Como Rita Lee se tornou a primeira estrela pop brasileira?
Ela foi de ‘persona non grata’ para se tornar a queridinha das donas de casa
A rainha do rock brasileiro. Santa Rita de Sampa. Padroeira da liberdade. Diversos apelidos e alcunhas foram criados para ao menos tentar descrever a mística influência de Rita Lee (1947-2023) na música. No primeiro capítulo da série da Billboard Brasil, que começou na #7 da revista, conta a história da música pop brasileira, adicionamos mais um título para o legado da cantora e explicamos as razões pelas quais ela foi a primeira popstar do Brasil.
“Meu bem, você me dá água na boca/ Vestindo fantasia, tirando a roupa/ Molhada de suor, de tanto a gente se beijar/ De tanto imaginar, loucuras.” Em 1979, quando essa balada chegou às rádios e virou até comercial de calça jeans, Rita Lee era proscrita do cenário nacional. Era roqueira –e, como cantaria posteriormente nos versos de “Orra Meu”, de 1981, “roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido”. Tinha sido presa por posse de drogas, e seu comportamento irreverente era uma afronta para os chamados defensores da moral e dos bons costumes. O sucesso da canção, no entanto, elevou-a para uma nova categoria da música brasileira. De melodia palatável e dotada de uma letra de fácil assimilação, ela fez com que Rita atingisse um tipo de público que antes não tolerava sua existência.
O hit também é uma amostra das características que fizeram a cantora emplacar um sucesso atrás de outro: composições sobre uma paixão pulsante –inspirada em temática e sonoridade por seu companheiro, Roberto de Carvalho–, mas que conseguem se diferenciar do levante da música romântica que atraiu diversos outros cantores da época. Como? Retratando o sexo sem medo em todos os seus toques, gostos e, principalmente, sons. Em resumo, “Mania de Você” apresentou ao Brasil um estilo muito falado, mas até então raramente executado com maestria por aqui –a música pop.
A guinada de um nome que já havia se estabelecido no rock para uma sonoridade mais grudenta, popular, até chegou perto de outros nomes da música brasileira. O escritor André Barcinski lembra que Roberto Carlos se aproximou dessa alquimia. No entanto, ele preferiu firmar raízes na música romântica. “A Jovem Guarda passou perto desse caminho, mas a composição de Rita e sua postura cênica tornaram tudo maravilhoso. Foi acidental, não foi um projeto meu ou da Som Livre. Ela foi contratada pela artista que sempre foi. Depois, descobrimos esse viés [pop]. Isso nunca foi colocado por nós, veio dela e do Roberto. Ele tinha muito essa ideia do pop”, reforça o produtor Guto Graça Mello, um dos responsáveis por essa mutação.
‘Esse Tal de Roque Enrow’
Após a expulsão de Rita dos Mutantes, em 1973, motivada por divergências criativas e pessoais com os integrantes, especialmente com o ex-marido Arnaldo Baptista –que afirmou que a cantora não sabia tocar instrumentos–, Rita estava pronta para trilhar caminho solo. Mas não tão sozinha. Naquele mesmo ano, juntou-se a Lucinha Turnbull na dupla Cilibrinas do Éden. No entanto, a recepção incerta do público sobre o projeto a fez buscar um grupo de rock para chamar de seu. “Lucinha indicou o nome da nossa banda, que na época era conhecida como Lisergia. Nos encontramos pela primeira vez na casa da mãe da Rita, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. Mostramos algumas músicas nossas, e ela fechou com a gente”, relembra o baixista Lee Marcucci, que só tinha 17 anos na época.
A psicodelia técnica presente no show da cantora, realizado no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, naquele mesmo ano, inspirou o nome do espetáculo que, por sua vez, virou o novo nome do grupo de apoio da artista: nascia, então, o Tutti Frutti.
Com o rock tradicional dos anos 1970 em força total, o primeiro disco de Rita ao lado do Tutti Frutti, “Atrás do Porto Tem uma Cidade”, foi lançado no ano seguinte. No entanto, foi “Fruto Proibido”, de 1975, que lançou os megassucessos “Agora Só Falta Você” e “Ovelha Negra” –que logo viraria mais um apelido em sua lista. Mesmo assim, o reconhecimento comercial de seus projetos não fazia nem cócegas nas prateleiras das lojas. “O que as pessoas não lembram é que a Rita não vendia discos nem com os Mutantes. Sua carreira com o Tutti Frutti foi um sucesso? Sim, naquele nicho do rock. Mas eles não apareciam em grandes paradas de música romântica. Ela era considerada uma artista alternativa”, afirma André Barcinski, autor do livro “Pavões Misteriosos”.
Rita foi uma das artistas brasileiras mais censuradas durante a ditadura militar, que não via com bons olhos suas letras de cunho sexual. A repressão chegou ao seu limite com uma prisão, em 1976, supostamente por posse de maconha. A cantora afirma ter sido vítima de uma emboscada, afinal, não fazia mais uso da erva durante o período de gestação (estava grávida de seu primogênito, Beto Lee). Foi assim que passou duas semanas encarcerada e, após ser libertada, se pronunciou sobre o assunto da maneira mais Rita possível: vestindo um figurino de presidiária em seu primeiro show após a prisão.
No ano seguinte, “Refestança”, um projeto ao lado do amigo Gilberto Gil, seria o estopim para que sua carreira virasse de cabeça para baixo. “A ideia era fazer um espetáculo único no Maracanãzinho, no Rio. A cenografia era cheia de elementos, e tinha uma espécie de aranha gigante. Todos começaram a dançar, e o palco passou a balançar cada vez mais forte. As pernas do bicho desabaram, inclusive em cima da percussão. Rita foi para fora do país, e eu fiquei responsável por organizar tudo”, relembra Guto Graça Mello, diretor da Som Livre, gravadora de Rita na época. Ele se tornou produtor musical dos álbuns da cantora a partir daquele projeto desastroso –e um dos idealizadores da nova sonoridade que alavancaria sua carreira.
O Roberto também é (bem) pop
No ano seguinte, o disco “Babilônia” (1978), o último ao lado do Tutti Frutti, já sinalizaria um pequeno aceno à vertente mais pop da artista. O projeto seria o primeiro feito ao lado do multi-instrumentista Roberto de Carvalho, companheiro de vida e profissional, com quem Rita colaborou até o fim. Os dois se conheceram enquanto ele era guitarrista de Ney Matogrosso.
Segundo Guto, Roberto foi o principal responsável por trazer referências da música pop e de melodias latinas para o som de Rita. Um desses exemplos é a faixa que inspirou o título do disco, “Jardins da Babilônia”, composta pela cantora e por Lee Marcucci. “Já tinha a ideia na cabeça e, quando toquei para Rita, ela começou a escrever. A composição era onde ela mais brilhava”, Lee entrega.
“A Rita sempre compôs muito. Mas a facilidade que o Roberto tinha de fazer canções pegajosas e que viravam sucesso muito facilmente fez uma grande diferença”, conta Max Pierre, produtor musical que, mais tarde, se tornaria fundamental para a expansão do mundo pop de Rita. Os talentos musicais não foram os únicos atributos que fizeram Roberto mudar a vida da companheira que, agora, passaria a escrever canções mais alegres e românticas. “A paixão deles também foi crucial para o sucesso. A gente conseguiu nosso equivalente a John Lennon e Paul McCartney.”
Mania de TV
Aquele amor digno de novelas foi a aposta de Guto para mudar de vez a carreira de Rita. Ele, que também era diretor musical da TV Globo, sugeriu para Daniel Filho, responsável pelas novelas do canal, a ideia de ter músicas da cantora como trilha dos folhetins. “Vamos fazer um disco jovem, pop, para o velho poder ouvir”, conta em entrevista no livro “Pavões Misteriosos”, de Barcinski. “Com a inclusão das músicas em diversas novelas, as vendas dos álbuns aumentaram. Rita e Roberto, sempre muito inteligentes, foram abraçando a sonoridade pop cada vez mais em suas músicas”, revelou, para a Billboard Brasil.
A partir disso, uma mentalidade voltada para o gênero passou a ser o cerne do modo de trabalho entre o trio e o produtor Lincoln Olivetti (1954-2015). Como, por exemplo, sobre a quantidade de faixas incluídas em cada disco. Naquela época, quanto mais músicas, mais célebre seria o projeto. No entanto, Guto revela que orientou Rita e Roberto a enxugar as escolhas a fim de mirar em mais canções-chiclete e, consequentemente, comerciais. Apesar do desafio –o produtor revela que na casa da cantora havia um cômodo, que mais se assemelhava a uma biblioteca, tomado por cadernos de composições–, a ideia foi um sucesso.
O primeiro grande êxito a partir dessa fase foi o bolero pop “Mania de Você”, do disco “Rita Lee” (1979), gravado na casa do produtor ao lado de Roberto. “Era uma linguagem que o jovem entendia perfeitamente, mas que tinha aquela coisa gostosa. Não, isso aí não é uma roqueira, não é uma drogada que está fazendo isso aqui”, conta. Apesar de portar uma personalidade que aparentava ser alheia à opinião pública, Guto revela que a cantora se importava, sim, com sua má reputação e com as consequências que aquilo trazia para seu sucesso. O caminho do pop foi a solução para invadir os lares brasileiros em que Rita era considerada um mau exemplo para os jovens, e cativar até as donas de casa mais céticas.
Os 1980
Nascida como uma marchinha de Carnaval e transformada através da inspiração dos norte-americanos Doobie Brothers, a faixa “Lança Perfume” capitaneou o sucesso do disco homônimo de 1980, que também conta com “Baila Comigo” e “Caso Sério”. Colorida, contagiante e sofisticada. Com a nova sonoridade de Rita, ninguém conseguia ficar parado.
Guilherme Samora, jornalista que se tornou amigo íntimo da família, acrescenta a essa poção mágica um elemento vital: ele também vê a alma tropicalista da cantora sendo reanimada com a chegada de Roberto, mas não fica só por aí. “Ela teve mais vontade de experimentar e misturar seu rock a outros elementos. Inclusive, Rita e Roberto têm um gênero próprio: o ‘rockarnaval’”, afirma.
As músicas dançantes eram praticamente obrigatórias para as rádios na época. “Insistimos no rock por muito tempo, mas o que fazia sucesso era o pop, que dava para dançar”, relembra o baterista Gel Fernandes da banda Rádio Táxi, criada naquele ano após o fim da Tutti Frutti. O grupo, cujos maiores sucessos foram “Eva” (sim, aquela) e “Garota Dourada”, teve Rita e Roberto como padrinhos da nova empreitada. “Precisávamos de algo que pudesse ser entendido universalmente”, relembra.
Foi com o produtor Max Pierre que Rita e Roberto procuraram elevar sua sonoridade pop aos padrões técnicos da música internacional. O trio trabalhou junto nos discos “Saúde” (1981), “Flagra” (1982), e “Bombom” (1983). “Já quando comecei a parceria com eles, fizemos a mixagem dos primeiros discos em Nova York. Mas foi quando gravamos o disco ‘Bombom’, em Los Angeles, que me lembro de a Rita afirmar que aquela experiência tinha sido um choque cultural por conta da qualidade dos músicos e da eficiência da gravação. Aprendemos muito”, compartilha Max.
O produtor revela que a motivação para alçar novos voos veio da pressa. Explicando melhor: como a Som Livre “cozinhava” esse processo, Rita teria de apresentar um novo disco logo após a renovação. A solução foi gravar nos Estados Unidos, com os melhores músicos que ela tinha à disposição. Para agilizar o processo, o trio viajava para o exterior com as composições praticamente finalizadas. Uma fórmula pop perfeita, que geraria ainda mais hits feitos em alta qualidade em menos tempo. No entanto, Max afirma que Rita passou a sentir falta do “improviso brasileiro” e, a partir disso, deixou Roberto produzindo seus próximos discos no Brasil.
O legado
A rebeldia do rock combinada à curiosidade e ao amor virou trilha das novelas e das paradas. Não só marcou a música pop, como pode ter dado à luz um novo gênero que segue marcando gerações com sucessos inesquecíveis. Uma harmonia concebida pela imprevisibilidade e pela experimentação, além da paixão pela música e pelo outro. Afinal, tem algo mais pop do que tudo isso?