mano Brown já estava lá.
São duas obras que se complementam.
Exato. E o convidei para cantar “Deixa, Deixa”, porque já tinha muito esse negócio de gente se matando. E eu falava: “Deixa ele beber, deixa ele fumar, melhor do que ele sacar uma arma para nos matar”. As pessoas da periferia sempre gostaram que eu cantasse essa.
Você, tal como Brown, sempre pontuou o lado podre da sociedade, como nas faixas sobre escolas de samba ou futebol. Tem uma compositora ali desiludida com as paixões populares?
Acompanhei a transformação da escola de samba. “A escola de samba resolveu formar um bloco de sujo” [citando “Apenas um Bloco de Sujo”, de 1977]. Por quê? Porque a escola de samba mudou. “O pessoal lá do morro resolveu/ Formar um bloco de sujo para sambar/ Porque a escola de samba enriqueceu/ E a gente nossa já não tem lugar.” Em 1975, compus “G.R.E. de Samba”. “Vou fundar uma escola de samba de pouca riqueza e muita verdade/ De gente valente cheia de vontade/ Será muito mais que simples diversão/ E o destaque da escola de samba/ Eu vou exigir que seja um sambista/ Pra ver sua foto em capa de revista/ Por direito e por tudo que ele sempre fez.” Em “Brasil Bom de Bola e de Samba”, canto “recortou o jornal e saiu à procura de um trampo decente/ Mas trabalho ele não conseguiu pois não era tão experiente/ Procurou seu amor e chorou pela realidade da vida/ Ainda bem que seu time ganhou e a escola venceu na avenida.”
Você nunca esteve ligada ao movimento negro, feminista ou LGBTQIA+. Ao mesmo tempo, é ícone entre eles. Como foi ver essas questões surgindo?
Por ter estudado no Colégio Pedro II [instituição federal de prestígio no Rio de Janeiro], acho. As pessoas sabiam que eu escrevia poesias, algumas me incentivaram. Mas eu era a única preta da turma. Escutava o pessoal fazer um barulho, “tziu, tziu”, e não sabia o que era. E tiziu é um passarinho preto… Com os LGBTs passei a ter mais relação em 1975. Eu era do elenco do Teatro Opinião, e um amigo me apresentou a pessoas gays. Mas nunca levantei bandeiras para preservar a minha mãe, porque uma mulher nascida em 1922 não entenderia a cabeça da filha de 40 anos.
Falando sobre indústria musical, algum episódio marcou negativamente?
Quando estava na Polygram e ia renovar o contrato para 1981, os executivos não gostaram do meu repertório. Acharam muito sério. Fiquei magoada. Não tiveram sensibilidade. Passei cinco anos sem gravar. Fiquei em depressão.
Quem te salvou?
Dona Lecy de Assumpção Brandão, minha mãe. Ela sempre saía com uma bolsinha com flores no braço. Eu perguntava aonde ela ia e ela respondia que ia “ali, em São Gonçalo [município da região metropolitana do Rio]”. Longe, né? Ela ia se consultar com Seu Rei das Ervas. E eu ficava: “Mas quem é Seu Rei das Ervas?”. Um dia, fui com ela. Era 1984. Na consulta, ele disse: “Você está mal, né, minha filha? Em sofrimento, achando que nada vai acontecer mais com você”. Minha carreira estava parada desde 1981, e eu estava sem rumo, deprimida. Ele disse que eu iria retomar a carreira, mas que, antes, eu precisava cuidar do meu anjo de guarda. “Você é filha de Ogum e Iansã. E, antes de tudo, você vai sair do Brasil.” Logo depois, recebi um convite para cantar em Luanda, Angola, pelo Martinho da Vila.
Cumpriu-se a profecia?
Em 1985, fiz um show com o Martinho, Dona Yvone Lara, Zeca do Trombone e recebi um convite para compor e gravar uma canção com o Exportasamba [“Que Festa É Essa”]. O produtor do grupo me levou para falar com o dono da gravadora. Ele já conhecia todo o meu repertório da Polygram e pediu para eu gravar um disco com arranjos simples, como se estivesse no bar. E aí lancei “Leci Brandão”.
Álbum com “Zé do Caroço”, hino no samba e na política. Você sente falta de canções mais pungentes como essa? Faço da arte uma forma de defender quem não tem voz. É meu fio condutor. Quando você não utiliza a arte para, sei lá, melhorar a vida do ser humano, poder levar ideias para o bem, para o progresso, para o respeito ao outro… Isso me chama a atenção. Tanto que sempre falei para os grupos de pagode de São Paulo que nunca tive nada contra e adorava as melodias. Mas não pode ficar só no “meu benzinho, meu amorzinho”. Não é por aí. Sempre gravei compositores novos do pagode, mas o problema é: qual recado você vai dar?
No LP “As Coisas que Mamãe me Ensinou”, de 1987, você veste uma camisa com “Sindicalize-se” estampado. Quando você decidiu ingressar na política?
Meu empresário, em 2009, recebeu uma ligação do Netinho de Paula [político e ex-vocalista do grupo Negritude Junior] e do Orlando Silva [deputado federal por São Paulo pelo PCdoB] me convidando para ser candidata. Eu disse: “Pelo amor de Deus, não”. Mas houve uma pressão muito grande. Aí o que eu fiz? Fui lá em São Gonçalo. E o caboclo das ervas falou: “Seu pai Ogum disse que você ainda tem muita coisa para fazer. Não pela música. Aceite o desafio”. Eu me filiei ao Partido Comunista do Brasil, fui eleita deputada estadual em 2010, e o partido voltou a ocupar uma cadeira depois de seis anos.
E como foi se encontrar com a política pela política e não mais pela música?
Liguei para a minha mãe aos prantos. “Mãe, a senhora lembra das escolas onde a gente morou, das salas que a gente varreu? Sua filha foi eleita deputada em São Paulo!” Peguei meus LPs, pus em cima da mesa e assinalei tudo o que eu cantei de questão social. Decidi que aquilo ia ser minha plataforma política.
Você faz 80 anos com muitas homenagens…
Minha sensibilidade anda à flor da pele, me emociono. E acho que essa sensibilidade é pela ausência da minha mãe. Ela morreu em 2019 e era minha melhor amiga, estava sempre no meio das coisas positivas que eu vivi. Gostaria que ela estivesse assistindo a essas homenagens. As mulheres pretas parlamentares, artistas, escritoras falam sempre que sou referência. A minha presença traz um respeito grande e tem muita gente jovem que gosta de mim. É o melhor presente que a vida está me dando.